A vingança de Marilyn

 

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É mentira! E se me voltarem a perguntar, voltarei a dizer que é mentira. Marilyn, em The Misfits, não interpretou personagem nenhuma. Vingando-se de Arthur Miller, o marido com que estava a romper o seu terceiro casamento, foi só ela mesma, ela, a própria, ao longo desse filme maldito de tantas maldições confirmadas ao longo dos 58 anos que já passaram.

O genérico final do filme desmente-me: está lá escrito que a personagem de Marilyn se chama Roslyn Taber. Começamos por vê-la a tentar memorizar as falas que vai dizer ao juiz para se divorciar e não demoramos muito a saber que foi stripper, perdendo no bar duma cidade perdida o que os homens supõem que as mulheres perdem por eles ganharem, quando ganham, alguma coisa. Que se lixe o genérico, não há personagem nenhuma: The Misfits, como qualquer filme, mente com os dentes todos, e se os filmes têm dentes!

The Misfits é um filme de John Huston. Quem o escreveu – porque embora nestes tempos tão visuais custe reconhecê-lo, os filmes são escritos – foi Arthur Miller. Escritor, dramaturgo, se algum dia no século 30 alguém se lembrar dele há-de ser, se ainda houver raiva masculina, por ter sido marido de Marilyn. A mesma raiva que, agora, me faz ser injusto.

 

Miller era dono de uma mente literária e convencera-se que Marilyn nunca tivera um papel à sua medida. Via, como todos os literatos, mal cinema. Bem lhe podiam mostrar o Gentlemen Prefer Blondes do Hawks ou o Seven Year Itch do Billy Wilder que ele sempre os veria sem os ver.

O que ele via era a Marilyn que tinha à frente dos olhos. Via o ciclone emocional do casamento deles. Via, de Marilyn, a insatisfação voluptuosa, redonda e carnal, tão infantil às vezes, via a invulgar dualidade cartesiana que era a alma e o corpo dessa mulher.

Era isso que via, e foi o que Miller escreveu. Quando leu o script, Marilyn não gostou do espelho. Se calhar, adivinho eu, já se tinha visto assim e já se tinha visto melhor. E vingou-se.

A conselho de Truman Capote, Marilyn fora aluna de Constance Collier, actriz britânica e shakespeareana, e aprendeu com ela que não tinha teatro dentro de si. Katharine Hepburn, Bette Davis, até mesmo Lauren Bacall, tinham teatro, colocação, dicção. Ela não. O que tinha, e a professora Collier lhe mostrou, era fragilidade, a súbita luminosidade de um raio de sol, a beleza subtil de uma labareda no meio da noite. Coisas que não enchem um palco, mas fazem a felicidade da câmara de cinema. Como em The Misfits.  Filmada por Huston com um soft focus que a faz irreal, Marilyn paira no ar como pólen e a voz com que diz as falas é de uma ingenuidade de jardim-escola.

Passara tudo por Marilyn: abusos, violência, droga, humilhação. Mas nesse filme, em frente à câmara, Marilyn era só a imagem da inocência depois do pecado, a virgindade que, afinal, nunca se perde. E deixem-me dizer-vos: santo Deus, o que a inocência e a virgindade podem ser tristes.

 

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