ah, essa voz escondida entre as palmeiras

georges-bizet
georges bizet

Ah, parece-me ouvir outra vez, escondida entre as palmeiras, a sua voz terna e sonora como o canto dos pombos. Oh noite encantadora, excitação divina, oh memória encantadora, louca embriaguez, sonho tão doce…

Eis o que, soubessem a minha boca e a minha cabeça cantar como cantam a boca e a cabeça de Michael Spyres, eu cantaria, feito um caçador de pérolas, a mando de Georges Bizet. Não inventámos nada, não podemos inventar nada – pesa sobre nós uma beleza esmagadora, vulcânica, funda e insustentável.

Je crois entendre encore

Caché sous les palmiers

Sa voix tendre et sonore

Comme un chant de ramiers.

Oh nuit enchanteresse

Divin ravissement

Oh souvenir charmant,

Folle ivresse, doux rêve!

Aux clartés des étoiles

Je crois encore la voir

Entr’ouvrir ses longs voiles

Aux vents tièdes du soir.

Oh nuit enchanteresse

Divin ravissement

Oh souvenir charmant

Folle ivresse, doux rêve!

Charmant Souvenir!

Charmant Souvenir!

 

Nem Placido Domingo canta melhor esta ária divina (subam o som):

 

A Star is Born

star

Eu tenho 65 anos. Já tive 20. Hoje, quando me deu o bilhete a tão bonita menina dos UCI Cinemas, do El Corte Inglès (será filha de angolanos? Deus abençoado queira que seja, para que possa ser, candengue, ainda minha prima, um bocadinho irmã ou maninha), t-shirt amarela de uma qualquer festa do cinema, e uma africaníssima tiara (chamemos-lhe assim) que lhe fazia tão bonito o maravilhoso cabelo crespo, que mesmo à distância enche de saudades do amor puro quaisquer dedos artríticos da mão direita, logo o sorriso dela, tão lindos alvos dentes, a contrastar com o escuro caramelizado da pele, me avisou que devia, correr não, que ao senhor lhe pode fazer mal, mas acelerar o passo: os 15 minutos de complementos estavam a acabar e o filme a começar.

Entrei no escuro, no escuro me sentei, e mal acomodado o rabo que já pesa, uma cadeira de intervalo para o casal ao lado, nem um odor de pipocas na sala, sai-me da guitarra de Bradley Cooper a energia de um solo como só, de finais dos anos 60 ao final dos anos 70, houve solos de guitarra. Partiu-se-me em duas a alma, que coração já não tenho. Se o Filipe Mendes estivesse vivo, ele saberia, como no campo das modalidades, basquete, andebol, hóquei do  Benfica de Luanda, numa noite negra dessa pretíssima ternura que só a África tem, lhe saiu um solo assim, rock ‘n roll anti-colonial, rock ‘n roll de uma desesperada, incompreensível, bêbada, janada fraternidade universal. A Phil Mendrix devo o solo da minha vida, a antecipada visão do rock ‘n roll e da América, bem antes de ter visto a inlocalizável e mítica América.

Começa assim A Star is Born. Eu, ainda mal sentado, a ver a fatelice dos nomes e dos logos da merda das produtoras independentes, e a faca de doze notas a espetar-se-me  no peito, nas costas, no ventre e no baixo-ventre. A filha da puta da guitarra a empurrar-me de felicidade para o querido fundo dos infernos, o guitarrista já meu ídolo, barbas e cabelos como a abundante amazónia dos anos 70, a cara dele, cara de Cooper, a lembrar-me Jeff Bridges, cheia de patética vida, mais pathos do que ethos, passado bem passado, sofrimentos de Jim Morrison, Led Zeppelin e Alvin Lee.

Eis como A Star is Born começa: desespero, pessimismo, cinismo, uma guitarra raivosa a querer destruir o mundo por não ser capaz de tomar conta dele. E vem logo, em linhas paralelas e três coincidências, mas pode bem ser que sejam só duas, o amor. O amor de A Star is Born é tearjerker. E que outro amor pode o amor ser, que não seja tearjerker? Que se foda o amor que não chora, envergonha, embaraça, como chora, envergonha, embaraça o amor de A Star is Born.

Lady Gaga e Bradley Cooper, os mais improváveis actores, são belos, narizes à parte, e são verdadeiros. O nosso amor, a nossa saudade do amor, a nossa necessidade de amor, a nossa carência de amor reconhecem-se no amor deles. Porque A Star is Born é só o cantado amor deles, e dizer que o é, não é spoiler, porque nenhum amor é spoiler, nem spoiler é a vaga nudez deles, nem são spoilers os beijos quase castos em que eles se comem de boca a boca, como de boca a boca o amor um dia nos comeu, até mesmo quando, spoiler e implacável, nos anunciou, exangue e de cerrados lábios, o fim do amor.

Vamos ao que interessa, se a verdade ainda interessa alguma coisa. Chorei desalmadamente a ver a personagem de Lady Gaga tentar, cantar, conquistar esse bizarro patamar a que chamamos êxito. A Star is Born é um filme que, como certas mangas estão cheias de polpa macia e doçura, está cheio (parte dele, pelo menos) desse desejo juvenil de realização de um sonho. Reencontrar esse sabor, essa aspiração, numa fórmula ou composição quase a roçar a ingenuidade, a inocência, é reencontrar a mais primordial e selvagem das emoções.

Egon Schiele

Schiele

O titilante laço vermelho que força os quatro buracos da capa e contracapa é de bom augúrio. Falo-vos de um pequeno álbum de 16,5 por 22 centímetros, cartonado e com selo da Prestel Verlag. O livrinho faz parte da série, “Erotische Skizzen”. Dos três que sei existirem, só tenho o de Egon Schiele, mas hei-de descobrir os que foram dedicados aos “esboços eróticos” de Picasso e Rembrandt.

Abre-se este “Erotische Skizzen Egon Schiele” e o sexo surge nu, exposto e vermelho. Uma nudez que impele e repele. Percebe-se que estes corpos, a roçar o grotesco, tenham provocado alguns amargos de boca aos austríacos do começo do século XX.

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Schiele era o protegido de Klimt – herdou-lhe a amante de 17 anos – e pintou numa claustrofóbica Viena a que Freud já começar a levantar a tampa. Casou, pintou a mulher como tinha pintado a amante e antes pintara as adolescentes que levaram os juízes a acusá-lo de sedução e abuso. Absolvido pelos tribunais, a Europa das artes sentenciou-o à genialidade de que esta erótica, aqui guardada em livro, é prova cabal.

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Diz-me agora que não tens medo

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La Guerre du Feu

A paixão que é o medo! O amor, o amor, pois claro, a cálida perna nua que se roça pela nossa correspondente nudez, a diligência investigacional com que indicador e polegar tacteiam um mamilo, como se fossem crianças de seis anos a brincar às escondidas… o amor, pois claro, mas nada se compara à paixão pelo medo.

Donde vem o fascínio pelo medo, que no cinema desemboca em Dráculas, noivas de Frankenstein, poltergeists, Nosferatu, chuveiro e faca de “Psycho”, lobisomens londrinos, tubarões de fracturantes mandíbulas, demónios nunca exorcizados?

O horror começou pela boca. Pela boca de mil Homeros que cantaram a matança da guerra; que inventaram Ciclopes para depois incensarem os ardis de Ulisses; que criaram o Minotauro para mostrar que se não formos Teseu, jamais nos incendiaremos de tesão.

O que as bocas humanas cantavam, à volta da fogueira ancestral, era o medo das outras mil bocas em uivos que as cercavam. No escuro paleolítico ardia a vontade de comer dos tigres de Blake, da intratável hiena, do leão que 130 vezes emerge nos versículos da Bíblia. O medo de que esses dentes sanguinários, garras em agulha, viessem rasgar a carne humana era o fundado medo de uma espécie indefesa, sujo corpo exposto de bicho fraco e humilde.

O nosso medo, hoje, é o eco do medo daquela multidão de bocas salivantes de desejo, prontas a estraçalhar-nos, quebrar ossos, decepar-nos uma perna, a limpar-nos – limpinho, limpinho – a jugular. A nossa má-consciência meteu a adorável bicharada no Jardim Zoológico. O deplorável catecismo da boa consciência – pan-pan onde antes era pum-pum – legisla direitos carnavalescos, enfeitando o visceral mundo da bicheza com fitinha éticas e laços natalícios para todos os animais de boa vontade.

Mas é ao fechamos os olhos, nos sonhos primordiais, que a velhíssima memória nos assombra de volta com o monstro: polifemos com seu olho na testa, a pequena cobra peçonhenta, o esmigalhante abraço da boa, do mar o Adamastor e seres bestiais com orelhas do tamanho de uma mula, narizes de quatro ventas, bocas de engolir caravelas.

Eis o alimento da nossa paixão: o medo do que não é nós. Medo homérico, bíblico, alimento de poetas, crianças e mães, que o homem caçador teve de fingir não ter. O medo foi o berço de toda a arte, os filmes de terror um dos seus ninhos.

nosferatu
Nosferatu

Publicado no Expresso

O rapaz que nunca diz palavrões

Nunca na vida tinha visto um insulto ser tão bem tratado. A revista Sábado tratou assim, com assinatura de Sónia Duarte Bento, o meu livrinho vermelho:

sábado

O meu livrinho, que é de me envergonhar a mim, como envergonharia Vénus, Afrodite, talvez mesmo Sade, o divino Marquês, tem esta capa e há dois dias que está nas livrarias portuguesas. Agora, é com os leitores. O que eu gostaria de o ver nas vossas mãos.

INsultos

Todo o cinéfilo é culpado: interrogue-se

Todo o cinéfilo é culpado. Não se vai para o escuro de uma sala de cinema em vão. É legítimo que o cinéfilo seja submetido a interrogatório. Eu fui encostado à parede em duas sessões. Reúno aqui, pela primeira vez num só documento, o relatório completo e não censurado desses dois atrozes interrogatórios.

good-fellas
Goodfellas

Todo o cinéfilo é culpado
Manuel S. Fonseca

Mas quem é que não vai ao cinema para matar ou morrer? No cinema abraça-se, beija-se, acaricia-se, come-se. Come-se tudo. O cinema é a cama de toda a virgindade: ali se perde, ali se volta a ganhá-la. Agora que banqueiros, primeiros-ministros, mesmo juízes são interrogados, todo o cinéfilo deve preparar-se para ser arguido e responder a esta lista, batoteiro questionário de Proust, em que serei o primeiro a ser enxovalhado. Comecemos:

Filme com a melhor canção na boca de uma personagem?

O filme é “One From The Heart”, o aeroporto é o de Las Vegas e a boca é de Frederic Forrest. De virilidade encolhida, canta malíssimo, e portanto muito bem, “You’re My Sunshine” à mulher que o deixa e entra no avião com o amante. Também podiam ser sete bocas em luto redentor, as de Meryl Streep, De Niro e outros, a cantar “God Bless America”, no final de “Deer Hunter”, filme que dá bom nome ao patriotismo.

 Filme com a canção mais bem ligada à trama?

O “Casablanca” sufocaria sem o oxigénio de “As Time Goes By”. Mas isso é para quem só queira as doces mariquices de Deus. Se querem ter na espinha um arrepio do Diabo, ouçam o “Time Is On My Side”, no “Fallen” de 1998. O medo, o mal, a possessão demoníaca de Elias Koteas são tão arrebatadores que só apetece dizer “shit lá para o paraíso”.

Filme para ver antes de perder a virgindade?

Pondo logo de lado a megalomania de “Boogie Nights”, que o tamanho aqui complica, e em vez de escolher o óbvio “Summer of ’42”, se procura um lírico estremecimento e supremo êxtase, veja o italiano “Stromboli”, fusão de uma mulher, Ingrid Bergman, e de um convulso vulcão. “Monica e o Desejo”, de outro Bergman, Ingmar, prova que a Suécia é bem mais do que o mobiliário, pau e camas do IKEA.

Filme para ver depois de perder a virgindade?

Duas hipóteses. Correu muito mal? Ver o “Alien” pode ser a forma de compensação: vistas as coisas pelos olhos de Sigourney Weaver podia, afinal, ter sido bem pior. Mas se correu tudo entre melosas lágrimas e suspiros mozartianos, corra ao cinema e dance e cante na cadeira o “Singin’ in the Rain”. No caso de ser já jovem intelectual e, naturalmente, antiamericano, que para isso é que é há cursos de filosofia, mobilize-se para ver a bela “Lola”, de Jacques Demy.

(Neste passo, o arguido teve direito a um descanso, embora não lhe tenha sido permitido comer ou refrescar-se, com uma limonada que fosse. À sua frente, o torcionário comia pipoca, com cara de caso, lembrando que quem frequenta salas de cinema é suspeito. Minutos depois, o interrogatório continuava, exigindo-se ao interrogado que respondesse com cara de Buster Keaton. Eis a fase slapstick do questionário.)

Filme para uma bela sessão de, digamos, marmelada no cinema

 Se é para estar de olhos abertos, mãos e dedos perscrutantes, “Body Heat”, “Sea of Love”, o “Cat People” do velho Tourneur. Se é para atacar às cegas, gemidos e mais do que sussurros, talvez duas cadeiras esmigalhadas, escolha “Transformers”, “Mad Max” ou o ruidoso “This Is Spinal Tap”. Não se desgrace: cuidado com os silêncios em filmes de Straub ou Manoel de Oliveira.

Filme para ver depois de uma valente ruptura conjugal

Vai precisar de muita nostalgia e capacidade de se rir de si mesmo. Ponha-se nas mãos de Peter Bogdanovich, sabendo que a coisa só já lá vai com sessão dupla: “Last Picture Show” e “Texasville”.

Filme para ver um ano depois da morte da mãe

Deixe-se levar e lavar em lágrimas com o milagre e ressurreição de “A Palavra”, do dinamarquês Dreyer. Só para os de pouca fé é que uma morte é definitiva.

Filme para ver um ano depois da morte do pai

Não há pai como o Donald Crisp de “O Vale Era Verde”. É abandonado por todos os filhos, menos um. Todos queremos ser esse humilde menino de sete anos, que pigarreia ao fundo da mesa para que o pai lhe diga: “Sei que estás aí, meu filho”.

Que filme ver depois de sair da prisão

Se sai com a sensação de que ainda merecia mais cinco aninhos de pena, “Goodfellas” vai saber-lhe bem. Se sai inocente como entrou, nada o ligando ao BES ou a palmanços de armas em Tancos, console-se com o “In the Name of the Father”. “Pickpocket”, de Bresson, é para ex-presidiários mais metafísicos.

Filme para curar qualquer depressão ou ressaca

Toda a gente dirá “Blues Brothers”. A mim o que me resgata do fundo do poço é a velocidade e os dois leopardos de “Bringing Up Baby”; ou os cães e a doce tecnologia da casa de “Mon Oncle”, de Jacques Tati.

Filme para um regresso à infância

No “ET” as lágrimas vieram-me de bicicleta, mas o bolo inteiro da infância, curiosidade, alegrias e medos, reencontrei-o no bando de miúdos de “Stand by Me”.

Filme para os meus amigos se juntarem a ver depois do meu funeral

“A Matter of Life and Death” na esperança de que haja engano lá em cima e possa ser recambiado cá para baixo.

Vida e destino, Vassili Grossman

Não li, como ninguém leu, todos os romances do século XX. Dos que li, e dos que, não os tendo lido, tive conhecimento, este é porventura o maior romance do século. Caótico, convulso, irrespirável, restitui-nos a abjecção, pejada de heroísmo, idealismo, tortura e massacre, dos dois cancros do século, o nazismo e o comunismo. Vida e Destino não é um romance como os outros. Rasga-nos por dentro.

Grossman

Vida e Destino: os filhos da puta sabiam
Manuel S. Fonseca

O século XX teve dois tumo­res cere­brais: o nazismo e o comu­nismo. Malig­nos os dois. Ambos pra­ti­ca­ram geno­cí­dios em que pere­ce­ram milhões de seres huma­nos. No holo­causto nazi, os judeus foram as prin­ci­pais víti­mas: 6 milhões assas­si­na­dos nas ruas, com­boios, cam­pos e cre­ma­tó­rios; no holo­causto esta­li­nista, os judeus vol­ta­ram a ser um dos alvos, fazendo parte dos 10, 15 (ou terão sido 20?) milhões de víti­mas com que a bar­bá­rie do Par­tido Comu­nista, a pur­gas, depor­ta­ções e gulags, ata­pe­tou o soci­a­lismo soviético.

Tudo isto, sendo, com a passagem dos anos, da banal da ordem dos fac­tos, cons­ti­tui um ino­mi­ná­vel hor­ror. Pela arbi­tra­ri­e­dade e ausên­cia de razão, a não ser que o puro mal seja razão, este é o maior hor­ror da his­tó­ria conhe­cida da huma­ni­dade. Fal­tava ao século XX um livro que, em espe­lho, devol­vesse ao nazismo e ao comu­nismo o rosto comum, rosto de las vie­jas goyes­cas. As 855 pági­nas de “Vida e Des­tino” são as pági­nas desse livro.

Vas­sili Gros­s­man, o seu autor, toma como cen­tro um epi­só­dio, a bata­lha de Esta­li­ne­grado. A cidade é uma Tróia des­feita: ruí­nas, fome, cadá­ve­res pin­tam o caos de vinte Guer­ni­cas. Ale­mães e sovié­ti­cos com­ba­tem e matam-se, heróica e patri­o­ti­ca­mente, por cada metro de rua, parede a parede, casa a casa. Aqui­les e Hei­tor rein­car­na­ram no heroísmo de milha­res de sol­da­dos sovié­ti­cos, na valen­tia dos seus capi­tães e generais.

Mas “Vida e Des­tino” é uma falsa epo­peia. Quando Vas­sili Gros­s­man nos leva para longe de frente de com­bate, correm-se as cor­ti­nas das ide­o­lo­gias tota­li­tá­rias e entra­mos nos cam­pos de con­cen­tra­ção. Nos fas­cis­tas pri­meiro, nos comu­nis­tas depois. Os olhos de Gros­s­man tinham visto antes o que os dedos dele escre­ve­ram depois neste livro. Ele viu e fez os pri­mei­ros rela­tos sobre os cre­ma­tó­rios nazis para os jor­nais sovié­ti­cos. No jul­ga­mento de Nurem­berga, esses rela­tos foram apre­sen­ta­dos como docu­men­tos de prova. Neste livro, num dos capí­tu­los, o lei­tor acom­pa­nha a ins­pec­ção de altos qua­dros do Reich a um campo que vai ser inau­gu­rado. Toda a gente fez o seu tra­ba­lho e os for­nos estão pron­tos a quei­mar carne, a quei­mar ner­vos e ossos. Os altos qua­dros, gene­rais e minis­tros de Hitler, cumprimentam-se pela efi­cá­cia, pela qua­li­dade inex­ce­dí­vel dos equi­pa­men­tos, e come­mo­ram erguendo taças de cham­pagne – têm orgu­lho na sua fábrica de morte.

Não são as úni­cas pági­nas de “Vida e Des­tino” que se lêem com um sobres­salto vis­ce­ral. Se a inu­ma­ni­dade amo­ral dos SS nos faz estre­me­cer, tam­bém é con­vulsa a lei­tura dos capí­tu­los em que segui­mos Sófia e David.  O acaso e os ale­mães juntaram-nos num com­boio que vai da Rús­sia para um dos cam­pos. David é um miúdo de cinco anos e está só. Sófia é uma jovem médica e tro­peça nele, no escuro da car­ru­a­gem cheia de pri­si­o­nei­ros. Adopta-o. Protege-o ao longo da via­gem agó­nica. No campo, os ale­mães espe­ram estes judeus rus­sos com a fes­tiva música, o ladrar dos cães, a gri­tada e velo­cís­sima orga­ni­za­ção que ater­ro­riza e con­funde. Grita-se banho; vão levá-los para o banho. Médi­cos e outros espe­ci­a­lis­tas podem pas­sar para outra fila. Sófia per­cebe logo a dife­rença entre as duas filas. Tem esco­lha e esco­lhe não aban­do­nar este David de estrela ao peito e cinco anos soli­tá­rios e ino­cen­tes. Acompanha-o, serena, para essa luc­tí­fera sala de banho. Aperta-o con­tra o seu ven­tre e no momento fatí­dico, quando as luzes se apa­gam e um acre odor se espa­lha, sabe que é mãe. Ser mãe tanto é dar à luz, como dar um filho à eterna escuridão.

Nas 855 pági­nas deste livro há outras mães. A mais pun­gente é a mãe da Vík­tor Strum, o mais pro­ta­go­nista dos vinte ou trinta pro­ta­go­nis­tas de “Vida e Des­tino”. Ela ficou numa cidade ucra­ni­ana que os ale­mães ocu­pa­ram. Os con­quis­ta­do­res logo lhe lem­bram o que já esque­cera, que é judia. Despejam-na num gueto e sabe que a vão enter­rar na vala comum que os pró­prios judeus ras­gam na terra fria. A mãe de Vík­tor con­se­gue ainda escre­ver ao filho uma carta de des­pe­dida. São pági­nas cheias de vida e morte, onze pági­nas que car­re­gam a bon­dade e a mal­dade da con­di­ção humana. Onze pági­nas de trai­ção e mes­qui­nhez, de absurdo e abjec­ção, de ines­pe­ra­dos e reve­la­do­res ges­tos reden­to­res. Uma mãe escreve a um filho sabendo que é a última vez que lhe fala e é tão difí­cil, tão atroz, escre­ver a última linha, a que se sabe que é a última linha, por­que todas as car­tas têm de acabar.

Entre­tanto, em Esta­li­ne­grado combate-se. Já nem é o heroísmo que move as tro­pas rus­sas. Uma des­me­dida dis­po­ni­bi­li­dade para o sacri­fí­cio, a abdi­ca­ção de tudo o que é humano, leva o Exér­cito Ver­me­lho ao triunfo. E tal como Napo­leão Bona­parte foi per­so­na­gem da “Guerra e Paz”, de Tols­toi, tam­bém Adolf Hitler é con­vo­cado por Gros­s­man para a sua “Vida e Des­tino”. Quase ouvi­mos os pas­sos macios e outo­nais do monstro alemão na flo­resta de Gör­litz. Hitler cami­nha num reco­lhi­mento monás­tico, um pé na Poló­nia, outro na Lituâ­nia. Ele era, ontem, o poder ulu­lante, a águia de asas mai­o­res do que o mundo. Hoje, de Esta­li­ne­grado, anunciaram-lhe a der­rota do seu 6º Exér­cito. Para gran­deza da Nova Ale­ma­nha, Hitler ateara a guerra ao mundo, cre­mara milhões de humanos nos seus for­nos. Agora, os tan­ques sovié­ti­cos abrem-lhe no cora­ção um inferno de gelo e dúvida. Esta gelada der­rota acaba de lhe meter uma lâmina de medo no ventre.

Hitler sabe que, atrás das árvo­res, há mil sol­da­dos invi­sí­veis a protegê-lo, mas cami­nha sozi­nho e a flo­resta húmida acorda nele um sonho afli­tivo. Sente que se trans­for­mou no Pequeno Pole­gar. Esque­cido dos mil sol­da­dos vigi­lan­tes, adi­vi­nha olhos e den­tes de lobo mau, entre as altas árvo­res, pron­tos a estraçalharem-no. Um ter­ror infan­til apodera-se deste senhor do mundo. Em duas pági­nas, Gros­s­man faz a mais arre­pi­ante des­cri­ção de Hitler que já li. O medo que lhe con­gela os ossos é o medo de quem sabe o que fez. O filho da puta sabia. Não há nenhuma bana­li­dade. Hanna Arendt estava enganada.

Vida e Des­tino” é um vasto mural que pinta a pátria de Esta­line como um labi­rinto de ter­ror. Não há sos­sego para o homo sovi­e­ti­cus. Um herói de guerra, mesmo vito­ri­oso, pode ser acu­sado no seu regresso a casa. Não há cá Pené­lo­pes à espera. Uma ligeira hesi­ta­ção antes do assalto vito­ri­oso para evi­tar per­das des­ne­ces­sá­rias aos seus sol­da­dos, uma frase per­dida que disse na cama à agora ex-mulher, bas­tam para que um dedo acu­sa­dor, um rumor anó­nimo, uma acu­sa­ção sem rosto, aba­tam o herói. Feita a denún­cia, ini­ci­ado o pro­cesso de pri­são e tor­tura já nada o pode deter. O herói preso é como o leproso: quem o tocar contamina-se. Todo o heroísmo é sus­peito, sus­peita é toda a fide­li­dade E não há defesa. É o que o Comis­sá­rio Kri­mov vai apren­der na carne e no espí­rito: não há defesa con­tra a acu­sa­ção em nome de um Par­tido ruti­lante que exsuda a mais maiús­cula Ver­dade. Não há limi­tes para a tor­tura, ines­ca­pá­vel, impa­rá­vel, enquanto ao acu­sado sobrar uma rés­tia de iden­ti­dade. Não é o corpo esfran­ga­lhado e em san­gue, os rins reben­ta­dos, cagares-te todo, que os inter­ro­ga­do­res que­rem. Estás preso, já fize­ram de ti uma suja e doida rata­zana no esgoto e isso é só o começo. Os inter­ro­ga­do­res querem-te a ti. Que­rem esse teu eu, que­rem que ele se entre­gue, que con­fes­ses ter feito o que nem pela cabeça te pas­sava que podia ser feito. Foda-se, alguma culpa hás de ter, lá no fundo, mas não te esfor­ces a pro­cu­rar, aceita as acu­sa­ções que te ofe­re­cem. (Assina, cara­lho!) Con­fessa, assina e denun­cia alguém ou mais dois ou três. Uma sovela incan­des­cida perfura-te o crâ­nio: estás sozi­nho e não sabes quem te denun­ciou. Per­deste a con­fi­ança na tua mulher, na tua mãe, nos teus filhos. És nin­guém e só nin­guém sobreviverás.

No campo de con­cen­tra­ção sovié­tico, encon­tra­mos Abart­chuk, o fiel comu­nista que o Par­tido con­de­nou: ele sabe que nada fez con­tra o Par­tido, que o acu­sam injus­ta­mente. Toda­via, Abdart­chuk resigna-se. O Par­tido tem de cas­ti­gar e Abdart­chuk aceita, mais humilde do que Job, fazer parte da suposta peque­nina mar­gem de erro que o viti­mou. Mesmo ali, no campo de con­cen­tra­ção, cas­ti­gado e sem culpa, tem uma neces­si­dade infan­til, reli­gi­osa, de apro­va­ção. No teu íntimo pen­sas que estás ino­cente?Mas que sus­pei­tís­simo íntimo é esse que se arroga cer­te­zas con­tra a von­tade do Par­tido? Não se é preso por nada. As pur­gas de 1937, o torpe ter­ror das depor­ta­ções, milhões de cam­po­ne­ses, tra­ba­lha­do­res, pro­fes­so­res, padres, músi­cos, comu­nis­tas assas­si­na­dos, não foram um erro. Os milhões de mor­tos, a denún­cia per­ma­nente, os pais denun­ci­a­dos pelos filhos, o ter­ror de se dizer uma pala­vra equi­voca, são a con­sequên­cia lógica, a ins­ta­bi­li­dade intrín­seca ao mundo novo de que o Par­tido é o único sol. As teo­rias polí­ti­cas heli­o­cên­tri­cas são fodidas.

Já disse que Vík­tor Strum é o mais pro­ta­go­nista dos pro­ta­go­nis­tas de “Vida e Des­tino”. A Aca­de­mia de Ciên­cias reconhece-lhe o génio mate­má­tico e uma des­co­berta na sua área da física nuclear converte-o quase numa vedeta. Fez uma descoberta científica decisiva. Mas será que a ciên­cia, essa pre­tensa guar­diã da razão, pode pre­va­le­cer con­tra os prin­cí­pios leni­nis­tas? Nunca! E muito menos se o cien­tista é um judeu. Os nazis tinham recor­dado à mãe de Vik­tor, numa cida­de­zeca da Ucrâ­nia, que ela era judia. O Par­tido lem­brará a Vik­tor o mesmo opró­brio. Acusam-no de des­vio ide­o­ló­gico, por­que podiam acusá-lo do que qui­ses­sem. Tiram-lhe tudo, a come­çar pelo labo­ra­tó­rio na Aca­de­mia. O por­teiro da casa onde vive já nem sequer o cum­pri­menta. Vík­tor começa a dolo­rosa pere­gri­na­ção pelos escon­sos túneis que con­du­zem ao Vale das Som­bras. E é neste ponto do romance que, tal como Hitler, tam­bém Esta­line apa­rece.  A des­co­berta cien­tí­fica de Vík­tor é dema­si­ado impor­tante para o Poder. Esta­line pre­cisa dele e telefona-lhe: “Como é que está a cor­rer o seu tra­ba­lho?” Fala dois minu­tos com ele. No dia seguinte, o labo­ra­tó­rio reabre-se, o por­teiro cumprimenta-o. Como se as acu­sa­ções, o ter­ror das sema­nas ante­ri­o­res tives­sem sido apa­ga­das, nunca tives­sem exis­tido. Esta­line ia deixá-lo ser con­de­nado, pro­va­vel­mente ser morto num campo gelado, só por­que era um judeu, sem outra culpa, sem nenhuma culpa, por­que podia acusá-lo do que qui­sesse. Bas­tou um tele­fo­nema de Esta­line, tão arbi­trá­rio a salvá-lo, como arbi­trá­ria seria a con­de­na­ção. Tal como Hitler, tam­bém este filho da puta sabia.

Na parte 2, capí­tulo 15 de “Vida e Des­tino”,  Gros­s­man põe-nos a ouvir a con­versa entre um filo­só­fico coman­dante de um campo de con­cen­tra­ção nazi e um velho bol­che­vi­que pri­si­o­neiro, cama­rada de Lenine, um dos heróis da Revo­lu­ção de 1917. O nazi ama o revo­lu­ci­o­ná­rio comu­nista e quer ser amado por ele. Diz-lhe: “Quando nos olha­mos na cara um ao outro, olha­mos não só para uma cara odi­osa, mas tam­bém para o espe­lho.” E é só o ale­mão que fala: “Seja hege­li­ano, meu mes­tre… Acha que hoje olham para nós com ter­ror e para vocês com amor e espe­rança? Acre­dite que não: quem olha com ter­ror para nós, olha para vós com o mesmo ter­ror.

Vida e Des­tino” é o livro que reco­lhe as duas gran­des tem­pes­ta­des do século XX. Um livro con­vulso, caó­tico, às vezes irres­pi­rá­vel. Nele se escreve a impi­e­dosa con­fron­ta­ção do nazismo e do comu­nismo, a impi­e­dosa fusão dos dois no mesmo pro­cesso de ter­ror arbi­trá­rio, imo­ral, abjecto. E, no entanto, as pes­soas movem-se. Ape­sar do ter­ror, do dan­tesco espec­tá­culo de tor­tura e morte, os seres huma­nos con­ti­nuam a viver. “Vida e Des­tino” ter­mina no silên­cio de uma flo­resta fria. Fica­mos a saber – é Vas­sili Gros­s­man a dizê-lo – que há mais funda tris­teza nesse silên­cio do que no silên­cio de qual­quer Outono.

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Vas­sili Gros­s­man escre­veu “Vida e Des­tino” no final dos anos 50. Em 1960, quis publicá-lo na revista “Znamya”, mas o KGB apre­en­deu o manus­crito. Em 1962, fez nova ten­ta­tiva junto das auto­ri­da­des, mas foi-lhe dito que a publi­ca­ção do romance pro­vo­ca­ria mais danos ao regime do que os que já cau­sara “o Dou­tor Jivago”, de Pas­ter­nak. “Nem daqui a 200 anos, o seu romance será publi­cado”, disse-lhe o grande ideó­logo do Polit­buro, Mikhail Sus­lov. Gros­s­man mor­reu dois anos depois. Julgou-se que a obra teria sido des­truída pelo KGB, mas um amigo de Gros­s­man e o cien­tista Andrei Sakha­rov con­se­gui­ram, em 1974, fazer che­gar uma cópia a França, onde pri­meiro foi edi­tada. Na Rús­sia, foi publi­cada, depois da Glas­s­nost de Gor­ba­chev, em 1988. A edi­ção por­tu­guesa, da Dom Qui­xote, é de 2011.

A insonsa Therese, a imortal Elise

 

Porque não haveria Beethoven de ter também uma história de amor? Ou mesmo duas. A de Therese e a de Elise. Este é o teaser de uma história a contar outro dia. Só para ouvirmos Valentina Lisitsa.

Therese

Ludwig adorava Therese. Mas nunca ninguém tinha ensinado Thesese a amar. Em lá menor, Ludwig cantou Therese como ninguém a poderia cantar. Com péssima caligrafia, mas inspirada mão direita e arpejos da esquerda, Ludwig escreveu “Für Therese”, para com ela casar. Mas Therese, com o amor de quem não sabia amar, a Ludwig disse não, para dizer sim a von Drosdick, que era barão. Justiça poética: a caligrafia de Ludwig, de fazer dó, mal lida e em sustenido, fez da real e insonsa Therese, a imortal Elise que agora, como Ludwig, gostaríamos de eternamente amar:

Für Elise”, é um magistral solo de piano de Beethoven. Começa com uma irreprimível alegria (“joy”, em inglês, diz melhor o que o alemão tinha na sua surda cabeça), passa por uma atormentada dúvida e termina no mais certo e esgazeado sofrimento. Por tudo isto, que acontece em 3 minutos e 37 segundos, vale a pena amarmos, sem distinção, o obstinado Ludwig, a prosaica Therese e a etérea Elise.