Todo o cinéfilo é culpado. Não se vai para o escuro de uma sala de cinema em vão. É legítimo que o cinéfilo seja submetido a interrogatório. Eu fui encostado à parede em duas sessões. Reúno aqui, pela primeira vez num só documento, o relatório completo e não censurado desses dois atrozes interrogatórios.

Todo o cinéfilo é culpado
Manuel S. Fonseca
Mas quem é que não vai ao cinema para matar ou morrer? No cinema abraça-se, beija-se, acaricia-se, come-se. Come-se tudo. O cinema é a cama de toda a virgindade: ali se perde, ali se volta a ganhá-la. Agora que banqueiros, primeiros-ministros, mesmo juízes são interrogados, todo o cinéfilo deve preparar-se para ser arguido e responder a esta lista, batoteiro questionário de Proust, em que serei o primeiro a ser enxovalhado. Comecemos:
Filme com a melhor canção na boca de uma personagem?
O filme é “One From The Heart”, o aeroporto é o de Las Vegas e a boca é de Frederic Forrest. De virilidade encolhida, canta malíssimo, e portanto muito bem, “You’re My Sunshine” à mulher que o deixa e entra no avião com o amante. Também podiam ser sete bocas em luto redentor, as de Meryl Streep, De Niro e outros, a cantar “God Bless America”, no final de “Deer Hunter”, filme que dá bom nome ao patriotismo.
Filme com a canção mais bem ligada à trama?
O “Casablanca” sufocaria sem o oxigénio de “As Time Goes By”. Mas isso é para quem só queira as doces mariquices de Deus. Se querem ter na espinha um arrepio do Diabo, ouçam o “Time Is On My Side”, no “Fallen” de 1998. O medo, o mal, a possessão demoníaca de Elias Koteas são tão arrebatadores que só apetece dizer “shit lá para o paraíso”.
Filme para ver antes de perder a virgindade?
Pondo logo de lado a megalomania de “Boogie Nights”, que o tamanho aqui complica, e em vez de escolher o óbvio “Summer of ’42”, se procura um lírico estremecimento e supremo êxtase, veja o italiano “Stromboli”, fusão de uma mulher, Ingrid Bergman, e de um convulso vulcão. “Monica e o Desejo”, de outro Bergman, Ingmar, prova que a Suécia é bem mais do que o mobiliário, pau e camas do IKEA.
Filme para ver depois de perder a virgindade?
Duas hipóteses. Correu muito mal? Ver o “Alien” pode ser a forma de compensação: vistas as coisas pelos olhos de Sigourney Weaver podia, afinal, ter sido bem pior. Mas se correu tudo entre melosas lágrimas e suspiros mozartianos, corra ao cinema e dance e cante na cadeira o “Singin’ in the Rain”. No caso de ser já jovem intelectual e, naturalmente, antiamericano, que para isso é que é há cursos de filosofia, mobilize-se para ver a bela “Lola”, de Jacques Demy.
(Neste passo, o arguido teve direito a um descanso, embora não lhe tenha sido permitido comer ou refrescar-se, com uma limonada que fosse. À sua frente, o torcionário comia pipoca, com cara de caso, lembrando que quem frequenta salas de cinema é suspeito. Minutos depois, o interrogatório continuava, exigindo-se ao interrogado que respondesse com cara de Buster Keaton. Eis a fase slapstick do questionário.)
Filme para uma bela sessão de, digamos, marmelada no cinema
Se é para estar de olhos abertos, mãos e dedos perscrutantes, “Body Heat”, “Sea of Love”, o “Cat People” do velho Tourneur. Se é para atacar às cegas, gemidos e mais do que sussurros, talvez duas cadeiras esmigalhadas, escolha “Transformers”, “Mad Max” ou o ruidoso “This Is Spinal Tap”. Não se desgrace: cuidado com os silêncios em filmes de Straub ou Manoel de Oliveira.
Filme para ver depois de uma valente ruptura conjugal
Vai precisar de muita nostalgia e capacidade de se rir de si mesmo. Ponha-se nas mãos de Peter Bogdanovich, sabendo que a coisa só já lá vai com sessão dupla: “Last Picture Show” e “Texasville”.
Filme para ver um ano depois da morte da mãe
Deixe-se levar e lavar em lágrimas com o milagre e ressurreição de “A Palavra”, do dinamarquês Dreyer. Só para os de pouca fé é que uma morte é definitiva.
Filme para ver um ano depois da morte do pai
Não há pai como o Donald Crisp de “O Vale Era Verde”. É abandonado por todos os filhos, menos um. Todos queremos ser esse humilde menino de sete anos, que pigarreia ao fundo da mesa para que o pai lhe diga: “Sei que estás aí, meu filho”.
Que filme ver depois de sair da prisão
Se sai com a sensação de que ainda merecia mais cinco aninhos de pena, “Goodfellas” vai saber-lhe bem. Se sai inocente como entrou, nada o ligando ao BES ou a palmanços de armas em Tancos, console-se com o “In the Name of the Father”. “Pickpocket”, de Bresson, é para ex-presidiários mais metafísicos.
Filme para curar qualquer depressão ou ressaca
Toda a gente dirá “Blues Brothers”. A mim o que me resgata do fundo do poço é a velocidade e os dois leopardos de “Bringing Up Baby”; ou os cães e a doce tecnologia da casa de “Mon Oncle”, de Jacques Tati.
Filme para um regresso à infância
No “ET” as lágrimas vieram-me de bicicleta, mas o bolo inteiro da infância, curiosidade, alegrias e medos, reencontrei-o no bando de miúdos de “Stand by Me”.
Filme para os meus amigos se juntarem a ver depois do meu funeral
“A Matter of Life and Death” na esperança de que haja engano lá em cima e possa ser recambiado cá para baixo.
Acho que já li isto, ou quase isto, em qualquer lado. Mas que está aqui um bom naipe de filmes, isso está.
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Bea, já leu, de certeza. Mas esta Página Negra tem como objectivo, a par de novas prosas, reunir todos os textos de crónicas, entrevistas, post, artigos e etc. da autoria deste seu amigo. Mas tentarei sempre introduzir um toque de novidade. A ver se consigo. Seja bem vinda.
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