Agora que não só os automóveis estão em extinção, como é anacrónica a ideia de um ser humano guiar um carro, lembrei-me de uma velha crónica sobre automóveis e sexo, cujo maior defeito era não falar do mais onanista dos filmes automobilísticos já feito.
Falo de “Drive”, realizado por Nicholas Winding Refn, belíssimo filme a cavalgar a obra-prima, todo feito à mão por Ryan Gosling.
A forma como conduzimos um carro é reveladora do modo como aceleramos na cama. É científico, asseguram-me. Ou seja, conduzir um carro é, vá lá, sexo metafórico. A ser assim, nos filmes, a devassidão começou com “Bullit”, em 1968, nas ruas de San Francisco, entre um Ford Mustang GT e um Dodge Charger 440 R/T.
No Dodge, dois homens patibulares. Ao volante do Mustang, Steve McQueen. Os carros circulam, suaves, mais longe do que perto, numa valsa de engate. A música embala, com o rumor duma batida nervosa em fundo. Os patibulares percebem-se seguidos, McQueen é o perseguidor. De repente, plano de pormenor no interior dum carro: um cinto de segurança aperta-se. Num tempo em que mal havia cintos de segurança e ninguém os apertava, era um indício de obscenidade.
A partir daí é à descarada: dois carros em cio. A geografia de San Francisco, montanha russa, favorece a orgia. Há acelerações súbitas que fazem explodir os motores, um tampão que salta, as quatro rodas no ar, suspensões que se esmagam contra o asfalto. Ai, ui, de pneus e aço. Nenhuma palavra ou som humano, como se apenas a intensa combustão das máquinas contasse.
E saem da cidade. Na estrada, aparece-lhes uma moto de frente, e sabe-se como as relações apaixonadas se dão mal com a presença de terceiros. O Mustang morde a poeira e conhece o ciúme do despiste. Volta vingativo, e vê-se na mão dos perseguidos a promessa orgástica duma caçadeira negra. Os carros estão lado a lado, num vaivém de bater um contra o outro. Ombro a ombro, pela frente, por trás, um toque de quadris. Dois, três tiros dos perseguidos não chegam para evitar o violento espasmo de ancas que o Mustang de McQueen lhes dá: o Dodge voa pelos ares, embate violento contra uma bomba de gasolina e explode em vermelho de fogo, clímax que até a pé, quanto mais de carro, todos perseguimos.
Foi a “primeira vez”. Até hoje, já vimos muito mais. No “Duel”, de Spielberg, há um camião, que devia ter vergonha naquele corpanzil, em assédio, abuso e castigo a uma viaturazinha, flor da estrada. Um carro perverso tira dos carris um comboio, em “French Connection”. Num claro caso de S&M, uma “pick-up” humilha e faz afocinhar um caça F-35, no último “Die Hard”.
Sinal dos tempos, no “Tomorrow Never Dies”, Bond já não toca, nem com um dedo, no volante. Deitado no banco traseiro do BMW 750i, controla, no ecrã de um pré ipad, choques promíscuos com carros voluptuosos. No fim, salta mesmo do carro que faz voar do alto de um arranha-céus, levando-o, por controlo remoto, a espetar-se, em espectáculo contra-natura, numa montra da Avis rent-a-car. Foi o plano mais rentável de toda a história do cinema. Afinal, mesmo motorizado e a ipad, o sexo rende sempre.