Os trabalhos e os dias de um editor
Manuel S. Fonseca
Vamos sempre parar a casa de quem gostamos. Esta aventura – fazer uma antologia contemporânea da poesia romena – começou com um telefonema do poeta Dinu Flamand. Publiquei-o antes, depois de um telefonema de António Lobo Antunes, que me o apresentou com generosidade e apaixonada graça. Dine e António são casas de que se gosta e a que apetece voltar.
O Dinu falou-me, então, desse projecto ambicioso do Instituto Cultural Romeno. E eu deixei-me levar pela irresistível voz dele. Publiquei esta monumental Antologia que reúne 27 poetas romenos e gostava muito de a ver em casa de cada um dos leitores da Guerra e Paz. Por estas simples razões:
Por ser um livro lindíssimo, com uma capa que fomos roubar a Brancusi, à sua Mesa do Silêncio.
Por reunir 27 poetas e por estar a poesia romena habitada por uma vitalidade que é rara na literatura contemporânea, com traços da resistência ao comunismo totalitário, com uma ironia amarga que se roça por sonhos selvagens, quase exóticos, sempre autênticos.
Por estar admiravelmente traduzida, num belíssimo português, por Corneliu Popa.
Por ter dois dias – apenas dois dias, como numa sessão de lançamento, para a levar para casa com 50% de desconto.
O Instituto Cultural Romeno – o meu incansável amigo Gelu Savonea – pediu-me que fizesse um vídeo de telemóvel lendo um poema. Não resisti e aventurei-me. Ora vejam.
Se não fosse pela descomandada e rimbaudiana aventura de Pierrot le fou, se não fosse por esse gosto a vigindade de ABout de Souffle, era capaz de dizer que Le mépris é o melhor filme de Godard. O rabo de Bardot, todavia, garante-lhe entrada no pódio olímpico.
A música é de Georges Delerue, o rabo é de Brigitte Bardot, o desmesurado olhar é o nosso embora finjamos que é o de Michel Piccoli, o filme é “Le Mépris” de Godard.
O cinema deu-nos intensas cenas físicas. De mil escolho uma: em “Sea of Love”, Ellen Barkin e Al Pacino apalpam o corpo um do outro com uma tactilidade desenfreada que envergonharia o mais zeloso polícia apalpador de aeroporto. “Le Mépris” não precisa de mãos.
No Ocidente, a história das artes é a disfarçada história da tensão e da tentação de mostrar a mulher nua. Mas a mulher nua talvez nunca tenha sido dita como Godard pediu a Bardot e a Piccoli que a dissessem nesta sequência que abre “Le Mépris”.
O primeiro professor de francês que tive, voz rouca e o que então me parecia uma terceira idade de quase cinquenta anos, não sabia, e eu ainda menos, que os penosos rudimentos de impronunciáveis “la table” e “la fenêtre” serviam apenas para rasgar nos meus ouvidos o tapete por onde deslizaria a voz de Bardot a perguntar: “tu les trouve jolies mes fesses?”
Já voltamos às redondas nádegas de Brigitte. Passemos antes pela “petite histoire” do filme.
“Le Mépris” é, como os filmes de Godard, um díptico: num está o cinema, no outro a vida. A personagem de Piccoli tem na re-escrita do argumento de um filme, que pretende adaptar a “Odisseia”, a oportunidade profissional da sua vida. Vai trabalhar com e contra um realizador famoso (um Fritz Lang a fazer de Fritz Lang) por encomenda de um americano colérico que é produtor por orgulho, “como todos os produtores”, diria Godard.
Essa é uma tela do díptico. Na outra, Godard dá-nos as cores do casamento de Piccoli com uma Bardot morena como uma Carmen que fosse tranquilamente imprevisível. A cor final dessa relação há-de ser a cor do desprezo.
“Le Mépris” foi o filme em que Godard esteve mais perto de entrar na indústria americana e o que dela mais longe o pôs. Joseph E. Levine , o produtor americano, ao ver a versão final, atirou-se a Godard, exigindo-lhe nus de Bardot para vender o filme. Godard acedeu e filmou o plano-sequência de abertura.
Bardot está nua, deitada de costas, na cama. Piccoli em segundo plano, contempla-a. Palavra a palavra, pela boca de Bardot, com o complacente acordo de Piccoli, é-nos dito cada centímetro do corpo dela. Ouvimos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Ouvimos os tornozelos, as coxas, o rabo, os joelhos. Ouvimos o corpo de Bardot, como se ouvíssemos as ondas do mar, sensação que as vagas de filtros vermelhos e azuis, utilizados por Godard, mais reforçam. Ainda temos os ouvidos nas redondas e tão belas nádegas e já Bardot nos pergunta “o que preferes, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabemos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Delerue. Experimentem ouvir.
Estou a ver, com estes olhos que, rezo a Deus, o vírus ainda não coma, o puto Didier a correr pelas ruas de Dakar, de tronco nu e a levar com as nuvens de Dicloro-Difenil-Tricloroetano. Didier é da minha idade, meu kota um ano apenas, e correu pelas ruas da capital senegalesa como eu corri pelas de Luanda. Nesse tempo em que mesmo o leão falava a um elefante de trombas, matava-se a minúscula e infecta bicharada voadora lançando ondas de DDT nas ruas tropicais. No Senegal como em Angola.
O DDT vinha num carro que entrava por aqueles nossos dias de sol incandescente, sem Valquírias imperiais nos altifalantes. Um carro só, com bizarro depósito atrás, anunciado pelos gritos das sentinelas do bairro que nós éramos: “Carro do fumo, carro do fumo!” E o DDT, para nós um indiscutido pesticida, saía espesso, em nuvens gloriosas, imaculadas. Enquanto as mães, já armadas em classe média colonial, corriam a fechar as cheirosas casas de alecrim e alfazema, nós, miúdos africanizados, mais lumpen do que pequenino burgueses, tirávamos as camisas e mergulhávamos naquele algodão doce, naqueles cumulus congestus que nos sabiam a céu. Lambíamos e bebíamos DDT, inalávamos DDT. O Dicloro-Difenil-Tricloroetano entrava-nos pelos poros, narinas, robustos pulmões, enquanto à nossa volta os inimigos, não sei quantas espécies de insectos voadores, rastejantes, tombavam sem remissão. Morriam, massacre, livrando-nos da malária, das terríveis febres palúdicas.
Didier Raoult, um dos maiores epidemiologistas deste mundo aflito, é filho desse caldo e desse espectáculo público: matar para não morrer. Sobreviveu em Dakar ao DDT, esse clorobenzeno cuja descoberta os suecos saudaram dando o Nobel ao cientista suíço Paul Müller, e que, a mesma Suécia, nos anos 70, proibiria ao mundo pelos efeitos colaterais no ambiente. Era, nos anos 50 e 60, o que tínhamos e livrou-nos de muito paludismo.
Ora, mesmo obrigando-me a deslizar por intimidades inconfessas, se quiser dizer a verdade, a verdade é que o carro do fumo, o DDT, tinha uma bela amante, a quinina. Ou melhor, o sulfato de quinino que papávamos em comprimidos e, pela urgência de chegar ao que quero, desculpem-me as tonitruantes asneiras que me estejam a sair da boca para fora. Do que mais me lembro é das caixas de resochina. Quantas caixas mamou o candengue Didier?
Didier Raoult é, já se percebeu, o heterodoxo cientista que veio proclamar ao mundo a necessidade de regressar a esse quinino dos trópicos, recomendando que se desse aos infectados do Covid 19 a cloroquina. O que ele mesmo fez, por sua livre e imediata iniciativa, antes que a boquiaberta burocracia conseguisse articular palavra. Espírito vagabundo, marujo no fim da adolescência, em transatlânticos e em conradianos navios de carga, anacrónicos cabelos hippies, Didier ainda fez uma primeira licenciatura em literatura, antes de aceitar o dinheiro do pai, velho médico militar, para fazer medicina.
A sua reconhecida carreira científica como infectologista enche de beijos a genialidade. Chamam-lhe “pescador de micróbios” tantos foram os seus “milagres”: devemos-lhe o maior vírus já isolado pelo homem e também a maior bactéria e a descoberta de 31 espécies bacterianas novinhas em folha. E, se queremos falar de pandemias, estabeleceu o primeiro diagnóstico retrospectivo da Peste Negra, da Idade Média.
Com a obstinação do miúdo de musseque que corre atrás do carro do fumo e das nuvens de DDT, o francês Didier Raoult, nascido em Dakar, quer salvar o mundo. Move-o a ousadia do risco.
Sempre me fez espécie que Elia Kazan tivesse prescindido, na sua adaptação ao cinema de A Leste do Paraíso, de John Steinbeck, da personagem que resolve filosoficamente o conflito do romance.
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Falta um chinês ao “East of Eden” de Elia Kazan. A Europa sempre teve sonhos de Oriente e os poetas portugueses também, de Camões a Pessanha, Wenceslau, o ópio de Pessoa. Voltámos agora, patéticos, a sonhar com o chinês que nos falta.
Mas, enternecido com James Dean, Elia Kazan elidiu o chinês do seu “East of Eden”. Não admira que tenha ficado ligeiramente a leste do paraíso. No romance de John Steinbeck, que o filme adaptou, havia um chinês. Lee não é só o cozinheiro e fiel secretário de Adam Trask, o pai da personagem de James Dean. Falando pidgin, dizendo “amélica” em vez de “américa” ou “poltugal” se no romance tivesse de dizer “portugal”, Lee, o cozinheiro chinês, é o sopro de vida que reanima Adam quando a mulher em fuga o deixa à morte. No romance de Steinbeck, o chinês Lee é a ressurreição e a vida. Subtil, subliminar, mas a segura âncora que evita a deriva e o naufrágio do pai de James Dean.
Mais do que a importantíssima discrição com que marca a trama do romance, Lee constitui o seu centro filosófico. Num romance com uma tão forte carga de fatalidade, em que os pares de irmãos parecem nascer só para repetir o mito de Caim e Abel, Lee, obstinado leitor do “Genesis”, repete-lhes uma palavra que é palavra de redenção, “timshel”.
Somos os descendentes de Caim, irmão assassino do seu irmão. Mas convém não esquecer que no libelo acusatório do velho Jeová contra Caim não ressoam apenas os trovões da culpa e da expiação. Esse Deus, que ainda traz nos largos ouvidos o clamor do sangue de Abel, parece prometer ou ordenar que o assassino triunfe sobre o mal. Lee, o cozinheiro chinês, é um mineiro da palavra. Escava e revela, primeiro a Adam, o pai, depois a Caleb, o filho que no filme é James Dean, que Deus nem prometeu, nem ordenou. Deus diz “timshel” a esse homem que vai ser um fugitivo errante sobre a terra. O que quer dizer que ele pode, ou não, triunfar sobre o mal, conforme queira e saiba a sua humana vontade. “Timshel” é a palavra que, posta nas mãos do homem, lhe confere a estatura de um deus.
Tu podes. James Dean deveria no filme, como acontece a Caleb no livro, ouvir “tu podes” da boca do seu cozinheiro chinês. Saberia assim que, desde o “Genesis”, nos é concedido escolher e decidir. O Caleb que James Dean é no filme de Kazan tortura-se, supondo que herdou da mãe o mal que o corrói, o ressentimento contra o pai, o ódio ao irmão. A fatalidade é a mais velha teoria da conspiração.
Também hoje, náufragos da onda destruidora este vírus, em pleno olho do furacão, somos tentados a agarrar-nos ao destino, a velhas e novas teorias da conspiração. Como ao James Dean de Kazan, falta-nos o cozinheiro chinês, exegeta da Bíblia dos ocidentais, para nos vir dizer “tu podes”, devolvendo-nos a responsabilidade da escolha que, sendo só humana, nos converte nos únicos deuses desta terra.
A Guerra e Paz editores faz hoje 14 anos. Sob esta nuvem sombria que nos atormenta não queremos comemorar, nem queremos que nos dêem os parabéns.
Preferimos, como nessa tarde de dia 10 de Abril de 2006, em que na Fundação Gulbenkian apresentámos a Guerra e Paz aos leitores oferecendo-lhes um novo livro de Agustina e uma correspondência inédita de Jorge de Sena e de Sophia de Mello Breyner Andresen, estabelecer um compromisso – um novo compromisso – consigo: comprometemo-nos a sobreviver a este cataclismo que vai tombar sobre o mundo editorial, para servir o livro e servir o livro em todas as suas dimensões, na magnífica e mais nobre dimensão literária e criativa, poética ou romanesca, naquela outra faceta em que o livro é pensamento filosófico, sociológico ou histórico, e mesmo nessa vertente prática, informativa ou de mero entretenimento que serve milhões de leitores. Porque o livro é assim, como o olho de uma mosca, multifacetado, negando as práticas de exclusão, os ditames dirigistas, tanto furtando submeter-se a estritas hegemonias comerciais, como a fundamentalismos culturalistas. Esse espaço amplo do livro entendido em todas as suas gamas é a casa em que a Guerra e Paz quer morar na década que se segue.
E por ser este um tempo dramático, que exige acção a acompanhar os afectos, pedimos aos nossos leitores que em vez dos parabéns passem aos actos e comprem, no site da Guerra e Paz, nas próximas cinco noites e cinco dias, um livro nosso de um dos dois autores que inauguraram a Guerra e Paz, um livro de Agustina ou um livro de Jorge de Sena. Durante esses dias, os livros desses nossos dois autores estarão a um preço de aniversário: apenas 10€. E nós vamos a sua casa entregá-los.
O nosso compromisso é sobreviver no futuro próximo, como editora, para servirmos o livro. O seu, estimado leitor, é o de ler e reencontrar nos nossos livros o sabor da aventura, o sopro da emoção, a satisfação da curiosidade e a busca do conhecimento que justificam estarmos juntos.
A Guerra e Paz editores celebra hoje o seu 14.º aniversário. Assim, com este compromisso. Junte-se a nós!
O professor Victor Correia é um autor sui generis da Guerra e Paz. Anima-o um amor desinteressado pela literatura a que é impossível um editor resistir. Depois de reunir pequenos e pequeníssimos contos, mais raros e pouco lidos, de autores portugueses no livro Pequenas Histórias dos Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa, um livro que merecia ter tido outra recepção crítica e maior adesão dos leitores (isto sou eu a chorar-me, carregadinho de razão), Victor Correia entregou à Guerra e Paz um bestseller, um verdadeiro campeão de vendas e de popularidade.
Estou a falar dos Poemas Eróticos dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses. A fortuna deste livro começou, logo, no programa Governo Sombra, quando João Miguel Tavares o propôs como livro da semana e cada um dos outros intervenientes, Pedro Mexia, Ricardo Araújo Pereira, Carlos Vaz Marques leu versos ardentes de um dos poemas eróticos. E a verdade é que a fortuna deste livro começa na escolha e na abordagem de Victor Correia. Ele escolheu poemas de autores galegos e portugueses (que nem saberiam se eram galegos ou portugueses) escritos na língua que também não se sabia se era só galega ou se já era também portuguesa, isto para seguirmos o que o mestre Fernando Venâncio nos ensina. Victor Correia frequentou a Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma, e logo, lendo este livro, ficamos a pensar nas belas coisas que ali se ensinam, mas não ficou preso a fórmulas canónicas e estritas: é que seleccionou os poemas com critérios académicos, mas depois fez o abençoado sacrilégio de os traduzir para o português contemporâneo, pondo-os ao alcance do leitor comum. Ou seja, deu-lhes vida. O mesmo que, recentemente, o escritor Andrés Trapiello fez em Espanha, “traduzindo” para espanhol contemporâneo o Don Quixote, pondo-o assim ao alcance dos espanhóis que, ao contrário dos portugueses, franceses, ingleses, não podiam ler (e não liam!) o livro no idioma contemporâneo, desistindo muitas vezes perante a barreira do espanhol do século XVII.
Foi o que fez Victor Correia. Fez bem, fez serviço público, como podem ler no excerto que oferecemos. Estes poemas eróticos, a roçar por vezes o escatológico, tratando de casamentos, adultérios, poligamia, incesto, e outras heterodoxias sexuais, são de uma franqueza, de uma candura, diria eu, cristalina, mas não sem ironia e sem um pendor lúdico que nos solidariza com esses humanos que viveram há oito ou nove séculos antes de nós. Eis aqui, na ligação em baixo, a nudez que nos une.
Esta foi uma das minhas Bicas Curtas da semana passada no CM. É uma das medidas que defendo para salvar o livro. Para quem esteja mais distraído – compreensivelmente, tantas são as angústias e os problemas destes dias em que reina um vírus traiçoeiro – o livro, e com ele os autores, editores e livreiros, está ameaçado de morte. Não é alarmismo é a realidade. Esta é uma primeira medida para salvar o livro, sector estratégico para o futuro dos portugueses. Partilhem, por favor.
O livro contra o vírus
O vírus mata portugueses. E mata a economia. Matará o conhecimento se deixarmos que mate o livro. Livro e leitura são a mais sólida forma de adquirirmos saber, ciência e identidade. Mas as livrarias fecharam e os editores não publicam.
Perder o livro é abdicar do futuro. Empresas e Estado têm de salvá-lo. As livrarias, sobretudo Bertrand, FNAC, Sonae, mal voltem, têm de ser apoiadas para não esmagarem os editores com devoluções. Uma medida: em 2020, permitir a cada contribuinte, após apuramento final do IRS, ser ainda ressarcido do valor de 100€ contra factura de compra de livros em livraria. 100€ que matem o vírus da ignorância.
Os trabalhos e os dias de um editor
Manuel S. Fonseca
Cresci com a Guerra Colonial em Angola. Tinha 7 anos quando aconteceu o 4 de Fevereiro, nessa noite em que os «heróis quebraram as algemas» como cantava o hino do MPLA, a que o velho regime salazarista ripostou com o «Angola, Angola é nossa». Durante treze anos vi chegar e partir soldados e, em 1974, vi a guerra mudar de rosto. Do rumor surdo que viera do mato durante esses anos, quase intangível para os habitantes da cidade, passou-se à tonitruante guerra global, na sangrenta guerra da independência de Angola, pela qual deambulei dois anos, estava eu nos meus verdes 20 anos.
Todos os testemunhos sobre a guerra são imprescindíveis. Nos livros de História cada guerra tem um nome, uma identidade, uma interpretação, princípio e fim. Mas, humanamente, a guerra é vivida como experiência pessoal singular e intransmissível por cada um que nela tomba. Este Declarações de Guerra, de Vasco Luís Curado, espelha bem, na diversidade e pluralidade dos testemunhos que recolhe, essa ideia. É um livro de experiência, de canções de experiência e de perda de inocência. Vasco Luís Curado, psicólogo clínico, que trabalha com veteranos de guerra, recolheu e seleccionou esses testemunhos. Muito melhor do que eu, dá-nos as razões para lermos hoje – hoje mesmo – este seu livro. Ouçam-no:
«Em tempo de pandemia, prospera a metáfora da guerra.
Para unir a população, nada é mais mobilizador do que comparar o vírus contagioso a um inimigo, as estratégias para a debelar a um combate, os profissionais de saúde a combatentes na linha da frente. Disciplinamo-nos como soldados num quartel, em obediência às instruções de isolamento social preventivo.
Em Declarações de Guerra, os veteranos da guerra colonial relembram-nos que, entre nós, há quem tenha vivido uma guerra verdadeira. Temos muito a aprender com eles: lendo o seu testemunho, percebemos o que é ser um combatente, sem a retórica, por vezes ilusória, de uma metáfora.»
E, para sentir a crua intensidade dos discursos vividos, sem véus, leia este excerto.