A sórdida fama

Bica Curta servida no CM, 4.ª, dia 31 de Julho

carl-beech-defence

Carl Beech foi violado pelo seu padrasto, um militar, conluiado com outras altas figuras da finança e da política britânicas. Alguns jornalistas e a polícia levaram-no ao colo. Beech arrasou reputações de gente da alta, acusou até um ex-primeiro-ministro e as suas emotivas aparições levaram os ingleses às lágrimas.

Descobriu-se agora que da boca do justiceiro Beech só saíram mentiras descaradas: o tribunal provou que não foi vítima coisa nenhuma e condenou-o a 18 anos de prisão. Assustador é, hoje, ser o estatuto de vítima a dar os famosos 15 minutos de fama de Andy Warhol. Terrível para a justiça e para as vítimas verdadeiras.

Um elefante para o Papa Francisco

reiManuel
rei felicíssimo

Não sei se, com os seus protestados e sinceros votos de pobreza, o papa Fran­cesco tem o nosso rei D. Manuel I em boa conta. Espero que sim. Por­que se algum dia o Cas­telo de Sant’Angelo viveu um momento de ale­gria e gló­ria ao nosso rei o deve.

Não vou gabar a vir­tude de D. Manuel, o Feli­cís­simo, rei sur­presa por obra e graça da mor­tan­dade em que uma certa idi­os­sin­cra­sia cons­pi­ra­tiva mer­gu­lhou D. João II. Com razão ou sem, D. João II viu fan­tas­mas em todos os recan­tos, sobre­tudo no seio, pelos vis­tos insi­di­oso, da famí­lia, tendo exi­lado ou assas­si­nado, em casos extre­mos pela sua mão, os her­dei­ros direc­tos do trono. Sobrou-lhe este primo direito, D. Manuel, que D. João II fez ques­tão de nomear her­deiro legí­timo da coroa.

Esco­lha acer­tada. No rei­nado deste sobe­rano quase por acaso, o Gama fez, pela pri­meira vez na his­tó­ria da huma­ni­dade, o cami­nho marí­timo que levava de Lis­boa à Índia e Pedro Álva­res Cabral, pre­me­di­tada ou oca­si­o­nal­mente, che­gou ao Bra­sil, por mais que, agora, um município brasileiro tenha escolhido para seu descobridor um virginal andaluz saleroso, um tipo de Palos de la Frontera, logo ali ao lado dessa Huelva de tão bom jámon.

D. Manuel I, e ainda não é disto que venho falar, foi Senhor do Comér­cio, da Con­quista e da Nave­ga­ção da Ará­bia, Pér­sia e Índia, o que sig­ni­fica que tinha os cofres bem mais reche­a­dos do que agora o nosso rigoroso minis­tro Centeno. Tal­vez nunca tenha­mos sido tão ricos, tão impe­ri­ais e expan­si­o­nis­tas, tudo afa­gado pelo tem­pero abso­lu­tista (mas ilu­mi­nado) com que esta coro­ada cabeça pla­neou e cum­priu o seu reinado.

guloseimasPapa
o menino e as guloseimas

Che­guei então onde que­ria. Em 1514, com pompa e cir­cuns­tân­cia, com luxo e exo­tismo, D. Manuel esma­gou Roma com a embai­xada que enviou ao Papa Leão X. O cor­tejo de rique­zas, de pedras finas e jóias, de teci­dos ultra­jan­te­mente macios (falam-me de seda lavrada e mati­zada), de bro­ca­dos e fili­gra­nas, bas­ta­ria para que os olhi­nhos de Leão X bri­lhas­sem de muito mate­rial ale­gria (isenta de alienação marxista).

D. Manuel capri­chou como nenhum por­tu­guês pode­ria hoje capri­char. O nobre Tris­tão da Cunha que diri­gia a sump­tu­osa embai­xada – acom­pa­nhado por tão íncli­tas figu­ras como Diogo de Pacheco e Gar­cia de Resende – levava con­sigo mais esplên­di­dos e lúdi­cos pre­sen­tes. Um cavalo persa mon­tado por um caça­dor de Ormuz, uma pan­tera domes­ti­cada, o escan­da­loso mul­ti­co­lo­rido de papa­gaios e ara­ras, o indis­ci­pli­nado equi­li­brismo de maca­cos foram a mais exó­tica expres­são do poder e da riqueza com que D. Manuel quis, mani­fes­tando a obe­di­ên­cia de fiel servo, cati­var o Papa para os fins polí­ti­cos que tinha em vista, os do reco­nhe­ci­mento das des­co­ber­tas e con­quis­tas dos ter­ri­tó­rios que cons­ti­tuíam o impé­rio, esse nosso impé­rio que, então, com as asas do sol se media.

o elefante
a tromba no balde

Ter­mi­nei? Falta às péro­las e ouro o toque sump­tuá­rio: Leão X que era sen­sí­vel às coi­sas do mundo (o que Lutero, o aus­tero e seco Lutero, muito lhe cen­su­rou) viu o des­file de tanta tão rica sur­presa como um menino a rece­ber gulo­sei­mas. E o momento mais insu­por­ta­vel­mente açu­ca­rado teve lugar no fecho da parada, quando sur­giu um ele­fante.

Hanno, o ele­fante branco, foi o modo que o nosso ven­tu­roso rei encon­trou para cumu­lar de gozo o brando espí­rito papal. Hanno, o branco ele­fante, quando viu o Papa, ajo­e­lhou três vezes e, conta o Padre Manuel Ber­nar­des, logo meteu a tromba num balde de água (de rosas, claro) que um servo ao lado tra­zia, bor­ri­fando com ela o séquito car­di­na­lí­cio e, a seguir, o espa­ven­tado povo romano que assis­tia. Hanno, com as suas guar­ni­ções de ouro maciço, tocou o cora­ção venal de Leão X, que o con­ser­vou como sua mas­cote. Viti­mado por uma angina, mor­re­ria, na corte pon­ti­fí­cia a 8 de Junho de 1516.

Ainda hoje, na lin­gua­gem popu­lar ita­li­ana há um ingrato e equívoco resquí­cio de tanta gala e osten­ta­ção. Chama-se por­tughese aos bor­lis­tas, às pes­soas que ten­tam infiltrar-se sem pagar em espec­tá­cu­los ou fes­tas e afins. Há quem pense que isso se deve à con­di­ção humilde e vaga­mente manhosa dos por­tu­gue­ses con­tem­po­râ­neos, entre os quais me conto. Mas não. O que acon­te­ceu, em 1514, foi que, des­lum­bra­dos pelo espec­tá­culo que lhe ofe­re­cê­ra­mos, nas fes­ti­vi­da­des que se segui­ram, os roma­nos, quando apa­re­ciam os por­tughese, mesmo sem con­vite, davam-lhes entrada ime­di­ata e gratuita. Era uma honra ter nas festas esta gente que invadira Roma a tigres, papagaios e um elefante.

Trump e Xi Jinping

USA

Bica Curta servida no CM, 3.ª, dia 30 de Julho

A economia americana está em ciclo de expansão há 121 meses. É o mais longo período de crescimento desde a segunda metade do século XIX, sólido argumento eleitoral para Trump. Se o chinês Xi Jinping precisasse de argumentos eleitorais, podia também dizer que a China já leva 30 anos sem recessão económica.

Curioso é que a fixação da teoria dos ciclos económicos é de um economista soviético, Nicolai Kondratiev. Estaline é que não esteve pelos ajustes: caminhada triunfal para o paraíso, a economia comunista não tinha cá ciclos. Ouviu Kondratiev e logo o despachou para a Sibéria. Depois, por via das dúvidas, mandou fuzilá-lo.

A eternidade nunca mais acaba

Rimbaud
Arthur Rimbaud

Elle est retrouvée.
Quoi ? — L’Éternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.

Estes quatro versos pertencem a um poema, L’eternité, de Jean-Arthur Rimbaud. Escreveu-o em Maio de 1872. Dois anos depois, retocou-o, mudando para mêlée o que antes dissera allée.

A transcendência que exala destes versos diminuirá se soubermos que a razão prosaica que os inspirou foi a paixão carnal do jovem Rimbaud pelo mais maduro Verlaine, outro poeta, a quem queria convencer que saísse de casa, abandonando a jovem mulher, para vir viver com ele?

Um mês depois, a verdade é que Verlaine deixou Mathilde. Mêlée onde antes estava allée.

Rimbaud morreu cedo. Viveu a mais paradoxal das vidas. Foi o breve e indelével relâmpago que sabemos na poesia francesa. Explorou-se a si mesmo ao limite, num je est un autre físico que quase ofusca o seu motto poético: fugas sucessivas de casa, viagens intranquilas e extenuantes por toda a Europa, a experiência da miséria, a fadiga do vagabundo.

Amante de Verlaine (que depois o baleou e se converteu ao catolicismo), Rimbaud, por delicadeza ou incandescente desejo de aventura, deixou tudo – deixou Verlaine, deixou a poesia, deixou a França – e partiu aos 22 anos para a Etiópia onde (na apócrifa biografia de que eu gosto) traficou escravas, guardando algumas delas como amantes. As biografias mais rigorosas confirmam as amantes, mas dizem que era de armas e café o tráfico a que se dedicava, na expectativa de enriquecer de vez (com a mesma poética ganância de qualquer Madoff).

Morreu jovem, aos 37 anos, por muito o amarem os deuses ou por, quem sabe, já não terem paciência para o aturarem. “Par delicatesse j’ai perdu ma vie”, foi frase que deixou para que lha escrevessem no epitáfio.

FantinLatour
Sentado, Verlaine é o 1º à esq, Rimbaud ao seu lado, também sentado. Quadro de Fantin-Latour.

 

adieu to you, ladies of Spain

Borges

Senhoras da Nossa Idade é um blogue escrito pela Céu. Aqui há atrasado, como se costuma dizer, a Céu, muito simpaticamente, convidou-me, como já convidou mais de uma centena de pessoas, a responder a um inquérito. Um inquérito feito à medida de alguém que gosta de ler. Respondi e acho que, mesmo mais de um ano depois não é despropositado depositar as respostas nesta Página Negra. Agradecendo muito à Céu e às Senhoras da Nossa Idade o convite e dizendo que foi uma alegria responder e ver tudo publicado num blogue tão bem frequentado, convido-vos a irem lá fazer uma visita. Vão, estou certo, ficar clientes.

E agora o inquérito.

1. O que está a ler neste momento?

Estou a ler, por obrigação profissional e por gosto a Economia do Bem Comum, um livro de Jean Tirole, Prémio Nobel da Economia, que vou publicar já no dia 15 de Maio. Uma lição: só há serviço aos outros onde há pensamento e inteligência. Mas no fim de semana comecei também a ler, de um americano de ascendência russa, Yuri Slezkine, um livro monumental, de 1290 páginas, que se há-de vir a chamar, se for um dia traduzido para português, A Casa do Governo, A Saga da Revolução Russa. Um livro prodigioso sobre um fenómeno criado por Estaline. Estão a ver o edifício das Amoreiras? Bom, ele mandou fazer uma construção monumental desse tipo: 505 apartamentos, para as famílias bolcheviques no poder, com biblioteca, refeitório, teatro, courts de ténis, correios. Estava ali a elite e estava ali o modo de vida quotidiano comunista. Ali se beijava a boca comunista da glória e ali se caía em desgraça e se era preso por traição. Que inveja raivosa Shakespeare teria deste teatro vivo de sangue, tortura e lágrimas que faz de Hamlet e Macbeth meninos de coro.

2. O que leu antes e o que vai ler a seguir?

Li antes uma biografia de Louis B. Mayer, Merchant of Dreams, de Charles Higham, e vou ler agora, de Alain Tapié, Vanité, Mort Que Me Veux-Tu?, um livro-catálogo, lindíssimo, que acompanhou, em 2010, a exposição homónima da Fundação Bergé-Yves St. Laurent. É das Éditions de la Martinière, que tem a ousadia de editar certos livros na linha das edições de luxo da minha Guerra e Paz editores, mas com dinheiro à séria.

3. Conte-nos uma memória de infância relacionada com livros

Li um livro de Zane Gray, Ouro do Deserto, julgo, que metia uma misteriosa, doce e tensa mulher mexicana chamada Mercedes, um bandido chamado Rojas e um índio Yaqui que se fundia com as sombras, as ervas e o vento. Quis ser esse índio e é provável que ainda hoje eu ame Mercedes como jamais algum homem amou uma mulher.

4. Que livros marcaram a sua adolescência?

O Fio da Navalha, de Somerset Maugham. A Náusea, de Sartre. Tortilla Flat e A Leste do Paraíso, de John Steinbeck. Lord Jim, de Joseph Conrad. Terna é a Noite, de Fitzgerald. Os indecorosos livros proibidos do Vilhena. Alguns poemas de Fernando Pessoa ditos por João Villaret. Os Centuriões e Os Pretorianos, de Jean Lartéguy. O Canto IX de Os Lusíadas. Salambó, de Gustave Flaubert.

5. Um local público onde goste de ler

Gosto de ler nos jardins da Gulbenkian. Gostaria de poder ter lido nas calles que Jorge Luis Borges cantou no seu Fervor de Buenos Aires.

6. O seu recanto preferido de leitura (em casa)

Quando era miúdo, em Luanda, na Vila Alice, lia sentado, horas seguidas, nos ramos da mangueira do meu quintal. Não é fantasia, é mesmo verdade. Agora, com três almofadas, na vasta planície que é a minha cama.

7. Uma biblioteca importante para si

A tão bonita biblioteca do mais belos dos liceus, o Salvador Correia, onde li O Crime do Padre Amaro, joelho contra joelho de uma colega de longas pernas. A Biblioteca da Câmara Municipal de Luanda – vinha cá para fora, para o relvado sobre a Mutamba, e foi assim que li As Vinhas da Ira. Depois, a Biblioteca Nacional de Angola, dirigida pelo professor Carmo Vaz, no começo dos anos 70. Foi lá que ao ouvido me sussurraram o 25 de Abril que houvera na distante Lisboa.

8. As livrarias que costuma visitar

A minha primeira livraria fornecedora foi a livraria Goya, na Avenida dos Combatentes, em Luanda, só depois a Lello, na Baixa. Agora, em Lisboa, passo muitos fins de tarde na Bertrand Picoas-Plaza, mas a apresentar livros. Gostava da Pó dos Livros. Gosto da Livraria Francesa, devia ir lá mais vezes.

9. Uma editora de que goste particularmente

Da Guerra e Paz editores, está claro 🙂 . Mas gosto da Dom Quixote, da Quetzal, da Relógio de Água, da Porto Editora, da Presença, da Tinta da China, da Leya, da Bertrand, da Gradiva, da Antígona, da Imprensa Nacional, da Paulinas, da Sistema Solar, da Planeta e da Penguin. Gosto da diferença entre os grandes e os pequenos editores. Gosto dos editores que chamam negócio ao negócio e gosto dos editores que julgam ser sacerdotes dominicanos em defesa dos happy few. E, olhem, tenho saudades da Assírio do Hermínio Monteiro. Podiam ser insustentáveis, mas eram uns tempos deliciosos, uma espécie de kir royal de fim de tarde.

10. Que livros gostaria de reler?

Estou sempre a reler o raio de um livro que o meu professor de Filosofia Antiga e História e Filosofia das Ciências, o José Gabriel Trindade dos Santos, me deu em Novembro de 1980. É um calhamaço verde, da Emecé Editores, e tem parte da Obra Completa (1923-1972) de um poeta cego rendido «a los espejos, laberintos y espadas» e também a «el outro y el olvido». O velho volume já se vai desfazendo, soltam-se páginas, apagam-se algumas letras, mesmo um inteiro verso. Na decadência dele, a minha decadência: morreremos nos braços um do outro.

11. Que livros está a guardar para ler na velhice?

Já nada guardo, nem tão pouco a velhice. Se é para o apocalipse, apocalipse now.

12. Acessórios de leitura que não dispensa

Já dispenso muitas vezes os óculos de ver ao perto. Voltei a ler de olhos nus, sem intermediação, as piedosas pestanas a roçar a meiga página.

13. E se um livro não prende, põe-se de lado ou insiste-se?

Nada de promiscuidade, já só leio por amor.

14. Costuma ler sobre livros? Quais são as suas fontes?

Claro, claro. Na Le Point, belíssima revista francesa de centro-direita. Num filosófico agregador australiano, o Arts & Letters Daily que me selecciona o que de melhor se pode ler diária ou semanalmente no TLS, Aeon, New Yorker, Beirut Daily Star, Arion, Jerusalem Post, Cabinet, Fortnightly Review, Laphams Quarterly, Philosophy & Literature, enfim uma snobeira desatada que já me aconteceu descambar em simplicidade e beleza.

15. Uma citação inesquecível que queira dedicar às Senhoras da Nossa Idade

Se me permitem, cantar-lhes-ei uma canção:
Farewell and adieu to you, Spanish ladies
Farewell and adieu to you, ladies of Spain;
For we have received orders
For to sail to old England,
And we may ne’er see you fair ladies again.

DesertGold

De viés

ai Lisboa

De vez em quando, dá-me para fotografar. Ora, se o mundo é como eu o retrato, das duas uma: ou o mundo está torto ou eu sou um gajo enviesado.

rua céu

E é que tanto é de noite como de dia!

interior

E tanto em exteriores como em interiores.

Sombra

De onde se conclui, o que uma destas mornas noites de Verão atestou, que a fotografar sou uma sombra de mim mesmo.

José Massano Jr.

massano

Antes de saber dizer o nome de Massano Jr, quando eu era candengue soube outros nomes. Nomes de que me lembro: Negoleiros do Ritmos. Anos 60: ensaiaram na minha rua de Luanda.

Depois, os Africa Show.  Já anos 70, não é? Mas tenho a certeza de que os mais vivos e os mais kotas já sabiam que a alma era Massano Jr., percussionista do catano,  mesmo se o som rasgativo do órgão do Tony Galvão impressionasse o povo. É mesmo. Do que não havia dúvida é que Massano era a alma criativa, casulo de imaginação e inquietação. O miúdo Massano já fora cantor de quintal no Bairro Operário, vencedor de concursos. E foi, na sua plenitude, o criador de canções como Anami.  Para ouvirmos aqui.

Mas ainda mais litúrgico e comovente, têm de o ouvir em Ai ué mamã. Este é Massano Jr, percussionista, cujos cotovelos, mãos, pés, dizem-me que até a cabeça, conviviam com as tumbas, bongós, caixa. Rei dos tambores, cantor de Papá Vá Fva, a elegíaca Minga ou a trepidante Sunga, Sunga, Teresinha, este é Massano!

E vêm aí mais canções da minha infância.