
Não sei se, com os seus protestados e sinceros votos de pobreza, o papa Francesco tem o nosso rei D. Manuel I em boa conta. Espero que sim. Porque se algum dia o Castelo de Sant’Angelo viveu um momento de alegria e glória ao nosso rei o deve.
Não vou gabar a virtude de D. Manuel, o Felicíssimo, rei surpresa por obra e graça da mortandade em que uma certa idiossincrasia conspirativa mergulhou D. João II. Com razão ou sem, D. João II viu fantasmas em todos os recantos, sobretudo no seio, pelos vistos insidioso, da família, tendo exilado ou assassinado, em casos extremos pela sua mão, os herdeiros directos do trono. Sobrou-lhe este primo direito, D. Manuel, que D. João II fez questão de nomear herdeiro legítimo da coroa.
Escolha acertada. No reinado deste soberano quase por acaso, o Gama fez, pela primeira vez na história da humanidade, o caminho marítimo que levava de Lisboa à Índia e Pedro Álvares Cabral, premeditada ou ocasionalmente, chegou ao Brasil, por mais que, agora, um município brasileiro tenha escolhido para seu descobridor um virginal andaluz saleroso, um tipo de Palos de la Frontera, logo ali ao lado dessa Huelva de tão bom jámon.
D. Manuel I, e ainda não é disto que venho falar, foi Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia, o que significa que tinha os cofres bem mais recheados do que agora o nosso rigoroso ministro Centeno. Talvez nunca tenhamos sido tão ricos, tão imperiais e expansionistas, tudo afagado pelo tempero absolutista (mas iluminado) com que esta coroada cabeça planeou e cumpriu o seu reinado.
Cheguei então onde queria. Em 1514, com pompa e circunstância, com luxo e exotismo, D. Manuel esmagou Roma com a embaixada que enviou ao Papa Leão X. O cortejo de riquezas, de pedras finas e jóias, de tecidos ultrajantemente macios (falam-me de seda lavrada e matizada), de brocados e filigranas, bastaria para que os olhinhos de Leão X brilhassem de muito material alegria (isenta de alienação marxista).
D. Manuel caprichou como nenhum português poderia hoje caprichar. O nobre Tristão da Cunha que dirigia a sumptuosa embaixada – acompanhado por tão ínclitas figuras como Diogo de Pacheco e Garcia de Resende – levava consigo mais esplêndidos e lúdicos presentes. Um cavalo persa montado por um caçador de Ormuz, uma pantera domesticada, o escandaloso multicolorido de papagaios e araras, o indisciplinado equilibrismo de macacos foram a mais exótica expressão do poder e da riqueza com que D. Manuel quis, manifestando a obediência de fiel servo, cativar o Papa para os fins políticos que tinha em vista, os do reconhecimento das descobertas e conquistas dos territórios que constituíam o império, esse nosso império que, então, com as asas do sol se media.
Terminei? Falta às pérolas e ouro o toque sumptuário: Leão X que era sensível às coisas do mundo (o que Lutero, o austero e seco Lutero, muito lhe censurou) viu o desfile de tanta tão rica surpresa como um menino a receber guloseimas. E o momento mais insuportavelmente açucarado teve lugar no fecho da parada, quando surgiu um elefante.
Hanno, o elefante branco, foi o modo que o nosso venturoso rei encontrou para cumular de gozo o brando espírito papal. Hanno, o branco elefante, quando viu o Papa, ajoelhou três vezes e, conta o Padre Manuel Bernardes, logo meteu a tromba num balde de água (de rosas, claro) que um servo ao lado trazia, borrifando com ela o séquito cardinalício e, a seguir, o espaventado povo romano que assistia. Hanno, com as suas guarnições de ouro maciço, tocou o coração venal de Leão X, que o conservou como sua mascote. Vitimado por uma angina, morreria, na corte pontifícia a 8 de Junho de 1516.
Ainda hoje, na linguagem popular italiana há um ingrato e equívoco resquício de tanta gala e ostentação. Chama-se portughese aos borlistas, às pessoas que tentam infiltrar-se sem pagar em espectáculos ou festas e afins. Há quem pense que isso se deve à condição humilde e vagamente manhosa dos portugueses contemporâneos, entre os quais me conto. Mas não. O que aconteceu, em 1514, foi que, deslumbrados pelo espectáculo que lhe oferecêramos, nas festividades que se seguiram, os romanos, quando apareciam os portughese, mesmo sem convite, davam-lhes entrada imediata e gratuita. Era uma honra ter nas festas esta gente que invadira Roma a tigres, papagaios e um elefante.
Que história tão bonita e tão bem contada. Se eu fora jovem e universitária, na próxima época, inscrevia-me no curso correspondente. Mas talvez não fosse tão aprazível.
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Obrigado pela nota sobre a narrativa. Quanto ao curso universitário é que já não sei nada 🙂 mas pelas dicas que tem deixado, não me parece que precise de voltar aos banquinhos escolares, mesmo nada.
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