Bica Curta servida no CM, 4.ª feira, dia 17 de Julho
Chineses, europeus, africanos, o que é que nos aproxima? Ouvi a resposta, tomava eu a bica curta: o que ajuda é conhecermo-nos. E conhecemo-nos cada vez mais. Em 2019, vamos bater o recorde de passageiros a viajar de avião. Mais de quatro mil e quinhentos milhões de passageiros vão saltar de país em país. Em 1970, só viajavam 300 milhões. As classes médias dos países emergentes estão a mudar céu e terra. O ano passado, só chineses foram 550 milhões a experimentar as delícias do avião, a felicidade de conhecer outros povos, línguas, culturas.
Eis um programa de combate a xenofobias e racismos: viajar e receber os que viajam.
Talvez ninguém queira entrar num quarto escuro se souber que está em Jerusalém. Mas é num quarto escuro que estão, e podem ser vistas publicamente, as 46 páginas manuscritas por Albert Einstein para expor a sua teoria da relatividade, que hoje é tão nossa por muito pouco que, diga-se a verdade, a compreendamos (falo por mim), e por outro tanto que, nos gestos quotidianos, sobranceiros a ignoremos. A menos que comecemos a beijar-nos e a fazer outras carinhosas coisas a uma velocidade superior à da luz e, nesse caso, comecem na nossa apaixonada mente, a surgir dúvidas quanto a, do ponto de vista da amada boca, estarmos em absoluto repouso ou em relativo movimento. (Isto está tudo errado, já sei, sem uma palavra que seja sobre a forma como os campos gravitacionais, e são tão fortes os de dois amantes, afectam o tempo e o espaço, mas é sabida, neste blog, a minha tendência para a leviandade e fraco humor).
Para que conste, e por causa de um paper intitulado “Sobre a Electrodinâmica dos Corpos em Movimento”, fez em Março 124 anos que aquela icónica e wharoliana cabeça com língua de Mick Jaeger publicou a sua “especial teoria da relatividade”. O que me impressiona, nas fotos que vi, é a impecável e rigorosa organização da escrita de Einstein. Alinhadinha, miúda e segura (como a de Agustina Bessa-Luís), apoiada em esboços e desenhos a roçar o perfeccionismo, o que assegura aos manuscritos um valor estético de que Einstein era particularmente orgulhoso.
Há uns anos tive o prazer de subir esta escadaria: UCLA
Bica Curta servida no CM, 3.ª feira, dia 16 de Julho
O novo PREC, Polémica Racial Em Curso, tem um mérito: pôs a nu o medo na universidade. Num artigo veemente e frontal, o sociólogo Gabriel Mithá Ribeiro acusou a universidade de ostracizar quem não pensa pela cartilha de esquerda nas chamadas ciências humanas.
Mas o medo de falar – essa velha insídia salazarista – já passou da universidade à vida social. O espectro de décadas de pensamento unidimensional, a que a esquerda se rendeu, assombra cada conversa, cada bica curta. Há uma ameaça de censura e de exclusão, que não honram a liberdade de pensamento e a vontade de saber que esquerda e direita não extremistas têm de partilhar.
Hoje a minha mãe faria 93 anos, não tivesse ido a enterrar há 6 anos. Tanto se pode ir a enterrar no passado como a ir enterrar no futuro. Nesta canção vai-se a enterrar no presente. Ouvi-a esta manhã. Não sei se é belíssima, se é terrível. Passou por mim o vento de saudade de um tempo menos pesado: When we all fall asleep, where do we go?
Norman Mailer está nu e morto há quase 12 anos, desde Novembro de 2007. Li nestas curtíssimas férias, o livro que escreveu sobre o célebre combate de Muhammad Ali e George Foreman, em Kinshasa. Chama-se, sem mais, “O Combate”. Escrita directa, cada frase um gancho, às vezes de direita, às vezes de esquerda. Uma paixão sem freio por Ali.
Sobre Mailer, e sem punhos de renda, escreveram-se, pouco depois da sua morte, dois livros. Um é da sua mulher, Norris Church Mailer. O outro, da sua amante, Carole Mallory, que ele amou, e ela a ele, durante nove anos. “A Ticket to the Circus” chama-se um, “Loving Mailer” o outro.
Coincidem em vários pontos, relatando as lendárias antipatias do escritor, a raiva que tinha a certos advérbios e, por razões menos gramaticais, a certos contraceptivos. Tem piada, ambas lhe agradecem a forma como, mentor, as animava a escrever. Ambas se lembram da escandaleira que foi a primeira noite de sexo: “Take off your panties, I want to experience your soul” lembra-se Carole de ele lhe ter dito.
Ambas suavizam a ideia de que Mailer tenha sido – pelo menos com elas – um tipo violento, e Norris até confessa que foi ela quem lhe acertou um murro no queixo, numa discussão. Ambas tiveram outras aventuras, Norris com Bill Clinton, antes de Mailer a conhecer, Carole uma longa lista de Oscarizados, incluindo Robert De Niro, Clint Eastwood e Warren Beatty. A chave, a verdadeira chave da paixão, confessam Norris e Carole, foi a mesma.
Norris fala do peito peludo dele que lhe servia de almofada, mas sobretudo do “splendid cock” que ele possuía.
Para Carole, Mailer parecia o Humpty Dumpty, quase ridículo, mas com um trunfo apreciável: “if his penis weren’t so beautiful, I would have left.”
Nenhuma o deixou o que não é certamente a pior homenagem que se pode prestar a um escritor.
Um olho perdido na Bastilha… mas este é Sade ou é Camões?
Agora que os meus olhos, que nunca foram grande coisa, já não são o que eram e ameaçam ficar piores, lembrei-me de que as artes e as letras até não se dão mal com a cegueira. O diabo é a exigência de um talento desmedido. Que é que querem, não se pode ter tudo… mas posso, ao menos, e para não cansar a vista, ir buscar esta velha lista de ceguinhos. E não lhe acrescento, injusto, António Feliciano de Castilho.
***
Se Camões não tivesse perdido um olho teria escrito a exacta obra que nos deixou? E a Homero, quem o cegou? A lança de um troiano?
Jorge Luis Borges, poeta de ouro e tigres, era cego e viajante impenitente. Viajou muito, de cidade em cidade. Há imagens dele de Paris, Cairo, Roma, Creta, Istambul, Filadelfia, Genebra ou Buenos Aires. Quero acreditar que haverá uma de Lisboa. São imagens paradoxais das viagens de um escritor cego que nelas se obstinava em cumprir o imperativo do acaso. Diz Maria Kodama, companheira do poeta, que escolhiam os destinos das suas viagens abrindo o atlas e deixando que “las yemas de los dedos adivinaran lo imposible: la aspereza de las montañas, la tesura del mar o la mágica protección de las islas”.
Por improvável que a associação pareça, cegueira e escritores são estrelas que cintilam juntas, há séculos, em noites de tormenta. Para além de Borges, que escreveu parte substancial da sua obra, “prisionero de un tiempo soñolientò / Que no marca su aurora ni su ocaso”, evoco a empobrecida visão de Wordsworth que, na matura idade, não conseguia ler mais do que 15 minutos de cada vez:
Though absent long, These forms of beauty have not been to me, As is a landscape to a blind man’s eye
Do divino e sádico Marquês diz-se que, como o luso poeta, terá perdido um olho quando esteve na cadeia – e que importava, naquela Bastilha, perder-se um olho guardando-se a alma, a quem tão bem sabia que toda a felicidade reside na imaginação.
Também os olhos russos de Dostoiveski, mais castigado um do que outro, sofreram com os ataques de epilepsia que não o pouparam desde os 20 anos.
Um ataque de glaucoma obrigou Joyce à tortura de sucessivas operações que explicam a pala que usava sobre o olho esquerdo. Nem por isso amou menos a Nora, escrevendo-lhe cartas que dão vista a qualquer cego.
Aos 46 anos, Milton, já cego, escreveu Paradise Lost com a ajuda das suas três filhas.
Aldous Huxley só não seguiu a carreira científica (não lhe teria ficado mal) por ter ficado virtualmente cego e (o que me terá dado para juntar os dois!) Gabrielle d’ Annunzio perdeu o aventureiro olho esquerdo quando foi atingido por bala inimiga, num voo durante a Primeira Grande Guerra,
Não conto nem falo dos que, no fim da vida, como Jean-Paul Sartre, tombaram no poço de trevas que rouba as formas dos rostos e das rosas, ficando obrigados a só escrever ditando.
Definitivamente a escrita não é uma arte da visão, mas só cosa mentale de personagens berkeleyanos.
“… and your eyes more bright
Than stars that twinkle in a winter’s night.” John Dryden (1631−1700) The Conquest of Granada.
A epilepsia de Dostoievski ou o torturado olho de Joyce? É que cada vez estou a ver pior.