
Agora que os meus olhos, que nunca foram grande coisa, já não são o que eram e ameaçam ficar piores, lembrei-me de que as artes e as letras até não se dão mal com a cegueira. O diabo é a exigência de um talento desmedido. Que é que querem, não se pode ter tudo… mas posso, ao menos, e para não cansar a vista, ir buscar esta velha lista de ceguinhos. E não lhe acrescento, injusto, António Feliciano de Castilho.
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Se Camões não tivesse perdido um olho teria escrito a exacta obra que nos deixou? E a Homero, quem o cegou? A lança de um troiano?
Jorge Luis Borges, poeta de ouro e tigres, era cego e viajante impenitente. Viajou muito, de cidade em cidade. Há imagens dele de Paris, Cairo, Roma, Creta, Istambul, Filadelfia, Genebra ou Buenos Aires. Quero acreditar que haverá uma de Lisboa. São imagens paradoxais das viagens de um escritor cego que nelas se obstinava em cumprir o imperativo do acaso. Diz Maria Kodama, companheira do poeta, que escolhiam os destinos das suas viagens abrindo o atlas e deixando que “las yemas de los dedos adivinaran lo imposible: la aspereza de las montañas, la tesura del mar o la mágica protección de las islas”.
Por improvável que a associação pareça, cegueira e escritores são estrelas que cintilam juntas, há séculos, em noites de tormenta. Para além de Borges, que escreveu parte substancial da sua obra, “prisionero de un tiempo soñolientò / Que no marca su aurora ni su ocaso”, evoco a empobrecida visão de Wordsworth que, na matura idade, não conseguia ler mais do que 15 minutos de cada vez:
Though absent long,
These forms of beauty have not been to me,
As is a landscape to a blind man’s eye
Do divino e sádico Marquês diz-se que, como o luso poeta, terá perdido um olho quando esteve na cadeia – e que importava, naquela Bastilha, perder-se um olho guardando-se a alma, a quem tão bem sabia que toda a felicidade reside na imaginação.
Também os olhos russos de Dostoiveski, mais castigado um do que outro, sofreram com os ataques de epilepsia que não o pouparam desde os 20 anos.
Um ataque de glaucoma obrigou Joyce à tortura de sucessivas operações que explicam a pala que usava sobre o olho esquerdo. Nem por isso amou menos a Nora, escrevendo-lhe cartas que dão vista a qualquer cego.
Aos 46 anos, Milton, já cego, escreveu Paradise Lost com a ajuda das suas três filhas.
Aldous Huxley só não seguiu a carreira científica (não lhe teria ficado mal) por ter ficado virtualmente cego e (o que me terá dado para juntar os dois!) Gabrielle d’ Annunzio perdeu o aventureiro olho esquerdo quando foi atingido por bala inimiga, num voo durante a Primeira Grande Guerra,
Não conto nem falo dos que, no fim da vida, como Jean-Paul Sartre, tombaram no poço de trevas que rouba as formas dos rostos e das rosas, ficando obrigados a só escrever ditando.
Definitivamente a escrita não é uma arte da visão, mas só cosa mentale de personagens berkeleyanos.
“… and your eyes more bright
Than stars that twinkle in a winter’s night.”
John Dryden (1631−1700) The Conquest of Granada.

Camilo também não ficou bem…
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Nada bem. Falha imperdoável, até por causa do filme do Oliveira que vi na antestreia na Expo de Sevilha…
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