A canção chama-se uma coisa em espanhol, outra em inglês. Vale a pena contar a história quanto mais não seja por haver já, dela, 1001 interpretações. Hoje, cantam-na Michael Bublé, a francesa Arielle Dombasle, a mediática Jennifer Lopez, o excelente Peter Cincotti. Cantaram-na Dean Martin, Eydie Gormé, Julie London e Los Panchos.
Comece-se, então e como deve ser, pelo principio. Era uma vez uma canção chamada “Quién Será”, tão cheia de ritmo e de balanço que um dia teria de se chamar “Sway”. Pablo Béltran Ruiz, estudou um ano de leis e três de química. Acabou músico. Mexicano e maestro, escreveu, com Luiz Demetrio, um belo mambo em 1953, ano em Estaline morreu e milhões de russos felizardos nasceram (e também eu, ao lado do Côa, o rio da minha aldeia). Chamou-lhe “Quien Será”.
“Quién Será” era um cha-cha-cha ou mambo, com ritmo doce e lírico que, um ano depois, o cinema mexicano adoptou, numa interpretação a que Pedro Infante emprestou uma ironia benigna, sublinhada sem acinte pela realização.
É uma canção simples, à volta de uma mitologia masculina simples. Não repeti o qualificativo por acaso: a canção, de tão simples, duas vezes simples, é mesmo maravilhosa. A Pedro Béltran Ruiz – que se manteve à frente da sua banda, quase até morrer, em 2008 – é de agradecer, com recuada e humilde vénia, a cortesia dos milhões de passos de dança que o seu “Quién Será” ofereceu a salões de bailes, y por supuesto a casais apaixonados, a cônjuges e adúlteros, num tempo em que o amor era de maior idade, com todas as barreiras e sem a mariquice fácil da lei do divórcio em coro e contrabaixo.
Por mais danzóns, merengues, cumbias e boleros que se tenham dançado, “Quién será la que me quiera a mi / Quién será la que me de su amor / Quién será, quién será” foram, em 1953, as estrofes do México. Todo. Inteiro. Dançaram-nas porteiros e telefonistas, chefes de repartição e enfermeiras, bacharéis e costureiras. Foi tal o balanço, o doce enlevo, a paixão e o calor que, do México, as estrofes passariam a fronteira. Com marimbas e o mesmo ritmo. Mas agora, em inglês.
Dean Martin foi o primeiro, em 1954, a cantar “Sway”. Já lá vamos. Antes, recordo que, nesse ano, um tal Norman Gimbel, praticamente um desconhecido, escreveu em inglês, a letra da canção. Uma letra notável, cheia de curvas, de suaves “pára, arranca”, escrita com olhos fechados e sonhadores. Não julguem que foi obra do acaso. Norman escreveria depois, e durante três décadas, centenas de sucessos. Ganhou Golden Globes, Emmys e o Oscar. E para não julgarem que estou a falar nuns monos quaisquer que já toda a gente esqueceu, lembro que a letra em inglês de “Girl from Ipanema” é dele, como é dele, já nos anos 70, a de “Killing Me Softly With This Song”.
Mas se a letra tem a técnica mágica de que se fala num dos versos, o essencial foi a voz e a interpretação de Dean Martin. Dino Paul Crocetti – assim se chamava este filho de italianos nascido no Ohio – só aprendeu a falar inglês na escola. Não sei se isso teve alguma influência ou não (parece-me que sim) na forma como Martin canta “Sway”. Há, queiram ou não queiram, um eco latino que impregna cada estrofe.
A “persona” de Dean Martin também influenciou o resultado final. Ele era o epítome do ladie’s man. Um womanizer, como agora, com má cara, se diz. Mas era o género de womanizer com muito boa cara, que jantava todos os dias em casa com a família, if you know what I mean. Só um tipo assim seria capaz de insinuar a desmedida ternura e entrega que a canção pede, continuando a manter a pose masculina e cool de controle e segurança. “When we sway, I go weak”? A voz dourada de Dean Martin mostra charme, mas não fraqueza. Sobreviverá, com viril easy manner, a qualquer desenlace. Desculpem-me a provocação geracional, mas este tipo de homens deixou de se fabricar nos anos 50.
Se com “Sway” ainda não chegaram lá, e querem mesmo perceber, façam o favor de ver um dia destes um filme, “Some Came Running” de Vincent Minnelli. Olhem bem para a personagem de Dean Martin, comparem-na com a de Frank Sinatra, e não se espantem se vos apetecer escrever um ensaio sobre imanência e metafísica na masculinidade enquanto obra de arte. Banda sonora já têm: este “Sway”, thrilling e smooth, cantado por um italiano do Ohio.
A única versão contemporânea de “Sway” a que me rendo sem reservas é a de Peter Cincotti. Século XXI puro, muito longe já da simplicidade do mambo original, o saudoso “Quien Será”, escrito por Pedro Beltrán Ruiz, este “Sway” de Cincotti, mesmo sendo cantado por um americano, com a mesma ascendência italiana de Dean Martin (Dino Paul Crocetti era a sua graça baptismal), já não tem os ecos latinos que deambulavam pela versão dos anos 50.
Gosto do tempo que Cincotti, um nova-iorquino de 25 anos, encontrou. Há, nesse tempo, uma certa resignação zen à lentidão. E ainda gosto mais do silêncios a que Cincotti se entrega com a serenidade de uma carmelita.
Muito mais jazzy do que cha-cha-cha, o “Sway” de Cincotti é muito diferente do “Sway” de Dean Martin. O “Sway” de Cincotti quase ignora os violinos do velho crooner dos anos 50. Agora, no século XXI, piano e contrabaixo levam-nos e deixam-se levar. Livres, muito livres, até encontrarem a linha melódica que denuncia as origens. É, e continuará a ser, uma canção de desejo, a canção que qualquer homem quer cantar à única mulher que não é uma mulher qualquer. Mas o desejo do “Sway”, de Cincotti, já não é o desejo do “Sway”, de Dean Martin. Sim, são as mesmas palavras, mas é outro, e tão, tão diferente, sotaque.
Ter 125 anos não é sexy. Se estivesse viva, Mae West teria festejado este ano esse aniversário. Temo que a ideia de ser sex-symbol aos 125 a encantasse.
Nascida em Queens, criada em Brooklyn, rosto demasiado redondo e corpo pesadamente rectangular, o certo é que Mae West se converteu numa sex-symbol. Em seda, arminho, outras peles e pose obscena, desse físico, que estava contra ela, fez um íman para virilidades incandescentes.
Começou cedo no teatro. Mais cedo tivesse começado, mais cedo teria ido parar à prisão. Em 1927, estreou “Sex” em Nova Iorque, acabando condenada a dez dias de prisão por atentado à moral. Ui, foi uma penosa reclusão. Fez uma exigência: usar sempre roupa interior de seda. O director do estabelecimento, compreensivo e com inclinações artísticas, levou-a ao cinema todos os dias, menos dois, os que, por bom comportamento, já não cumpriu.
Hollywood deixou-se levar pelo odor a controvérsia e convidou-a para o cinema com a improvável idade de 38 anos. Talvez nenhum dos poucos filmes dela seja obra-prima. Mas com “She Done Him Wrong“ e “I’m no Angel” firmou uma reputação. E ouçam-na, é que bastaria a inesquecível voz.
Estou a ser um unhas-de-fome, porque há quem veja nela outros fulgurantes valores: os caracóis louros, o olhar malicioso, o corpo que talvez seja muito menos rectangular do que eu disse e mais próximo do reclinado conforto duma “chaise-longue”. O reclinado conforto é preguiça minha, a “chaise longue” é preguiça do ensaísta David Thomson.
A mim bastar-me-iam as coisas que disse e a rouca maneira como as disse. Cito três das suas mais famosas réplicas: “Tens uma pistola no bolso ou estás apenas contente por me voltar a ver?” frase dela que o olhar discreto e baixo confirmava em “She Done Him Wrong”, parece ter sido o que, na vida real, disse ao polícia que, em L.A., a foi escoltar no regresso duma viagem. A polícia de L.A. dever-lhe-á para sempre um palmo de auto-estima.
Intraduzível, digo eu por timidez, é o que ela sugere a Cary Grant, no primeiro filme que fizeram juntos: “Come up and see me some time.” Será que um “levanta-te daí e anda cá ver-me um bom bocado” lhe faz justiça em língua portuguesa? Em inglês, americano ou português, ouvi-la dizer, com voz de blues e bagaço, “Quando sou boa, sou muito boa, mas quando sou má, sou muito melhor” acende uma labareda de volúpia em “I’m No Angel”.
Estas réplicas, ditas como ela as disse, deram pela primeira vez espessura à palavra libido, até aí uma palavrinha técnica e sem sal. Constrangida, Hollywood inventou o divertido e proibitivo Código Hays, que determinava o que se “podia” e o que “não se podia” fazer, fingir que se fazia ou dizer. Inveterada optimista, Mae West reagiu bem: “Acredito na Censura. Fiz uma fortuna à conta dela.”
Já é boa altura para voltarmos ao Verão. Nem que seja virtualmente.
Estes candengues vivem perto de uma praia ao sul de Luanda. São, segundo informação do fotógrafo, LQ Geor, filhos de pescadores. Foi, confessa ele, a exuberância do riso deles que cativou o seu olhar de fotógrafo. Será que ele lhe deu uma legenda? Se deu, não vi. Dou eu. A minha legenda: Brinca na areia.
As saudades que eu já tinha deste sol maluco e do riso desaustinado destes candengues.
Das edições que já fiz na minha lamentável vida de editor, esta é uma das que me é mais querida. Caiu-me nas mãos um livro francês, Le Bordel des Muses, de Claude Le Petit. Foi logo tiro e queda. Mas não era mesmo nada líquido que o livro francês pudesse dar um livro português. Não se publica poesia em Portugal — é praticamente proibido por lei. E ainda menos se publica um francês. Muito menos um francês do século XVII.
A minha sorte e a sorte de Le Petit é que ele foi queimado na fogueira por obscenidade. Ora isso é logo uma carta de nobreza. Pensei que se arranjasse mais uns títulos nobiliárquicos a coisa se podia arranjar. Fui à cata de aristocratas. Primeiro, para lhe dar forma poética em português, descobri a Eugénia de Vasconcellos. É poeta e palpitou-me fortemente que ela era capaz de dar aos arroubos obscenos de Le Petit uma equivalência em língua de Pessoa que fosse irmã humana da poesia francesa. Depois, bati à porta de outro artista, João Cutileiro, e pedi-lhe que reinventasse este Le Petit em desenho. Cutileiro não o ilustrou, preferiu ir descobrir-lhe a gentileza que está sempre por trás da pornografia quando ela é poética.
O que a Eugénia e o João fizeram é tão bonito que me comove. E o tanto que me comoveu e exaltou pode ver-se nos materiais em que este livro está feito, no grafismo, no papel. Não me chegou. Não quis ficar de fora na festa de sentidos que este livro já era. Escrevi um texto, até para dizer quem era este Le Petit que agora, assim, entra na língua e na edição portuguesas. É um aperitivo. Para que leiam, inteirinho, este (tão bonito, não é?) o Bordel das Musas ou as nove donzelas putas, do grande Le Petit.
Para ler inteirinho, um poeta de outro lado a entrar na nossa língua
Claude Le Petit foi queimado vivo no primeiro dia de Setembro de 1662, na Praça de Grève, em Paris. Diga-se: com 23 tenros anos de idade. A fogueira onde ardeu era cartesiana: queimaram-lhe o corpo por causa dos pecados da alma.
Filho de um alfaiate, Le Petit tinha na escrita o seu maior talento. Um talento transbordante, irreverente, físico, carnal. Escreveu desalmadamente, mas as hipóteses de publicação foram escassas e mal pagas. A estudar Direito em Paris, com uma reles bolsa paterna, Le Petit deixou-se seduzir pelos meios e convívio libertinos. Numa França de Luíses, o XIII e o XIV, de poder ferreamente centralizado, o libertino – transgressivo e a roçar-se filosoficamente pelo ateísmo – é um livre-pensador que faz passar a liberdade de espírito pela prova do deboche e dissolução do corpo. É por isso lógico que, para Le Petit, o magnífico corpo humano, falo, cona e cus, juntamente com o tinir das moedas, e sobretudo a ominosa falta de cheta, sejam as obsessões maiores.
Não admira que, sem desmerecer a paixão, tenha escrito por dinheiro. A primeira vez que lhe pagaram foi por um poema. Outro autor, Michel Millot, divertira-se a escrever um diálogo obsceno, L’École des filles ou la philosophie des dames. Pediram a Le Petit que redigisse,como ao tempo era hábito, um elogio ao autor do livro, para a abertura. Le Petit escreveu o madrigal cujo primeiro verso reza «Autor fodido de um livro fodido…» que os leitores desta Página Negra poderão ler se comprarem o livro. Um desentendimento entre editores e tipógrafos pôs o livro nas lavadas mãos das autoridades, que o proscreveram como ímpio, tendo Millot, seu autor, sido condenado à morte na fogueira, de que escapa, fugindo para sempre de Paris. Quase por milagre e por não estar assinado o seu madrigal tão esplendidamente foditivo, Le Petit passou como um anjo por este incidente. Nem foi identificado ou preso, nem se castrou.
De pena pistoleira, pronta para ser alugada, foi então convidado a escrever numa gazeta, La Muse de la Cour,dirigida pelo livreiro Alexandre Lesselin. Era mal pago, mas era pago, e Le Petit, a troco de quatro ou cinco pistolas, edificante nome de uma moeda da época, de 1 de Setembro a 28 de Outubro de 1656, foi o prolífico autor de oito números dessa gazeta. Um sangrento incidente interrompeu a confortável e curtíssima carreira. Le Petit travou forte relação com um jovem frade agostinho. Fosse qual fosse a desconhecida natureza da relação, sobre a qual as crónicas guardam silêncio de santo, houve uma briga de alto lá com ela entre os dois. Le Petit não foi de intrigas. Escondido, esperou que o frade viesse preparar a igreja do convento para as matinas e espetou-lhe uma faca, matando-o como a um cevado. Dormiu ao lado do cadáver na igreja fechada e, quando os frades a vieram abrir de manhã, escapuliu-se sem ser visto. Temendo a investigação policial, o poeta assassino exilou-se. O périplo de exílio começa em Espanha e passa por Itália, pela Boémia, Alemanha, Holanda e Londres. Advertido de que o assunto do defunto frade fora arquivado pela polícia, regressa a Paris. Tinham passado pouco mais de três anos, estava-se em Fevereiro de 1661.
Volta aos meios libertinos, conjugando o amor da carne com a devoção católica, apostólica e romana, e volta à penúria do costume. Ora, toda a gente sabe que é muito chato ser pobre em França. Vendo que a poesia não rendia, consta que Le Petit estaria já na disposição de abandonar a vaidade e as misérias do mundo laico e ir misticamente rezar as vésperas para um convento, tese à qual dá consistência o livro Les plus belles pensées de saint Augustin, que nessa altura se dizia ter escrito. Mas é sabido que, num ora foda-se, o diabo aparece e as tece quando e onde menos se espera. Estava Le Petit em recolhimento, na Abadia de Saint-Germain-des-Prés, e vem desinquietá-lo um tal Chabat com uns mais isto e mais aquilo e que era uma pena que o olvido e a gaveta ou as cinzas sepultassem para todo o sempre a virilidade das satíricas rimas de um livro como O Bordel das Musas. Diz estas verdades todas e tira do bolso cinquenta pistolas – o que a prata e o ouro brilham à luz mortiça de uma igreja! – dizendo publico-to eu.
Le Petit não resistiu. Um ano antes dedicara um soneto a Jacques Chausson, maiúsculo sodomita que a tentativa de violação de um mocinho nobre levara aos acrimoniosos tribunais seiscentistas. Chausson fora condenado à fogueira, na Praça de Grève, local em que a amena população parisiense se reunia para ver assar ateus, ímpios, violadores e mais gente com inclinação para uma desnaturada rebaldaria. O cheiro do episódio chaussoniano e a memória do milagre com que Deus o despendurou da associação ao enforcado Millot deviam ter avisado Le Petit que talvez não fosse avisado forçar a sorte. Mas Le Petit não era capaz de resistir a cinco moedas, quanto mais a cinquenta. E disse que sim ao insidioso Chabat, mandando que se fizesse a priápica e clandestina edição. Em homenagem a Théophile de Viau, luminária da poesia libertina, assinaria, com o pseudónimo de Théophile Le Jeune, este Bordel das Musas, de que agora temos nas mãos os poemas que sobreviveram.
O que tinha de correr mal correu evidentemente mal. Fosse porque Chabat tinha a língua comprida – é o que diz Frédéric Lachèvre, no seu sério e majestoso estudo Les Oeuvres Libertines de Claude Le Petit –, fosse pelas fortuitas circunstâncias que sempre favorecem censores e inquisidores, a obra foi estatelar-se debaixo do olho rigoroso e circunspecto da polícia de costumes parisiense. Poupo-vos a pormenores. Claude Le Petit era o meio mendicante filho de um paupérrimo alfaiate, o que em nada o recomendava – a filha da puta da pobreza nunca salvou ninguém. A arrebatada e túrgida elevação dos seus versos escapava ao racional dos seus censores e só o enterrava mais. Em menos de um fósforo, se assim se pode dizer, a célere justiça francesa condenou Le Petit à fogueira. Deveria, antes, ser-lhe cortada a mão direita pelo punho, julga-se que em alusão à prática da escrita, embora nunca se saiba lá muito bem o que passaria pela grave cabeça de magistrados daqueles.
Assim foi. A 1 de Setembro de 1662, Claude Le Petit ardeu na fogueira. Mas ao arder, já ardeu morto. Por piedade, crê-se, foi-lhe concedido o mimo de ser estrangulado antes.
Cutileiro foi descobrir-lhe a escondida gentileza
O poeta Claude Le Petit integra uma corrente filosófica e literária – os libertinos – cuja tradição tem raízes em Ovídio, ganhando expressão maior em França, no século xvii. Essa corrente teve o seu principal expoente na obra poética de Théophile de Viau.
Estribados num cepticismo epicurista e também, mas não necessariamente, num ateísmo convicto, os libertinos do século XVII francês foram um exemplo de anticonformismo e de erudição, que expressaram em obras satíricas, profanas, de grande liberdade de costumes.
Tudo isso, acrescido de uma virulência extrema, que faz dele um príncipe do obsceno, está na poesia de Le Petit. E, não obstante, os seus versos não se podem reduzir ao estrondo dessa obscenidade. Os versos que escreveu são também interrogação, por vezes escarnecida, sobre a condição humana e a permanente mudança do mundo e das coisas. A escrita de Le Petit, saborosamente erudita, informada por uma vasta cultura clássica e por uma muito política atenção à História e ao século, é uma escrita que combina ironia e sarcasmo, por vezes um toque abjeccionista. Com uma imagética desbordante, os seus poemas são o exemplo do bom uso de uma certa arte da repetição – uma palavra, uma expressão criam um ritmo encantatório –, no que se poderá ver uma herança de Le Viau (e de Villon?).
Já se disse que os libertinos casam epicurismo, materialismo, umas pinceladas de filosófico maquiavelismo, com um ateísmo militante. Mas a repressão violenta, passando pela morte na fogueira, a que alguns membros da corrente foram sujeitos, fez emergir uma duplicidade teatral no movimento. Muitos libertinos assumiram uma máscara pública que os protegesse da iminente violência. Todo o libertino passou a ser um actor. Terá sido assim com Le Petit? Terá o seu catolicismo sido uma máscara pública para ocultar a poderosa afirmação da carne, do sexo, que a sua poesia exibe, caminhando em estado de arrogante erecção sobre a Cristandade?
Se, antes da publicação do seu Bordel das Musas, parecia estar dividido entre o catolicismo e o ideal libertino ao ponto de ter escrito um devoto Les plus belles pensées de saint Augustin, também sabemos que, já conhecendo a sentença que o condenava à fogueira, pediu para falar com o barão de Schildebeck, seu amigo dos tempos de exílio alemão, e lhe disse onde estava escondido o que conseguira salvar de Le Bordel des Muses. Arrancou ao amigo alemão a promessa de que salvaria esse original e o publicaria, o que o alemão cumpriu, publicando-o dois anos depois, em Leyden, na Holanda.
Nessa conversa com o fiel alemão, Le Petit, salvando o seu livro, garantiu a eternidade. Quando, a caminho da fogueira, parou em frente à Igreja de Notre-Dame e, de rojo na imensa praça, fez a oração de arrependimento que o tribunal determinara, quem se arrependia era o católico que de facto havia nele ou a máscara libertina que o século exigia? Mas se era actor, de que maneira é que o actor pode fingir, a não ser deveras sentindo as dores, mesmo as dores católicas, que o actor representa?
As crónicas dizem que avançou com serenidade exemplar para a fogueira que, em plena Praça de Grève, o esperava. Já estava morto quando o queimaram – fogo que ardeu sem que ele o sentisse.
Um dos mais belos pensamentos de Santo Agostinho
Tenho de me lembrar e sublinhar, a mim mesmo, uma coisa. Esta Página Negra nasceu para aqui se reunirem, como náufragos numa ilha deserta, todos os textos que eu fui escrevendo nestes últimos quarenta anos. Escrevi este, sobre Herberto Helder, que eu nunca conheci, apesar de ser tão próximo, de conspirativos cafés e ócio, de amigos meus, quando ele fez oitenta anos. Faria hoje 88. Depois disso, novos livros dele instigaram-me a outros textos. Mas queria deixar este assim, como em 2010 o publiquei.
Só há uma forma de falar de Herberto Helder. É ser simples e claro. Hoje [2010], o calendário comemora-lhe o 80º aniversário do nascimento. Nasceu e cresceu como era obrigação dele e nada disso vem ao caso. Interessa é que, desde 1958, a língua portuguesa escrita tem de lhe estar agradecida. Quando publicou “O Amor em Visita”, Herberto Helder mudou a geografia da língua, a sua moral. Nesse poema e na Poesia Toda que é a obra dele, introduziu uma riqueza lexical que nenhum outro escritor da língua, brasileiros incluídos, se sentira autorizado até então a utilizar. Com Herberto, a língua visitou o interior do corpo humano, desceu ao fundo escuro da terra, viajou cósmica, sem deixar de ser radicalmente vegetal.
Não há um qualificativo que consiga exprimir a estatura da revolução que a poesia de Herberto operou. Deixem-me utilizar a palavra moderno, apesar da debilidade e insuficiência semânticas. Herberto fez moderna a língua. Grande parte da literatura do século XX escrita em língua portuguesa, sem prejuízo do sentimento, da emoção ou, mais ocasionalmente, do pensamento que gera, é lexicalmente serôdia. Mesmo reportando-nos a figuras maiores, quando lemos Pascoaes ou Aquilino, talvez menos mas também Tomaz de Figueiredo, encontramos um sarro rural, uma culpa miserabilista, um esqueleto de piedoso realismo que ao desinspirar-se descamba no neo-realismo de Redol e Soeiro Pereira Gomes. É uma literatura de samarra e, se espreitarmos bem, de ceroulas. Não critico quem pleite pela necessidade desse retrato social ou da inspiração telúrica, e que, a muitos, tudo isso sincera e muito paroquialmente comova.
A língua portuguesa de Herberto é outra. Diferente mesmo da de Pessoa que, sobretudo em ele-mesmo ou Álvaro de Campos, a fez futurista e universal. Diferente da língua do contemporâneo Jorge de Sena que a fez discursiva e capaz de dialogar com Debussy ou com Goya. A língua que nos poemas de Herberto se escreve é o triunfo universal da imaginação, é a língua utilizada por um cérebro que usa a metade esquerda e a metade direita. Amoral, a língua de Herberto Helder exibe a volúpia do luxo, a volúpia da liberdade.
O luxo é, essencialmente, lexical: nele não há rasto das palavras que à exaustão foram o estandarte realista. Na poesia de Herberto surgem harpas, crateras, pólipo, mamilo, mãe, fenda, sexo, metamorfose, carne, veias, menstruação, pérolas, prata, planetas, átomos, constelações.
A liberdade é gramatical e associativa. Como um centurião romano se permitia o prazer reconfortante da sauna, assim Herberto ofereceu à gramática a entrada na literatura. Os adjectivos e os advérbios sentem os músculos soltar-se, gerúndios e particípios passados descobrem que afinal funcionam articulações que julgavam ossificadas.
Mas a liberdade maior é a associativa: a sua poesia dá a uma jovem mulher um arbusto de sangue, a figueiras pulmões de esponja branca. Na língua de Herberto pode sentar-se a paisagem numa cadeira e lê-la com extrema violência.
Permito-me a doçura de um lamento. A poesia de Herberto é curvamente narrativa. Povoada de corpos, um torcido dorso à volta da sua dor, anuncia histórias, a metamorfose de personagens, o espasmo de uma felicidade por vezes amarga. Essa dimensão romanesca testou-a o poeta num livro de contos, Os Passos em Volta, que é uma das mais belas experiências ficcionais da língua portuguesa. Em “Polícia”, um dos contos, vivido por um clandestino em Bruxelas, conhecemos a amante com que sempre sonhámos, Annemarie, aquela a quem foi concedido o dom da poesia subversiva: “Annemarie despiu-se e deitou-se nua sobre o cobertor enquanto eu tentava aquecer um pouco de água. Falámos longamente da chuva, do amor e das leis”. A poética desses contos faz-nos sonhar com o que poderia ter sido um romance de Herberto Helder. A forma alucinante e tão precisa como descreve, a surpresa das situações (“Eu digo o teu cabelo. Ela está agachada junto à cama, procurando um sapato que se extraviou”), a simetria das frases, os finais assertivos, deveriam ter-nos dado o romance que, depois de Eça, a língua portuguesa precisava de ter para se juntar aos romances de Agustina e à excepção de Os Sinais de Fogo de Sena.
Basta que nos tenha dado a poesia toda. Deu-nos lume, o incêndio de versos longos. Esta exuberância, esta criação límpida é única na língua portuguesa. Podemos encontrar-lhe fôlegos de Whitman, a intensidade de Dylan Thomas, ou procurar-lhe nos versos o rumor humano, antiquíssimo, de François Villon. Em português não, não tem antepassados: Herberto Helder está condenado à brancura explosiva da originalidade.
Não se diga da poesia de língua portuguesa que é delicada e para delicados. Dois poetas pelo menos, o brasileiro Jorge de Sena e o português Carlos Drummond de Andrade – e se me disserem que me enganei, aos dois declaro nascidos e gloriosamente mortos na mesmíssima língua tantas vezes a portugueses e brasileiros estranha – Sena e Drummond, dizia, cantaram o amor com essa sublime e privilegiada indelicadeza que só o é para quem já não tem a inocência de acreditar que com castidade se abrem coxas ou que mão apalpante deslize pura pela perna que prontamente responde.
Leio estes dois poemas e o que deles mais gosto é que são livres e sabem a desinibido quotidiano.
Era Manhã De Setembro
Carlos Drummond de Andrade
Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro.
Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro
O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto
Ela me beijava o membro
Um passarinho cantava,
bem dentro da árvora, dentro
da terra, de mim, da morte
Morte e primavera em ramo
disputavam-se a água clara
água que dobrava a sede
Ela me beijando o membro
Tudo o que eu tivera sido
quando me fora defeso
já não formava sentido
Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama
Ela a me beijar o membro
Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas
Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha
tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio
como beijava uma santa
no mais divino transporte
e num solene arrepio
beijava beijava o membro
Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo
Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta
Ela me beijava o membro
O capítulo do ser
o mistério do existir
o desencontro de amar
eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia
radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa
para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa
e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo
Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em dezembro
Beijo
Jorge de Sena
Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.
A mulher madura ria-se, de perdida, os dois pés assentes no lancil do passeio da Avenida Almirante Reis. De pés no lancil do passeio, na Almirante Reis, nunca mais ninguém, mulher ou homem, se rirá tanto e tão perdidamente. Deixemos a mulher madura, da pequena burguesia ascendente dos anos 80, rir-se. Voltaremos a ela quando consiga falar.
O melhor riso que o cinema já teve deve-o à crueldade e ao lirismo com que o fizeram rir Buster Keaton, a que chamávamos O Pamplinas, e Charlie Chaplin, dito Charlot.
O humor de Keaton era físico e doía. Os pais, artistas cómicos, ao descobrirem que Keaton tinha mais cálcio nos ossos do que há volfrâmio nas Minas da Panasqueira, atiravam com os três ou quatro anos dele pelas escadas abaixo nos números de vaudeville para gáudio do excelentíssimo público. Estava traçada a linha de crueldade a que o inescrutável Keaton nunca mais fugiria.
Chaplin é feito de outra matéria lírica. E, como sabem todos os que já o morderam, o lirismo não tem ossos. Charlot era dúctil e bailarino, até mesmo quando fez das suas nádegas as nádegas de Hitler batendo, com um leve e altivo espasmo delas, o globo terrestre que o Führer sonhava dominar. Está no “Great Dictator” e é a única chulipa de cu da história do cinema.
Jamais, e vice-versa, direi que o humor de Keaton é superior ao de Chaplin, e desculpem-me ter desperdiçado antes o vice-versa que devia estar aqui. Mas uma coisa é o gosto e outra, os ossos que se têm. Falta-me o cálcio de Keaton e, homem pequenino, mais do que velhaco, calhou-me ser bailarino. Gosto de gostar e gosto de me rir, a começar por esse momento fundador, no Liceu Salvador Correia, em Luanda, quando a temível professora de matemática, dita Joana Bocarra, entrou na sala e vendo toda a turma de pé para a receber, gritou lá para o fundo, para mim, “O menino levante-se”, estando eu em pé, tanto quanto em pé se podia estar.
E volto à mulher que ri. Dez segundos antes, uma motorizada estridente passara por ela e, de esticão, arrancara-lhe a bolsa que levava ao ombro. A mulher só conseguia rir-se. E explicou: “Não consigo deixar de ver a cara do tipo quando abrir a mala: só lá está o frasquinho com as minhas fezes para análise.” Era, diga-se, um tempo em que o Serviço Nacional de Saúde prescrevia análises magnânimas.
Toda a arte é bicéfala: já vi, em muitos filmes, aparecer a cabeça do autor e rolar depois, no ecrã, outra cabeça, a da própria obra.
Em Outubro de 1986, no aeroporto de Lisboa, vi pela primeira vez aparecer a cabeça de Michelangelo Antonioni. Pareceu-me ver, na elegante serenidade da cabeça dele, a cabeça dos seus filmes.
Mesmo cercado pela simpatia de Luis de Pina e João Bérnard, Antonioni, cujo ciclo na Cinemateca organizei, parecia o menos exuberante dos nossos convidados.
Os seus filmes, a começar pela célebre trilogia de silêncio angustiante em que até a paisagem tem crises existenciais, são filmes sobre a incomunicabilidade e a solidão.
Porque razão um homem de beleza adriática, discretamente hedónico, muito atraente para as mulheres, faria filmes tão misteriosamente escassos e rarefeitos?
Adiante. No fim-de-semana, levámos Antonioni a visitar a euforia arquitectónica do Palácio da Pena. Antonioni regalou-se com o exterior e seguiu para a visita guiada do interior. Éramos cinco ou seis, a Antónia, minha mulher, Luis de Pina e João Bénard, entre outros, e permiti-me ficar cá fora, com o Luis de Pina, a fumar o meu cigarro imaginário.
O guia fechou a porta e eu desandei a pensar que a obscena verdura do Outono em Sintra mais depressa pedia um cineasta irlandês do que um italiano de Ferrara: em que deboche é que a natureza tinha passado o Verão para que agora montanhas e vales desabrochassem assim? Era o que pensava quando, sobre a minha perplexa cabeça, se abriu uma janela do Palácio e dela irrompe uma perna coberta pelo melhor corte italiano, a perna de Antonioni. A altura era razoável e a firme decisão dele para saltar pedia ajuda. Luis de Pina de um lado, eu do outro, segurámo-lo pelas pernas e o cineasta aterrou são e salvo.
O que se passou, o que não se passou, e Antonioni conta-nos que, ao entrar no Palácio, fechar-se atrás dele a porta lhe evocara um trauma terrível. Durante a Guerra, a militância política tornara-o um alvo para os nazis que controlavam Itália. Escapou escondendo-se numa cave. Ficou três meses entre quatro paredes, incomunicável. Nunca mais pudera ouvir fechar-se uma porta atrás de si.
É a memória desse medo que está em “L’Avventura”, “L’Eclisse” e “La Notte”? É a cabeça de Antonioni fechada numa cave o que vemos no olhar de Monica Vitti e Jeanne Moreau, no desterro arquitectónico dos filmes a que se chamou a “trilogia dos sentimentos”?
À noite, ao jantar dado pelo embaixador de Itália, veio também Manoel de Oliveira. Com a graça brejeira que a idade autoriza, Oliveira contou uma anedota, Antonioni respondeu com outra. E durante uma hora contou as mais impensáveis barzelette, sofisticadas, a roçar o obsceno, de carabiniere e maridos traídos. Vimos outra cabeça de Antonioni, a que nunca ele deixou aparecer em nenhum dos seus filmes.
(Não disse. No palácio, a minha linda mulher, claustrofóbica impenitente, saltou logo a seguir. Seria uma tentativa de rapto? Ah, se era rapto, acabou logo ali.)