Não se diga da poesia de língua portuguesa que é delicada e para delicados. Dois poetas pelo menos, o brasileiro Jorge de Sena e o português Carlos Drummond de Andrade – e se me disserem que me enganei, aos dois declaro nascidos e gloriosamente mortos na mesmíssima língua tantas vezes a portugueses e brasileiros estranha – Sena e Drummond, dizia, cantaram o amor com essa sublime e privilegiada indelicadeza que só o é para quem já não tem a inocência de acreditar que com castidade se abrem coxas ou que mão apalpante deslize pura pela perna que prontamente responde.
Leio estes dois poemas e o que deles mais gosto é que são livres e sabem a desinibido quotidiano.
Era Manhã De Setembro
Carlos Drummond de Andrade
Era manhã de setembro
e
ela me beijava o membro.
Aviões e nuvens passavam
coros negros rebramiam
ela me beijava o membro
O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruzados floriam junto
Ela me beijava o membro
Um passarinho cantava,
bem dentro da árvora, dentro
da terra, de mim, da morte
Morte e primavera em ramo
disputavam-se a água clara
água que dobrava a sede
Ela me beijando o membro
Tudo o que eu tivera sido
quando me fora defeso
já não formava sentido
Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama
Ela a me beijar o membro
Dos beijos era o mais casto
na pureza despojada
que é própria das coisas dadas
Nem era preito de escrava
enrodilhada na sombra
mas presente de rainha
tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio
como beijava uma santa
no mais divino transporte
e num solene arrepio
beijava beijava o membro
Pensando nos outros homens
eu tinha pena de todos
aprisionados no mundo
Meu império se estendia
por toda a praia deserta
e a cada sentido alerta
Ela me beijava o membro
O capítulo do ser
o mistério do existir
o desencontro de amar
eram tudo ondas caladas
morrendo num cais longínquo
e uma cidade se erguia
radiante de pedrarias
e de ódios apaziguados
e o espasmo vinha na brisa
para consigo furtar-me
se antes não me desfolhava
como um cabelo se alisa
e me tornava disperso
todo em círculos concêntricos
na fumaça do universo
Beijava o membro
beijava
e se morria beijando
a renascer em dezembro
Beijo
Jorge de Sena
Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes línguas
tão penetrantes quanto línguas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se apertando delicados.
É língua que na boca se agitando
irá de um corpo inteiro descobrir o gosto
e sobretudo o que se oculta em sombras
e nos recantos em cabelos vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.
Adorei o seu blog e a sua inspiração, continue. Mila
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MIlaS, obrigado. Não deixe de aparecer.
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