A canção chama-se uma coisa em espanhol, outra em inglês. Vale a pena contar a história quanto mais não seja por haver já, dela, 1001 interpretações. Hoje, cantam-na Michael Bublé, a francesa Arielle Dombasle, a mediática Jennifer Lopez, o excelente Peter Cincotti. Cantaram-na Dean Martin, Eydie Gormé, Julie London e Los Panchos.
Comece-se, então e como deve ser, pelo principio. Era uma vez uma canção chamada “Quién Será”, tão cheia de ritmo e de balanço que um dia teria de se chamar “Sway”. Pablo Béltran Ruiz, estudou um ano de leis e três de química. Acabou músico. Mexicano e maestro, escreveu, com Luiz Demetrio, um belo mambo em 1953, ano em Estaline morreu e milhões de russos felizardos nasceram (e também eu, ao lado do Côa, o rio da minha aldeia). Chamou-lhe “Quien Será”.
“Quién Será” era um cha-cha-cha ou mambo, com ritmo doce e lírico que, um ano depois, o cinema mexicano adoptou, numa interpretação a que Pedro Infante emprestou uma ironia benigna, sublinhada sem acinte pela realização.
É uma canção simples, à volta de uma mitologia masculina simples. Não repeti o qualificativo por acaso: a canção, de tão simples, duas vezes simples, é mesmo maravilhosa. A Pedro Béltran Ruiz – que se manteve à frente da sua banda, quase até morrer, em 2008 – é de agradecer, com recuada e humilde vénia, a cortesia dos milhões de passos de dança que o seu “Quién Será” ofereceu a salões de bailes, y por supuesto a casais apaixonados, a cônjuges e adúlteros, num tempo em que o amor era de maior idade, com todas as barreiras e sem a mariquice fácil da lei do divórcio em coro e contrabaixo.
Por mais danzóns, merengues, cumbias e boleros que se tenham dançado, “Quién será la que me quiera a mi / Quién será la que me de su amor / Quién será, quién será” foram, em 1953, as estrofes do México. Todo. Inteiro. Dançaram-nas porteiros e telefonistas, chefes de repartição e enfermeiras, bacharéis e costureiras. Foi tal o balanço, o doce enlevo, a paixão e o calor que, do México, as estrofes passariam a fronteira. Com marimbas e o mesmo ritmo. Mas agora, em inglês.
Dean Martin foi o primeiro, em 1954, a cantar “Sway”. Já lá vamos. Antes, recordo que, nesse ano, um tal Norman Gimbel, praticamente um desconhecido, escreveu em inglês, a letra da canção. Uma letra notável, cheia de curvas, de suaves “pára, arranca”, escrita com olhos fechados e sonhadores. Não julguem que foi obra do acaso. Norman escreveria depois, e durante três décadas, centenas de sucessos. Ganhou Golden Globes, Emmys e o Oscar. E para não julgarem que estou a falar nuns monos quaisquer que já toda a gente esqueceu, lembro que a letra em inglês de “Girl from Ipanema” é dele, como é dele, já nos anos 70, a de “Killing Me Softly With This Song”.
Mas se a letra tem a técnica mágica de que se fala num dos versos, o essencial foi a voz e a interpretação de Dean Martin. Dino Paul Crocetti – assim se chamava este filho de italianos nascido no Ohio – só aprendeu a falar inglês na escola. Não sei se isso teve alguma influência ou não (parece-me que sim) na forma como Martin canta “Sway”. Há, queiram ou não queiram, um eco latino que impregna cada estrofe.
A “persona” de Dean Martin também influenciou o resultado final. Ele era o epítome do ladie’s man. Um womanizer, como agora, com má cara, se diz. Mas era o género de womanizer com muito boa cara, que jantava todos os dias em casa com a família, if you know what I mean. Só um tipo assim seria capaz de insinuar a desmedida ternura e entrega que a canção pede, continuando a manter a pose masculina e cool de controle e segurança. “When we sway, I go weak”? A voz dourada de Dean Martin mostra charme, mas não fraqueza. Sobreviverá, com viril easy manner, a qualquer desenlace. Desculpem-me a provocação geracional, mas este tipo de homens deixou de se fabricar nos anos 50.
Se com “Sway” ainda não chegaram lá, e querem mesmo perceber, façam o favor de ver um dia destes um filme, “Some Came Running” de Vincent Minnelli. Olhem bem para a personagem de Dean Martin, comparem-na com a de Frank Sinatra, e não se espantem se vos apetecer escrever um ensaio sobre imanência e metafísica na masculinidade enquanto obra de arte. Banda sonora já têm: este “Sway”, thrilling e smooth, cantado por um italiano do Ohio.
A única versão contemporânea de “Sway” a que me rendo sem reservas é a de Peter Cincotti. Século XXI puro, muito longe já da simplicidade do mambo original, o saudoso “Quien Será”, escrito por Pedro Beltrán Ruiz, este “Sway” de Cincotti, mesmo sendo cantado por um americano, com a mesma ascendência italiana de Dean Martin (Dino Paul Crocetti era a sua graça baptismal), já não tem os ecos latinos que deambulavam pela versão dos anos 50.
Gosto do tempo que Cincotti, um nova-iorquino de 25 anos, encontrou. Há, nesse tempo, uma certa resignação zen à lentidão. E ainda gosto mais do silêncios a que Cincotti se entrega com a serenidade de uma carmelita.
Muito mais jazzy do que cha-cha-cha, o “Sway” de Cincotti é muito diferente do “Sway” de Dean Martin. O “Sway” de Cincotti quase ignora os violinos do velho crooner dos anos 50. Agora, no século XXI, piano e contrabaixo levam-nos e deixam-se levar. Livres, muito livres, até encontrarem a linha melódica que denuncia as origens. É, e continuará a ser, uma canção de desejo, a canção que qualquer homem quer cantar à única mulher que não é uma mulher qualquer. Mas o desejo do “Sway”, de Cincotti, já não é o desejo do “Sway”, de Dean Martin. Sim, são as mesmas palavras, mas é outro, e tão, tão diferente, sotaque.
(Este homem é uma enciclopédia) 🙂
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Nada disso, Luis, é só gostos bizarros.
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