O chapéu de Dean Martin

dean martin

Dean Martin coleccionava melhores amigos. Foi o melhor amigo de Jerry Lewis. Se não foi, parece ter sido o melhor amigo de Frank Sinatra e de Sammy Davis Jr. Mal o viu, Howard Hawks gostou logo dele, como se fossem amigos de infância.

Pode fazer-se jogging pelo actual cinema americano e não se encontram amigos assim. Não há rasto de Dean Martin, um olhar como o dele, um chapéu como deve ser.

George Clooney é um homem bonito, mas transpira marketing e o abominável nespresso. Um dia gostava de o apanhar distraído para saber se, de facto, existe.

Prefiro-lhe Matt Damon. Não sei como será se deixar de parecer jovem e de cheirar a universidade e a melhor aluno. À aplicação competente, junta um humor ágil, letrado. Leu livros e Dean Martin, que se saiba, e sabe-se, nunca leu nenhum.

Volto ao melhor amigo. Dean Martin nasceu Dino Crocetti, filho de imigrantes italianos, tão cercado de família que só aprendeu inglês na escola. Talvez por isso, um eco latino impregna as falas que lhe ouvimos nos filmes, os versos das mil canções em que derrete a voz.

Era um cantor. As italianas vinham ouvi-lo. E logo as irlandesas, as judias, as mulheres todas. Mistério: os homens também. O seu segredo era não dar importância nenhuma ao que fazia. Para ele, e vou fazê-lo dar um grito lá no céu onde dorme, cantar era intranscendente. As canções românticas, cantava-as, aliás, em dueto com Jerry Lewis, cómico histérico, num acto de desconstrução a que a América respondeu em delírio.

Hollywood também. Mas o “isto é cinema!”que é arte e alimenta sonhos tardou a apanhá-lo. Em três filmes roçou a poesia, a melhor prosa. Um, o sublime “Rio Bravo” não cabe numa crónica. Falo dos outros dois.

Em “Some Came Running”, Minelli filmou-lhe a negligência que era onde deitava a sua masculinidade. A negligência pede pouco, a preguiça exige esforço. Se o Alberto Caeiro de “há metafísica bastante em não pensar em nada”, se esse Caeiro jogasse às cartas e bebesse uísque, então o heterónimo pessoano assentaria a Dean Martin como tão bem lhe assenta o chapéu omnipresente.

“Kiss Me Stupid” explora-lhe a fama de mulherengo. Dean faz de Dino, cantor famoso que, se não for para a cama com uma mulher por noite, tem violentas enxaquecas. Dois compositores querem vender-lhe uma canção e conhecem-lhe a incansável fraqueza. Um deles consegue tirar a mulher de casa por uma noite e contratar a prostituta Polly, fazendo-a passar pela esposa, para seduzir Dino. Nada corre como planeado. Billy Wilder, o realizador, explica: entre uma pega que sonha jantar com um homem e ficar para lavar a louça e uma esposa farta de a lavar, doida por beber um copo com um desconhecido e meter-se na cama com ele, triunfa a discreta virtude. Polly não o seduz, mas a noite passa, Dino acorda sem dores de cabeça e, para surpresa do marido astuto, compra-lhe a canção.

Vejam o filme se desconfiam, mas Billy Wilder jura que a imponderável virilidade de Dean Martin nunca quebraria a mais cristalina das esposas. Ou não fosse essa a história do cinema de Wilder e da vida de Martin.

Sway

pablo

A canção chama-se uma coisa em espanhol, outra em inglês. Vale a pena contar a história quanto mais não seja por haver já, dela, 1001 interpretações. Hoje, cantam-na Michael Bublé, a francesa Arielle Dombasle, a mediática Jennifer Lopez, o excelente Peter Cincotti. Cantaram-na Dean Martin, Eydie Gormé, Julie London e Los Panchos.

Comece-se, então e como deve ser, pelo principio. Era uma vez uma canção chamada “Quién Será”, tão cheia de ritmo e de balanço que um dia teria de se chamar “Sway”. Pablo Béltran Ruiz, estudou um ano de leis e três de química. Acabou músico. Mexicano e maestro, escreveu, com Luiz Demetrio, um belo mambo em 1953, ano em Estaline morreu e milhões de russos felizardos nasceram (e também eu, ao lado do Côa, o rio da minha aldeia). Chamou-lhe “Quien Será”.

Quién Será” era um cha-cha-cha ou mambo, com ritmo doce e lírico que, um ano depois, o cinema mexicano adoptou, numa interpretação a que Pedro Infante emprestou uma ironia benigna, sublinhada sem acinte pela realização.

É uma canção simples, à volta de uma mitologia masculina simples. Não repeti o qualificativo por acaso: a canção, de tão simples, duas vezes simples, é mesmo maravilhosa. A Pedro Béltran Ruiz – que se manteve à frente da sua banda, quase até morrer, em 2008 – é de agradecer, com recuada e humilde vénia, a cortesia dos milhões de passos de dança que o seu “Quién Será” ofereceu a salões de bailes, y por supuesto a casais apaixonados, a cônjuges e adúlteros, num tempo em que o amor era de maior idade, com todas as barreiras e sem a mariquice fácil da lei do divórcio em coro e contrabaixo.

Por mais danzóns, merengues, cumbias e boleros que se tenham dançado, “Quién será la que me quiera a mi / Quién será la que me de su amor / Quién será, quién será” foram, em 1953, as estrofes do México. Todo. Inteiro. Dançaram-nas porteiros e telefonistas, chefes de repartição e enfermeiras, bacharéis e costureiras. Foi tal o balanço, o doce enlevo, a paixão e o calor que, do México, as estrofes passariam a fronteira. Com marimbas e o mesmo ritmo. Mas agora, em inglês.

Dean Martin foi o primeiro, em 1954, a cantar “Sway”. Já lá vamos. Antes, recordo que, nesse ano, um tal Norman Gimbel, praticamente um desconhecido, escreveu em inglês, a letra da canção. Uma letra notável, cheia de curvas, de suaves “pára, arranca”, escrita com olhos fechados e sonhadores. Não julguem que foi obra do acaso. Norman escreveria depois, e durante três décadas, centenas de sucessos. Ganhou Golden Globes, Emmys e o Oscar. E para não julgarem que estou a falar nuns monos quaisquer que já toda a gente esqueceu, lembro que a letra em inglês de “Girl from Ipanema” é dele, como é dele, já nos anos 70, a de “Killing Me Softly With This Song”.

Mas se a letra tem a técnica mágica de que se fala num dos versos, o essencial foi a voz e a interpretação de Dean Martin. Dino Paul Crocetti – assim se chamava este filho de italianos nascido no Ohio – só aprendeu a falar inglês na escola. Não sei se isso teve alguma influência ou não (parece-me que sim) na forma como Martin canta “Sway”. Há, queiram ou não queiram, um eco latino que impregna cada estrofe.

A “persona” de Dean Martin também influenciou o resultado final. Ele era o epítome do ladie’s man. Um womanizer, como agora, com má cara, se diz. Mas era o género de womanizer com muito boa cara, que jantava todos os dias em casa com a família, if you know what I mean. Só um tipo assim seria capaz de insinuar a desmedida ternura e entrega que a canção pede, continuando a manter a pose masculina e cool de controle e segurança. “When we sway, I go weak”? A voz dourada de Dean Martin mostra charme, mas não fraqueza. Sobreviverá, com viril easy manner, a qualquer desenlace. Desculpem-me a provocação geracional, mas este tipo de homens deixou de se fabricar nos anos 50.

Se com “Sway” ainda não chegaram lá, e querem mesmo perceber, façam o favor de ver um dia destes um filme, “Some Came Running” de Vincent Minnelli. Olhem bem para a personagem de Dean Martin, comparem-na com a de Frank Sinatra, e não se espantem se vos apetecer escrever um ensaio sobre imanência e metafísica na masculinidade enquanto obra de arte. Banda sonora já têm: este “Sway”, thrilling e smooth, cantado por um italiano do Ohio.

A única versão contemporânea de “Sway” a que me rendo sem reservas é a de Peter Cincotti. Século XXI puro, muito longe já da simplicidade do mambo original, o saudoso “Quien Será”, escrito por Pedro Beltrán Ruiz, este “Sway” de Cincotti, mesmo sendo cantado por um americano, com a mesma ascendência italiana de Dean Martin (Dino Paul Crocetti era a sua graça baptismal), já não tem os ecos latinos que deambulavam pela versão dos anos 50.

Gosto do tempo que Cincotti, um nova-iorquino de 25 anos, encontrou. Há, nesse tempo, uma certa resignação zen à lentidão. E ainda gosto mais do silêncios a que Cincotti se entrega com a serenidade de uma carmelita.

Muito mais jazzy do que cha-cha-cha, o “Sway” de Cincotti é muito diferente do “Sway” de Dean Martin. O “Sway” de Cincotti quase ignora os violinos do velho crooner dos anos 50. Agora, no século XXI, piano e contrabaixo levam-nos e deixam-se levar. Livres, muito livres, até encontrarem a linha melódica que denuncia as origens. É, e continuará a ser, uma canção de desejo, a canção que qualquer homem quer cantar à única mulher que não é uma mulher qualquer. Mas o desejo do “Sway”, de Cincotti, já não é o desejo do “Sway”, de Dean Martin. Sim, são as mesmas palavras, mas é outro, e tão, tão diferente, sotaque.

Um olho no cavalo, outro em Dean Martin

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O tipo era um bêbado sem remissão. Tão reles e submisso que já nem à mão lhe davam a moedinha: atiravam-lha para o escarrador do saloon. Falo de Dude, a quem os mexicanos chamavam Borrachón. E, todavia, esse trapo, que se esfregava pelas ruelas traiçoeiras de “Rio Bravo”, destila uma elegância física natural. Dentro de Dude está afinal Dean Martin.

Quem não viu “Rio Bravo”, um western de Howard Hawks, não sabe o que é o amarelo, o vermelho de duas gotas de sangue a tombar num copo de whisky, o negro alegre de uns collants de mulher, capaz de resgatar do negrume os negros de Caravaggio.

Mas, meu kambas, só vê “Rio Bravo” quem conseguir ter um olho no filme e outro no bêbado Dean Martin. Onde é que ele aprendeu, com que Godard ou Stanislavski, a fazer o que faz? E o que faz é erguer da lama um homem, dar-lhe verticalidade, pôr agilidade em braços mortos, um brilho galante e malicioso onde já só dormia um olhar baço.

Soube há pouco, disse-mo em conversa um livro de Jerry Lewis, que Dean Martin aprendeu tudo na Vila Alice, bairro de Luanda em que nunca viveu. Nessa altura, Lewis e Martin eram os melhores amigos e davam shows na América e em Las Vegas. Eram dois muadiês ricos, uns putos que podiam fazer o que lhes desse na gana. E Dean Martin, como qualquer tipo da Vila Alice, só queria ler livros aos quadradinhos. Reparem, eu não disse banda desenhada, que não quero ofender o meu amigo Dean. Eram os mesmos livros aos quadradinhos que o meu bando lia e toma lá para troca.

Dean Martin tinha até um bocadinho de vergonha e mandava comprar os seus comic books. Jerry, que então o amava, dizia-lhe que devia ir ele escolhê-los e comprá-los. Dean sorria: “Mas não te importas que os mande comprar?”

Consigo ver o sorriso desarmante de Dean Martin, porque nele tudo era desarmante: o andar, a forma de falar, de sacar do coldre o revólver, de deixar assentar o chapéu. Lia livros aos quadradinhos, esticava as pernas e bebia a ociosa e gelada cerveja. Eis a forma simples e preguiçosa de ser homem, a sua felicidade.

Morreu num dia de Natal. Las Vegas, essa ominosa e pirilâmpica florescência de brilho e néon, que tem pavor da escuridão, prestou-lhe tributo. Todas as luzes se apagaram por um minuto, calma escuridão em que Dean fechou a última página do seu livro aos quadradinhos.

Publicado no Expresso