Toda a arte é bicéfala: já vi, em muitos filmes, aparecer a cabeça do autor e rolar depois, no ecrã, outra cabeça, a da própria obra.
Em Outubro de 1986, no aeroporto de Lisboa, vi pela primeira vez aparecer a cabeça de Michelangelo Antonioni. Pareceu-me ver, na elegante serenidade da cabeça dele, a cabeça dos seus filmes.
Mesmo cercado pela simpatia de Luis de Pina e João Bérnard, Antonioni, cujo ciclo na Cinemateca organizei, parecia o menos exuberante dos nossos convidados.
Os seus filmes, a começar pela célebre trilogia de silêncio angustiante em que até a paisagem tem crises existenciais, são filmes sobre a incomunicabilidade e a solidão.
Porque razão um homem de beleza adriática, discretamente hedónico, muito atraente para as mulheres, faria filmes tão misteriosamente escassos e rarefeitos?
Adiante. No fim-de-semana, levámos Antonioni a visitar a euforia arquitectónica do Palácio da Pena. Antonioni regalou-se com o exterior e seguiu para a visita guiada do interior. Éramos cinco ou seis, a Antónia, minha mulher, Luis de Pina e João Bénard, entre outros, e permiti-me ficar cá fora, com o Luis de Pina, a fumar o meu cigarro imaginário.
O guia fechou a porta e eu desandei a pensar que a obscena verdura do Outono em Sintra mais depressa pedia um cineasta irlandês do que um italiano de Ferrara: em que deboche é que a natureza tinha passado o Verão para que agora montanhas e vales desabrochassem assim? Era o que pensava quando, sobre a minha perplexa cabeça, se abriu uma janela do Palácio e dela irrompe uma perna coberta pelo melhor corte italiano, a perna de Antonioni. A altura era razoável e a firme decisão dele para saltar pedia ajuda. Luis de Pina de um lado, eu do outro, segurámo-lo pelas pernas e o cineasta aterrou são e salvo.
O que se passou, o que não se passou, e Antonioni conta-nos que, ao entrar no Palácio, fechar-se atrás dele a porta lhe evocara um trauma terrível. Durante a Guerra, a militância política tornara-o um alvo para os nazis que controlavam Itália. Escapou escondendo-se numa cave. Ficou três meses entre quatro paredes, incomunicável. Nunca mais pudera ouvir fechar-se uma porta atrás de si.
É a memória desse medo que está em “L’Avventura”, “L’Eclisse” e “La Notte”? É a cabeça de Antonioni fechada numa cave o que vemos no olhar de Monica Vitti e Jeanne Moreau, no desterro arquitectónico dos filmes a que se chamou a “trilogia dos sentimentos”?
À noite, ao jantar dado pelo embaixador de Itália, veio também Manoel de Oliveira. Com a graça brejeira que a idade autoriza, Oliveira contou uma anedota, Antonioni respondeu com outra. E durante uma hora contou as mais impensáveis barzelette, sofisticadas, a roçar o obsceno, de carabiniere e maridos traídos. Vimos outra cabeça de Antonioni, a que nunca ele deixou aparecer em nenhum dos seus filmes.
(Não disse. No palácio, a minha linda mulher, claustrofóbica impenitente, saltou logo a seguir. Seria uma tentativa de rapto? Ah, se era rapto, acabou logo ali.)
Boa. 🙂
LikeLike
🙂
LikeLike
Bem verdade, a cabeça de Antonioni é mesmo uma delicada cabeça. E como dele e dos mais cada um toma a cabeça que quer – cabeças temos todos muitas, lá diz o mito do monstro que também somos -, fico-lhe com a delicadeza que decerto a sua bela mulher também apreciou (e deixe-se de coisas que bem sabe que rapto coisa nenhuma que em equipa que vence não se mexe e pronto).
LikeLike
Uma coisa lhe digo, Bea, o Antonioni vestia-se irrepreensivelmente. Tinha um conto espectacular que deve ter sido feito só para ele.
LikeLike