Carta fechadíssima a Jean Seberg

Carta escrita há nove anos. Enviada para o endereço certo, como já conferido com os correios celestiais. Continuo a aguardar a resposta de Jean Seberg.

Jean Seberg

Dear Jean,

Estás esten­dida no banco de trás da Renault branca. A ideia do corpo esten­dido, as per­feitas per­nas, a nuca tão lisa, é de um ero­tismo ingénuo, de provín­cia, certo para a rapariga de Mar­shall­town, Iowa que tu foste e nunca deix­aste de ser. Mas já estás aí há dias, pele deslavada, corpo em decom­posição. Sabes bem que mor­reste – morreste-te tu mesma – o que os dois oca­sion­ais gen­darmes desco­brem nesse 8 de Setem­bro de  1979, fez, há pouco, 39 anos. Tu tens, nesse dia da tua morte, 41 anos. A 13 de Novem­bro de 1938 não tin­has nem um. Só o nome: Jean Dorothy Seberg. Bebé americana.

Como é que chegaste a ser tão francesa? Foi só por teres sido, Joana d’Arc, Santa Joana, às mãos grossas e implacáveis de Pre­minger? Foi ele que procurou e te escol­heu, entre vir­gens, con­cu­bi­nas, cheer­lead­ers. Filmou-te como quem sac­ri­fica. Rapou-te o cabelo e queimou-te a preto e branco.

Depois, a cores, fez de ti Cécile. Vestiu-te blusas leves, calções que oscilam entre o curto e o muito curto, fatos de banho ver­mel­hos, amare­los e azuis que te fazem fina a cin­tura, cabelo dourado quase rapado, a nuca, sem­pre a nuca tão bonita, e o vestido preto preso ao pescoço por uma gola del­i­cada, pequen­ina. Sabes bem que bas­tava esse filme, que te bas­tava a inces­tu­osa insin­u­ação de Bon­jour Tristesse, o filme mais a cores que existe, para que fos­ses – sejas – muito amada.

Mas ainda tens, querida, o A Bout de Souf­fle com o Godard. J’ai envie de faire [avec toi] beau­coup de petites choses qui me plai­saient, disse-te ele, diria eu. E tu foste directa, natural – não te pare­cia cus­tar nada –, amoral. No fim, dégueu­lasse e lírica como, mas menos cruel do que bon­jour… tristesse tanta, a maior tris­teza, de choro duro e histérico, o teu mel­hor filme amer­i­cano, sem des­cul­pas de história francesa ou de Verão de Riv­iera, foi Lilith. Tinha de ser um tipo de Nova Iorque, Robert Rossen, judeu, comu­nista, com uma sen­si­bil­i­dade de arco de vio­lino escon­dido num corpo de armário. Filmou-te tão bem. De fazer raiva. Esquizofrénica e linda. Nin­fo­maníaca e linda. Quer­e­mos ficar pre­sos no tumulto per­verso dos teus olhos, meter a boca na tua boca, mesmo sabendo que é de out­ras, mais bocas.

O que é que te acon­te­ceu depois? Já me con­taste os casa­men­tos infe­lizes, a tua pere­g­rina sim­pa­tia pelos Black Pan­ther, a morte da tua filha Nina, e o ciclo depres­sivo de 9 anos. Esqueceste-te de con­tar o resto, como é que, depois de teres nascido a 13 de Novem­bro no Iowa, 41 anos pas­sa­dos, em Paris, te sep­a­ras de céu e terra e te deix­aste deslum­brar pela noite escura de breu, sem sequer me deixares dizer-te, ao ouvido, que não quero, e ainda menos em Paris, que ninguém morra aos 41 anos de idade.

Jean_S

negras escolhas musicais: um fado de k.d. lang

kd-lang_ingenue

Cheguei a estar matric­u­lado na Fac­ul­dade de Dire­ito de Coim­bra. Nunca lá pus os pés (ao con­trário da de Lis­boa, onde pus os pés, mas nunca a cabeça). Dedico à mitolo­gia coim­brã uma embir­ração tão impul­siva como implacável. Detesto capas e bati­nas. E não vis­lum­bro sinais de con­hec­i­mento, ou de luxo e volúpia, nos corte­jos de fitas e bebe­deiras afins. Queimem que eu passo.

Mas não passo por esta inter­pre­tação de k.d. lang. Gosto do per­fume que ela verte sobre o Fado Hilário. Anoitece muito neste fado. De noite escura, gui­tarra, vio­lino e acordeão. Na voz de k.d.lang é lindo ver a morte gan­har a forma de um coração, a forma de uma guitarra.

https://www.youtube.com/watch?v=LqPcEktpvhw

O mistério do livro desaparecido

debaixo do vulcão

Tenho uma mala­p­ata com o escritor Malcolm Lowry. Adoro-lhe a tur­bulên­cia, as bebe­deiras e o Debaixo do Vul­cão (Under the Vol­cano para o caso do meu amigo Victor Melo e a sua Lídia estarem em Massachussets, no meio da neve,  a ler esta prosa).

E do Vul­cão com­prei já 158 exemplares. Não con­fun­dam esta amarga pre­cisão com jac­tân­cia: juro não com­prar nem mais um. Mês a mês, comprava um livro e dois desa­pare­ciam. Quando chegava a Feira do Livro pedia desconto nas ban­cas e trazia uma dúzia. Os Vul­cões entram-me em casa e desa­pare­cem de mansinho: evaporam-se, volatilizam-se.

Um amigo mandou-me o epitáfio de Lowry:

Mal­colm Lowry,
Per­dido e achado em Bow­ery,
Se a sua prosa flo­ria,
Por vezes tam­bém deprimia,
Vivia de noite,
E bebia de dia,
E mor­reu de pé,
A tocar o Ukelele.

Parafrase­ando o epitá­fio, também os livros entravam de noite, desa­pare­ciam de dia. Seja o que for é uma coisa que lhes dá. Não tenho nem um. Sou espírita — se vivesse no Brasil  seria pai-de-santo. Não inter­essa, nem invo­cando o espírito argentino e labirín­tico de Borges con­segui achar as ruí­nas cir­cu­lares onde estes livros vão parar. Indigno, recon­heço que o mescal é uma estranha forma de refu­tar a real­i­dade, mas, nos meus momen­tos mais alu­ci­na­dos, acred­ito que exista algures uma bib­lioteca de per­di­dos e acha­dos onde um dia, comovi­dos e frater­nos, eu e os 158 Vul­cões nos reencontraremos.

P.s. – Escrevi este texto há anos. Comprei, entretanto, o centésimo quinquagésimo nono Vulcão. Fui agora, depois de começar a escrever este texto, vê-lo à estante. Já lá não está.

o universo flui através de 11 dimensões e vai de mota

 

moto_áfrica

Não sei a foto foi tirada em Luanda, Kin­shasa ou Brazav­ille. Seja como for, cheira-me mais à costa oci­den­tal de África.

O que primeiro chama a atenção é a feli­ci­dade ser­ena e tão bem arru­mada dos sete ocu­pantes do amplo veículo (men­tira, são oito, se fiz­erem o favor de con­tar pelas per­nas). O con­forto dos cor­pos é indes­men­tível, o sor­riso da menin­inha do brinco é uma delí­cia e o ar gozado do ben­jamim, o tele­tub­bie azul, desperta-nos uma onda de opti­mismo que nem o mais descabelado dos cépticos será capaz de refutar.

Em segundo lugar, esta imagem obriga-nos a rever todas as con­cepções do espaço e teo­rias físi­cas afins. Quero lá saber do fre­n­esim quân­tico que levou a mecânica de Heisen­berg a embir­rar com a Rel­a­tivi­dade do icónico aus­tríaco, que punha a língua de fora. O campo grav­ita­cional, como podem ver, tam­bém não inter­essa a nen­hum destes meni­nos, se cal­har nem ao Menino Jesus. Tudo aquilo de que pre­cisamos é de altura, largura e com­pri­mento, uma certa dimen­são tem­po­ral e, está claro, sete dimen­sões recur­vadas (oito se for a curva das per­nas).

Por curvatura, deixem-me disparatar. Será este um exemplo da famosa Teoria M da física? A que afirma que, e cito a wikipédia, tudo, matéria e campo, é formado por membranas, e que o universo flui através de onze dimensões. Teríamos então três dimensões espaciais (altura, largura, comprimento), uma temporal (tempo) e sete dimensões recurvadas, sendo a estas atribuídas outras propriedades, como massa e carga eléctrica.

Só mesmo em África e com o mais dis­pli­cente empirismo pode­ria acon­te­cer o mila­gre da unifi­cação da física. Nga’sakidila.

Lição de antropologia com Elizabeth Taylor

natalie
um suave der­rame sen­ti­men­tal

Aca­bara de me apai­xo­nar por Nata­lie Wood. Vira-a, aco­lhe­dora, a dei­xar James Dean deitar-lhe a cabeça no colo, em “Rebel Without a Cause”. O que ela, ado­les­cente, fazia no filme, um sor­riso triste, bei­jos só de lábios a roça­rem lábios, sonhava eu que era comigo. E o que fazia era um suave der­rame sen­ti­men­tal, doce enjoo intrans­mis­sí­vel a terceiros.

Nes­sas férias de 68, nas noi­tes cacim­ba­das de Luanda, o cinema Impé­rio pas­sava um fes­ti­val de repo­si­ções. Jurara pro­mes­sas à ter­nura de Nata­lie Wood, mas noite é noite, a natu­reza mas­cu­lina, mesmo a ado­les­cente, é ins­tá­vel e fui à descoberta.

Exibia-se “The Sand­pi­per”. O filme, embora assi­nado por Vin­cente Min­nelli, não é extra­or­di­ná­rio. Ape­nas veí­culo para a arra­sa­dora pai­xão que Eli­za­beth Tay­lor e Richard Bur­ton viviam.

Já a vira Cléo­pa­tra, mas não con­se­gui ser romano sufi­ci­ente para que me aque­cesse mais do que arre­fe­cesse. Agora, em “The Sand­pi­per”, numa praia cali­for­ni­ana, Eli­za­beth era bas­tante menos do que a actriz de “Cléo­pa­tra”, era uma mulher.

Com a Nata­lie Wood de “Rebel”, que em Por­tu­gal se cha­mou “Fúria de Viver”, tive a ilu­são de que uma namo­rada não pode­ria ter mais de 20 anos e era uma coisa de olhar nublado e sor­riso melan­có­lico que se ins­ta­lava na nossa cabeça, mais pre­ci­sa­mente no cora­ção que temos na cabeça. Ao ver a Tay­lor de “The Sand­pi­per”, em por­tu­guês cha­mado “Adeus Ilu­sões”, vi a fúria de viver do corpo sexu­ado de Tay­lor e senti esse “ser mulher” a injectar-se-me nas veias e nesse vaga­bundo cora­ção que não direi onde é que, no corpo de um homem, se pode encontrar.

Eli­za­beth já tinha 33 anos, o que, em mea­dos dos anos 60, a fazia bal­za­qui­ana. A per­so­na­gem dela era como ela, como o corpo dela, com redon­das doçu­ras a tes­te­mu­nhar que aquela boca não se proi­bia nenhum pra­zer. Era, no filme, uma artista livre, a viver iso­lada na praia (uma casa assom­brosa) e mãe sol­teira por­que, como expli­cava: “Não fui aban­do­nada pelo pai, foi o pai que foi aban­do­nado por mim”.

the-sandpiper
redondas doçuras

Vestia-se a cami­so­las leves que o amo­roso volume do peito erguia como estan­dar­tes, ou então uma camisa de homem a decotá-la com exu­be­rân­cia, as per­nas nuas na areia da praia. E olhava. Do azul vio­leta do olhar de Eli­za­beth Tay­lor saíam des­car­gas eléc­tri­cas. Não ape­nas o mis­té­rio que se evola dos olhos de uma gata abis­sí­nia. O olhar dela, no filme, res­suma sedu­ção, uma huma­nís­sima ani­ma­li­dade que lhe flui, pagã, dos ombros para as coxas more­nas. Richard Bur­ton, casado, pas­tor pro­tes­tante, sucumbe. A mim, passou-me o eté­reo enjoo com a ado­les­cente Natalie.

Minha pri­meira lição antro­po­ló­gica: terá sido esta ani­ma­li­dade pal­pi­tante, mas gen­til, quase domés­tica, a fazer-nos tro­car a selva, a caça, o raio do ar livre, pelo suado calor de uma cama.

A multidão por uma galinha

riefenstahl
Riefenstahl

A mul­ti­dão é um corpo con­vulso e intes­tino. Hoje, a multidão é de sms e tem hora marcada FPode ser uma mul­ti­dão de meio-dia ou de  meia-noite.

Se não me engano, os ale­mães é que sabem. A Rie­fensthal sabia que não sabia fil­mar sem uma mul­ti­dão. Metó­dica, filmou-as em parada, em patrió­ti­cos dis­po­si­ti­vos geo­mé­tri­cos: de cada mul­ti­dão, a cine­asta favo­rita de Hitler fazia um exér­cito, o potente triunfo da von­tade.

Fritz Lang, ale­mão des­na­tu­rado, era um reac­ci­o­ná­rio sem fer­vor. Fil­mou a exausta mul­ti­dão de “Metro­po­lis” como uma tropa abú­lica e zom­bie. Para sobres­salto do espí­rito pro­gres­sista e orde­nado de Hitler, em “M”, numa cari­ca­tura hos­til, Lang con­verte uma caó­tica mul­ti­dão de cri­mi­no­sos num impla­cá­vel júri jus­ti­ceiro. Dei­xou a mulher revo­lu­ci­o­ná­ria aos revo­lu­ci­o­ná­rios nazis e fugiu para a Amé­rica, onde, em “Fury”, mos­tra que a mul­ti­dão, entre­gue a si mesma, é um Cristo cru­de­lís­simo, um Gue­vara car­rasco: ao pé deles, Átila é um menino de coro.

Com ou sem ale­mães, no cinema, a mul­ti­dão foi épica ou trá­gica. Por vezes vicen­tina, ainda que nin­guém no cinema do mundo saiba quem seja ou foi Gil Vicente.

No “Impé­rio do Sol”, Spi­el­berg, o anti-Riefenstahl, segue um miúdo oci­den­tal na imensa China que os japo­ne­ses inva­dem. É um miúdo sozi­nho encos­tado à linha de hori­zonte de uma colina suave. Um bur­bu­ri­nho redondo e con­sis­tente vem não se sabe donde. O miúdo vai à pro­cura. Com a sur­presa e beleza das coi­sas sim­ples, Spi­el­berg tira do plano o hori­zonte e ofe­rece a massa com­pacta de um bata­lhão de sol­da­dos aos olhos do miúdo que era Chris­tian Bale. É a única mul­ti­dão ex-nihilo que vi nas­cer num filme.

Cecil B. De Mille tinha o gosto do espec­tá­culo e da rea­li­dade do espec­tá­culo: nos “Dez Man­da­men­tos” jun­tou 14 mil figu­ran­tes ao aus­tero Moi­sés que era Charl­ton Hes­ton. Parecia-lhe, ainda assim, pouca rea­li­dade e man­dou vir 15 mil ani­mais. Havia gali­nhas quando o mila­gre abriu o Mar Ver­me­lho para a pas­sa­gem do povo eleito. Meu direc­tor nos idos da Cine­ma­teca, Luis de Pina bem me ensi­nou que pode haver bons fil­mes sem gali­nhas, mas filme com gali­nha é sem­pre um bom filme.

mar vermelho
abre-se o Mar Vermelho

Gali­nhas incluí­das, catorze mil figu­ran­tes e quinze mil ani­mais for­ma­vam a rea­lís­sima e caco­fó­nica mul­ti­dão. Hoje não! For­mi­gas, legiões ou elfos, seja em “Ant Z”, “Gla­di­a­dor” ou “O Senhor dos Anéis”, a mul­ti­dão é vir­tual, uma mul­ti­pli­ca­ção digi­ta­li­zada.

Em “Matrix Relo­a­ded”, o agente Smith bate-se con­tra 100 clo­nes seus. Vê-se que não é uma mul­ti­dão, mas ape­nas cama­das e cama­das de ecrãs. A hete­ro­ní­mia de Pes­soa seria para aqui muito mal cha­mada. Esta é uma hete­ro­ní­mia de CGI, como se chama a ima­gens gera­das vir­tu­al­mente. Não há dor, cho­co­late ou meta­fí­sica numa mul­ti­dão CGI. Na Grécia, em Lisboa, em Moscoco, sms a sms, de tablet a smartphone, geram-se mul­ti­dões vir­tu­ais, cama­das e cama­das de ecrãs. Nada de meta­fí­sica, muito menos uma galinha.

Aquiles

rageofachilles-full

A culpa não é da minha velhinha edição da Paideia, de Werner Jaeger, nem da Hélade ou dos Estudos de História da Cultura Clássica, da admirável Professora Maria Helena da Rocha Pereira. Por muito que os lesse, e alguma coisa li, faltou-me aprender grego, para poder mergulhar ou aspirar a outros voos nos baixos fundos e altos céus da cultura grega.

Mas o atrevimento ignorante, que me é inerente e imparável, fez-me escrever o que aí vem, que é só teoria minha, ou talvez seja só preconceito meu. São sequelas do que me ficou das horas de pouco e desordenado estudo que consegui encaixar nos anos de vida pouco recomendável em que coincidi passar pelos bancos da douta Academia e em que o professor Trindade Santos amorosamente me aturou – com uma perninha e umas conversas de café e sobre café com o professor Manuel S. Lourenço.

Sempre que penso em Aquiles, não é bem com os olhos de Pátroclo que o vejo. Penso nele e a minha conclusão é sempre a mesma: na Ilíada, Aquiles não é um, é dois.

A sua origem é divina. Semi-deus, filho de um rei e da nereida Tétis, tão central como ausente na narrativa, Aquiles é o herói modelo. Nobre e corajoso, ele é o exemplo da  (virtude) guerreira.

Mas Aquiles, o Aquiles que Homero nos apresenta, é humano desde o primeiro momento, tragicamente humano. “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles…” Aí está o homem: colérico, furioso e vingativo.

Aquiles é mesmo duas vezes vingativo: contra Agamémnon que lhe rouba Briseida, a escrava que recebera como troféu de guerra; contra Heitor que matou o seu fiel Pátroclo. O rancor de Aquiles contra Agamémnon é mais forte do que a obrigação de lutar ao lado dos seus guerreiros que, impávido, deixa perecer às mãos sangrentas dos troianos, a quem os deuses, instados por sua mãe, entretanto passaram a proteger.

Mais tarde, regressado ao campo de batalha e movido por uma vingança desabrida, Aquiles arrasta o cadáver de Heitor à volta do túmulo do Pátroclo, o amigo (“arrastei para aqui Heitor, para os cães o comerem cru;”), sob o olhar desfeito e agónico de Príamo, o pai do nobre vencido. Ímpio, recusa-lhe depois sepultura.

Se em Homero (ou no poema das múltiplas vozes que o seu nome recobre) Aquiles dos pés velozes (mas de frágil calcanhar) era duplo – deus e humano, tão nobre e corajoso como colérico e vingativo – nos séculos que se seguiram os poetas deram-lhe variadas máscaras. Foi personagem de Ésquilo numa trilogia perdida. Píndaro atribui-lhe uma infância maravilhosa. Shakespeare transforma-o num monstro de vaidade em Tróilo e Créssida. Goethe, como na Ilíada, mostra-o consciente de que terá vita brevis.

Nesta pluralidade de rostos resplandecentes e armaduras faiscantes, reside a beleza que me atrai e o consolo que procuro. Nenhuma síntese, mesmo verdadeira, me dará tanto som, tanta fúria.

deathofachilles

O presente está cheio de boas notícias

presente

A Página Negra vai fazer dois meses de vida. Antes, escrevi no Geração de 60, no Pnet Homem, no É Tudo Gente Morta e no Escrever é Triste, blogues colectivos que partilhei com autores que amo descaradamente, pelo muito que com eles aprendi, concordando ou discordando. Quem neles me tenha lido, ou conversado virtualmente comigo, sabe que  privilegio livros e filmes, filmes e livros, alguma música, um humor desdramatizante. Ou, para usar conceitos normalizadores, quem andou por esses blogues dirá que eu tenho uma visão estética do mundo, mais do que uma visão moral ou política.

O que pode ainda ser corrigido com alguma acuidade, dizendo-se que, se eu tenho um olhar ou sentimento político, eles estão nimbados, para não dizer inundados, por uma irreprimível nostalgia. Last but not the least, essa nostalgia parece ser tropical, colonial, caluanda, da areia do Sambizanga ao asfalto que eu vi pôr nas ruas da Vila Alice.

E agora vou puxar de uma adversativa como quem puxa da culatra atrás: não obstante, além desse meu doce embalo estético-afectivo, eu tenho a minha mundivivência ou, e sorriam comigo, a minha Weltanschaung, que não alardeio, mas também não escondo, mas de que, hoje, partilho com gosto algumas facetas simples e objectivas para que, quando aqui conversamos, saibam quem, além do que escrevo, sou também.

Eis a lista do que defendo, prezo ou em que acredito.

  1. Sou um rendido adepto do presente: o mundo em que vivemos é melhor do que todos os mundos em que vivi. Por mais meloso amor que eu tenha pelos meus mundos passados e por todos os outros mundos passados que, antes de nós, os nosso irmãos humanos viveram, quem neles viveu, viveu pior do que hoje vivemos.
  2. Foi glorioso assistir, em seis décadas, às grandes conquistas do mundo em que vivemos, e cito, referindo-me ao planeta Terra: a) o aumento da esperança de vida; b) a prodigiosa baixa da mortalidade infantil; c) o fabuloso aumento da literacia e da escolaridade; d) a diminuição das guerras e dos mortos nas guerra; e) a diminuição do número de homicídios; f) a fantástica baixa da pobreza extrema; g) a ascensão da Ásia, América Latina e África, tornando definitivamente redondo o planeta Terra e dando protagonismo a etnias que o não tinham; h) a irresistível, sexy diria, e comoventemente fraterna cada vez maior paridade entre mulheres e homens, hetero e homossexuais; i) a evolução consciente e determinada da descarbonização da economia e o abrandamento da perda das florestas, respondendo ao que nas alterações climatéricas nos inquieta.
    Tudo, tudo o que enumerei, está nas estatísticas. E tudo, tudo o que se conquistou, se deve a reformas e não a revoluções, reformas que a mundialização, a forma ou máscara que neste começo de século o capitalismo assumiu, cumprindo enfim uma das raras profecias em que Marx, no Manifesto que fez mano a mano com o mano Friedrich, não se enganou. Foi a riqueza gerada no e pelo capitalismo que permitiu crescer, desenvolver, investir e redistribuir.
  3.  Só tenho pena que nem sempre o rosto dessa mudança e evolução tenha sido o da democracia. O número das democraturas é ainda significativo, mesmo se os ganhos das populações na qualidade e expectativas de vida sejam para melhor.
  4. E o que faço com o passado? É o painço com que alimento o presente, ou não fossemos todos aves de gaiola. Eu não recuso, nem condeno o passado. O passado foi o degrau necessário para chegarmos à escadaria do presente. E a nostalgia com que olho para a Luanda que conheci no final dos anos 50 e onde fui menino nos anos 60 e a aspirar à idade adulta nos anos 70, não inquina o orgulho com que vi os meus irmão angolanos conquistar o orgulho da independência, o orgulho de passarem a ser senhores do seu destino, por mais voltas, e algumas foram voltas atrozes, que o destino (para não dizer a geo-estratégia e outros nomes feios) os tenha feito dar.
  5. Não gosto de Trump, não gosto de Bolsonaro, não gosto de Putin. Gosto, e precisamos, da direita e da esquerda – é por elas existirem, em liberdade e alternância, que existe democracia; a exclusão de qualquer delas é um passo para abdicarmos da democracia. E cheguei a esse ponto da vida em que não reconheço superioridade moral a nenhuma delas. Se à extrema-direita podemos assacar e sempre lembrar a barbárie obscena  dos fornos crematórios, não devemos esquecer que foi Trotsky, bolchevique ou comunista, o primeiro a propor a solução do campo de concentração, e que foi Lenine a decidir que nele se deviam despejar os elementos indesejáveis, encarregando-se depois Estaline de aí trucidar milhões de compatriotas, parte substancial dos quais era até comunista.
    Se um travelling é, como dizia Godard, uma questão de moral, é impensável e imoral não estabelecermos essa genealogia, até para podermos falar com clareza sobre nós, sobre os nossos campos, do Tarrafal a São Nicolau, onde a Pide enfiou os anarquistas, comunistas e outros oposicionistas portugueses e os nacionalistas angolanos.

Este, que pensa estas coisas, também sou eu. Nos meses que aí vêm, continuarei com livros e filmes, com baladas e rock ‘n roll. Com o optimismo de quem confia no presente, sem menosprezar a Tradição e ciente de que as visões catastróficas do presente que visam agarrar-nos a amanhãs que cantam têm nelas o perigoso bacilo da ilusão e, em geral, do fanatismo e da exclusão.

Dois livros que recentemente publiquei na Guerra e Paz editores, um que talvez se possa dizer de esquerda, Antes é que era bom!, do filósofo francês Michel Serres, outro que talvez se possa dizer de direita, Como Ser um Conservador, do filósofo inglês Roger Scruton, resumem, muito melhor do que eu conseguirei dizer, o que penso. Une-os o facto de serem anti-reaccionários.

3D Book Antes e que era bomComo ser um conservador_