A multidão por uma galinha

riefenstahl
Riefenstahl

A mul­ti­dão é um corpo con­vulso e intes­tino. Hoje, a multidão é de sms e tem hora marcada FPode ser uma mul­ti­dão de meio-dia ou de  meia-noite.

Se não me engano, os ale­mães é que sabem. A Rie­fensthal sabia que não sabia fil­mar sem uma mul­ti­dão. Metó­dica, filmou-as em parada, em patrió­ti­cos dis­po­si­ti­vos geo­mé­tri­cos: de cada mul­ti­dão, a cine­asta favo­rita de Hitler fazia um exér­cito, o potente triunfo da von­tade.

Fritz Lang, ale­mão des­na­tu­rado, era um reac­ci­o­ná­rio sem fer­vor. Fil­mou a exausta mul­ti­dão de “Metro­po­lis” como uma tropa abú­lica e zom­bie. Para sobres­salto do espí­rito pro­gres­sista e orde­nado de Hitler, em “M”, numa cari­ca­tura hos­til, Lang con­verte uma caó­tica mul­ti­dão de cri­mi­no­sos num impla­cá­vel júri jus­ti­ceiro. Dei­xou a mulher revo­lu­ci­o­ná­ria aos revo­lu­ci­o­ná­rios nazis e fugiu para a Amé­rica, onde, em “Fury”, mos­tra que a mul­ti­dão, entre­gue a si mesma, é um Cristo cru­de­lís­simo, um Gue­vara car­rasco: ao pé deles, Átila é um menino de coro.

Com ou sem ale­mães, no cinema, a mul­ti­dão foi épica ou trá­gica. Por vezes vicen­tina, ainda que nin­guém no cinema do mundo saiba quem seja ou foi Gil Vicente.

No “Impé­rio do Sol”, Spi­el­berg, o anti-Riefenstahl, segue um miúdo oci­den­tal na imensa China que os japo­ne­ses inva­dem. É um miúdo sozi­nho encos­tado à linha de hori­zonte de uma colina suave. Um bur­bu­ri­nho redondo e con­sis­tente vem não se sabe donde. O miúdo vai à pro­cura. Com a sur­presa e beleza das coi­sas sim­ples, Spi­el­berg tira do plano o hori­zonte e ofe­rece a massa com­pacta de um bata­lhão de sol­da­dos aos olhos do miúdo que era Chris­tian Bale. É a única mul­ti­dão ex-nihilo que vi nas­cer num filme.

Cecil B. De Mille tinha o gosto do espec­tá­culo e da rea­li­dade do espec­tá­culo: nos “Dez Man­da­men­tos” jun­tou 14 mil figu­ran­tes ao aus­tero Moi­sés que era Charl­ton Hes­ton. Parecia-lhe, ainda assim, pouca rea­li­dade e man­dou vir 15 mil ani­mais. Havia gali­nhas quando o mila­gre abriu o Mar Ver­me­lho para a pas­sa­gem do povo eleito. Meu direc­tor nos idos da Cine­ma­teca, Luis de Pina bem me ensi­nou que pode haver bons fil­mes sem gali­nhas, mas filme com gali­nha é sem­pre um bom filme.

mar vermelho
abre-se o Mar Vermelho

Gali­nhas incluí­das, catorze mil figu­ran­tes e quinze mil ani­mais for­ma­vam a rea­lís­sima e caco­fó­nica mul­ti­dão. Hoje não! For­mi­gas, legiões ou elfos, seja em “Ant Z”, “Gla­di­a­dor” ou “O Senhor dos Anéis”, a mul­ti­dão é vir­tual, uma mul­ti­pli­ca­ção digi­ta­li­zada.

Em “Matrix Relo­a­ded”, o agente Smith bate-se con­tra 100 clo­nes seus. Vê-se que não é uma mul­ti­dão, mas ape­nas cama­das e cama­das de ecrãs. A hete­ro­ní­mia de Pes­soa seria para aqui muito mal cha­mada. Esta é uma hete­ro­ní­mia de CGI, como se chama a ima­gens gera­das vir­tu­al­mente. Não há dor, cho­co­late ou meta­fí­sica numa mul­ti­dão CGI. Na Grécia, em Lisboa, em Moscoco, sms a sms, de tablet a smartphone, geram-se mul­ti­dões vir­tu­ais, cama­das e cama­das de ecrãs. Nada de meta­fí­sica, muito menos uma galinha.