A culpa não é da minha velhinha edição da Paideia, de Werner Jaeger, nem da Hélade ou dos Estudos de História da Cultura Clássica, da admirável Professora Maria Helena da Rocha Pereira. Por muito que os lesse, e alguma coisa li, faltou-me aprender grego, para poder mergulhar ou aspirar a outros voos nos baixos fundos e altos céus da cultura grega.
Mas o atrevimento ignorante, que me é inerente e imparável, fez-me escrever o que aí vem, que é só teoria minha, ou talvez seja só preconceito meu. São sequelas do que me ficou das horas de pouco e desordenado estudo que consegui encaixar nos anos de vida pouco recomendável em que coincidi passar pelos bancos da douta Academia e em que o professor Trindade Santos amorosamente me aturou – com uma perninha e umas conversas de café e sobre café com o professor Manuel S. Lourenço.
Sempre que penso em Aquiles, não é bem com os olhos de Pátroclo que o vejo. Penso nele e a minha conclusão é sempre a mesma: na Ilíada, Aquiles não é um, é dois.
A sua origem é divina. Semi-deus, filho de um rei e da nereida Tétis, tão central como ausente na narrativa, Aquiles é o herói modelo. Nobre e corajoso, ele é o exemplo da (virtude) guerreira.
Mas Aquiles, o Aquiles que Homero nos apresenta, é humano desde o primeiro momento, tragicamente humano. “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles…” Aí está o homem: colérico, furioso e vingativo.
Aquiles é mesmo duas vezes vingativo: contra Agamémnon que lhe rouba Briseida, a escrava que recebera como troféu de guerra; contra Heitor que matou o seu fiel Pátroclo. O rancor de Aquiles contra Agamémnon é mais forte do que a obrigação de lutar ao lado dos seus guerreiros que, impávido, deixa perecer às mãos sangrentas dos troianos, a quem os deuses, instados por sua mãe, entretanto passaram a proteger.
Mais tarde, regressado ao campo de batalha e movido por uma vingança desabrida, Aquiles arrasta o cadáver de Heitor à volta do túmulo do Pátroclo, o amigo (“arrastei para aqui Heitor, para os cães o comerem cru;”), sob o olhar desfeito e agónico de Príamo, o pai do nobre vencido. Ímpio, recusa-lhe depois sepultura.
Se em Homero (ou no poema das múltiplas vozes que o seu nome recobre) Aquiles dos pés velozes (mas de frágil calcanhar) era duplo – deus e humano, tão nobre e corajoso como colérico e vingativo – nos séculos que se seguiram os poetas deram-lhe variadas máscaras. Foi personagem de Ésquilo numa trilogia perdida. Píndaro atribui-lhe uma infância maravilhosa. Shakespeare transforma-o num monstro de vaidade em Tróilo e Créssida. Goethe, como na Ilíada, mostra-o consciente de que terá vita brevis.
Nesta pluralidade de rostos resplandecentes e armaduras faiscantes, reside a beleza que me atrai e o consolo que procuro. Nenhuma síntese, mesmo verdadeira, me dará tanto som, tanta fúria.