Apocalypse Now

Já passaram mais de oito anos. Volto a esta crónica, a mais fiel das crónicas ao modelo que me propus seguir no Expresso: nela se misturam os filmes e a livre evocação dos filmes, os filmes e os livros ou a vida que lhes deu corpo e alma. Não sendo mentira, esta crónica é injusta: falta-lhe, do filme, o rio que o barco de Sheen sobe, falta-lhe a corrente de consciência que a voz off inscreve em Sheen e nos espectadores que o contemplam. E falta-lhe, da vida, ajustar o retrato que nela se dava da Europa, que o Kurtz de Conrad já não amava, e da América que o Kurtz de Coppola, de tanto a amar, desprezava.

Kurts

Apocalypse Now

Francis Coppola e Marlon Brando gritavam maus modos um ao outro na selva filipina que lhes fingia de Vietnam. As filmagens estavam paradas há dias e a espessa indecisão que os aturdia cheirava a apocalipse. Milhões de dólares escorriam das folhas das palmeiras e batiam nas pás dos helicópteros que atroavam os ares. Olhava-se e via-se que aquilo era o Cinema.

Coppola e Brando discutiam um fim para a personagem de Kurtz desencantada no Heart of Darkness, de Joseph Conrad. Queriam que a personagem do filme coincidisse ponto por ponto com a do livro. E coincidia, na forma estranha que as coisas têm de coincidir em cinema.

No livro, pai meio-francês, mãe meio-inglesa, Kurtz era europeu e trabalhava para uma companhia belga. O Kurtz do filme era americaníssimo, coronel de tropas especiais, o comando com que o marechal Spínola sonharia a napalm e Shakespeare.

No livro, Kurtz arrancava marfim das profundezas do Congo com métodos que enchiam o espaço de uivos inumanos; o Kurtz do filme sacudia o Vietnam com uma guerra heterodoxa, de corpos trucidados e de impiedade amoral. Movidos pelos mais nobres ideais de civilização, ambos os Kurtz se fundiam com os nativos, regressando a uma pureza selvagem que confirma Rousseau como o idiota útil que de facto foi. Os dois Kurtz eram iguais como gotas de água, só que um era a gota de água europeia e o outro a gota de água americana.

Ah sim, num ponto Coppola e Brando desesperavam: que fim dar a Kurtz? No romance, Conrad envia Marlow, seu alter-ego, buscá-lo ao coração das trevas. Marlow recolhe-lhe o corpo mirrado, admira-o e deixa-o morrer, um gutural “o horror, o horror” a assombrar a noite.

Mas Coppola e Brando tinham vontade de ritual e sangue. E, com aquelas dores metafísicas que só os americanos sabem ter, perguntavam-se: deve ser o Destino ou um Punhal a pôr fim ao inferno a que os nobres ideais conduziram Kurtz?

No Cinema, quando o cinema é de milhões e de sonho, tudo se consegue: de 1902 e do céu desceu um helicóptero com Joseph Conrad. Fúnebre mas ainda bem conservado. Falou e disse: matem-no!

Matar Kurtz, explicou-lhes Conrad, não só é legítimo, como corrige o meu erro no romance. Matá-lo, não lhe altera a identidade; faz é de Marlow um assassino, o que jamais, jura Conrad, eu lhe poderia ter feito. Mas podia, confessou-lhes o escritor, ter dado a Marlow a coragem de dizer a verdade à noiva que Kurtz deixara na Europa. A Europa que essa noiva era, se ela tivesse sabido, teria sabido a violência convulsa que fora o Poder de Kurtz, o primitivo cortejo de crimes, os espectros bruxuleantes no nevoeiro da selva, as caveiras empaladas, o negríssimo rosto da aventura. A noiva saberia que, na hora da morte, Kurtz a esquecera e não pronunciara o seu nome.

Coppola e Brando ouviram Conrad e perceberam já ter fim para o seu Apocalipse: tudo o que a Europa não diz ou à Europa não se diga, é a verdade violenta da América, a sua arte. A Europa não diz, a América mata: no fim o imenso corpo de Kurtz tinha de ser despedaçado à catanada.

Sheen

Rita, Paulo & Nico

 

R&P
Rita & Paulo

As páginas negras nascem das melhores intenções. Ou seja, toda a celestial máquina lírica pode muito bem acabar no Hades do nosso descontentamento. Para ser simples e directo: sem a candura e inocência da minha filha Rita eu não estaria agora em retiro sabático nesta minha Página Negra.

Pois bem, e a minha filha Rita, sem a camuflada intervenção do seu Paulo, não me teria dado a luminosa graça que em tudo contradiz o título sombrio e e eticamente reprovável que dei a este blog ou página ou arquivo ou lá o que vai ser, que por enquanto ainda não é nada. Mas é bonito. E a beleza é toda vossa, Rita & Paulo, fundo branco, lettering e aquele banner que foram roubar ao Red Shoes de Powell e Pressburger, à angustiada expressão de Moira Shearer.

Red shoes
Moira Shearer em Red Shoes

Obrigado Rita, obrigado Paulo. Agradecimento extensivo à Nico, essa arisca gata negra que arrasta a perna, como nos Usual Suspects arrastava a perna a personagem de Kevin Spacey, esse inesquecível Keiser Soze, não mais inesquecível porém do que a negra, soturna e silenciosa Nico. Rita, Paulo, Nico esta Página Negra é vossa.

Nico
Nico, a gata

Os valentes álamos do Sul

Quantas vezes já voltei a esta canção? Volto sempre, porque embora seja uma volta grande, uma volta que vai de Lisboa à América, é uma volta que acaba sempre em África. Talvez porque tudo na minha cabeça acaba e começa sempre em África.

linchamento

Era novo e comu­nista. Abel Mee­ro­pol era um jovem judeu do Bronx. Dava aulas no liceu ali ao lado. Foi ele, nes­ses anos pós-crash, que escre­veu o poema.

Tinha visto a foto das árvo­res nos jor­nais. Não viu, mas adi­vi­nhou, o balanço que o doce vento devia dar a tão estra­nha fruta pen­dendo dos ramos dos valen­tes álamos do Sul. Mais tarde, tudo a convidá-lo ao sofri­mento, compôs a música.

O Café Soci­ety era uma cave, no nº1, She­ri­dan Square, em Grenwhich Vil­lage. Bil­lie Holi­day era a atrac­ção e can­tava para uma pla­teia branca e negra – uma rari­dade no final dos anos 30.

Foi o dono, Bar­ney John­son, que apre­sen­tou o imper­ti­nente comu­nista à can­tora negra. Abel can­ta­ro­lou para Bil­lie que, dizem, pare­ceu pouco impres­si­o­nada. O des­men­tido veio dois dias depois. A voz de Bil­lie estendeu-se a todo o com­pri­mento das pala­vras. Tão dei­tada como sofrida. Uma voz a roçar a resignação.

Na pri­meira noite em que Bil­lie can­tou “Strange Fruit” não houve encore no Café Soci­ety: a feli­ci­dade amarga da razão fechou os olhos, cer­rou as mãos. Não se aplaude uma can­ção des­tas, disse um dia Bob Dylan a Marty Scorsese.

Nin­guém quis gra­var “Strange Fruit” até que um dia Bil­lie foi ter com o tio de Billy Cris­tal (sim, esse mesmo) e a can­tou a cap­pella. O disco converteu-se no seu maior sucesso.

O lin­cha­mento dos negros era uma festa de famí­lia no Sul. Vinham homens, mulhe­res e cri­an­ças bran­cas ver os cor­pos dan­çar nos ramos das árvo­res. A voz de Bil­lie Holi­day encosta-se a uma lenta amar­gura para evo­car a his­tó­ria. A sem­pre ter­rí­vel história.

Southern trees bear strange fruit,
Blood on the lea­ves and blood at the root,
Black bodies swin­ging in the southern bre­eze,
Strange fruit han­ging from the poplar trees.

Pas­to­ral scene of the gal­lant south,
The bul­ging eyes and the twis­ted mouth,
Scent of mag­no­lias, sweet and fresh,
Then the sud­den smell of bur­ning flesh.

Here is the fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bit­ter crop.

Havemos de voltar

Vou trazer para esta Página Negra, todas as semanas, a crónica que escrevo na revista do Expresso. O título genérico da coluna é, como alguns fiéis amigos já sabem, “O Cinema Dá o Que a Vida Tira”. Um toque escapista, já se vê.
Uma semana depois da publicação, fica aqui. Agora, gostava muito que comprassem o Expresso e os jornais todos. O papel não deve morrer. Está nas nossas mãos (infelizmente, nos nossos bolsos também) evitarmos uma pequena catástrofe para duas coisas vitais, a liberdade e o prazer. 

Salmo Vermelho
Antes que o Verão acabe, eis uma lista de coisas que gostava de voltar a ver ou a ouvir:

Maminhas como as dos filmes de Miklós Jancsò.
Maravilhosa, a justificação dele: “Há três coisas que não passam de moda. Primeiro, os uniformes, a seguir a nudez e, enfim, os cavalos. É por isso que os uso tanto. Representam um pouco a eternidade.”

O cinismo na ponta da língua.
A história contou-a Elia Kazan, garantindo que não se passou em “The Arrangement”, filme que fizeram juntos. Noutras filmagens, Kirk Douglas, já uma estrela, embirrou com um jovem actor. Fizesse o mocinho o que fizesse, era tudo uma boa merda. A equipa já estava toda lixada, para não dizer constrangida, e um veterano director de fotografia passou-se dos carretos: “Kirk, lembro-me de quando começaste. Eras um puto porreiro. Agora estás feito um grande cabrão”. Kirk tinha uma resposta cabra na ponta da língua: “Estás enganado, fui sempre um grande cabrão, só que agora tenho dinheiro que chegue para o mostrar.”

michel-simon

Um título de primeira página que sodomize as fake news.
Havia um clássico francês, “Le Jour se Léve”, que fazia chorar Giscard d’ Estaing. O presidente convidou realizador e actores a almoçar no Eliseu. À saída, o fabuloso actor Michel Simon, anarquista, despenteado e mal-amanhado, disse aos jornais: “É muito prático este estabelecimento e além disso é central.” Morreu dias depois. O jornal “Le Canard Enchainé”, libérrimo, satírico e divinamente irresponsável, titulou em primeira página: “Michel Simon morre envenenado no Eliseu.”

O polegar da mão esquerda de Ornella Mutti.
Ah, Mutti, Mutti o que esse teu polegar de “A Última Mulher”, meio-escondido na tua boca sublime, nos fez sofrer e sonhar, num filme em que, exemplo maior da objectificação e exploração sexual do corpo masculino, Gérard Dépardieu conseguia o prodígio de passar muito mais tempo despido do que tu e em nu frontal.

Dos visionamentos matinais na Cinemateca.
Obrigado Edith Clever, minha Marquise d’O, por teres tão mansamente passado a mão pelos meus saudosos caracóis, no escuro da velha e enterrada sala da Cinemateca. Bem sei que estavam as luzes apagadas e o filme de Syberberg, que projectávamos, era só negrume – vinhas por isso a apalpar e pensaste que foi sem querer, e é essa tua ingénua crença no acaso que mais me comove.

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Publicado no Expresso

Adeus, António Escudeiro

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O António à direita, ao lado do Pedro Bandeira Freire. Eu, na ponta esquerda, com o Fernando Lopes ao pé. Com a devida vénia, foto do Correio da Manhã

Fui há pouco dizer adeus ao António Escudeiro, no Alto de São João. Ficarei com esta imagem, o António era uma coluna de fumo cor de África, que saía da chaminé do crematório. Uma coluna breve, que se confundiu com o tremendo calor das 14 horas deste penúltimo domingo de Setembro. Uma brisa levíssima, sopro da boca de Deus, e o fumo dissipou-se, ágil e breve.

Não sei para onde foi o fumo do António. Talvez tenha ido direitinho a esse terminal dos CFB, Caminho de Ferro de Benguela, no cais ferroviário do Lobito, que o António amava ainda mais do que eu. Foi ali que lhe aconteceu a despedida emocional da África a que nunca deixou de pertencer. Fora lá filmar uma cena do seu documentário de memórias. Quando entrou no gabinete do director, descobriu que a fotografia do pai, que fora director colonial dos CFB, estava na parede, acima do director angolano. «O seu pai marcou a história dos CFB, foi ele que permitiu que houvesse maquinistas negros», foi o que o António, comovido, ouviu da boca do director angolano. Depois, nova surpresa: tinham preparado a carruagem nobre e tinham-lhe reservado assento no lugar de honra que noutros tempo fora o do seu pai. O António chorava por dentro, tentando não dar parte de fraco por fora. Sentou-se e o comboio nunca mais partia. Pensou que seriam as burocracias angolanas, esses inenarráveis atrasos aprendidos com os portugueses e exponenciados pelo laissez faire tropical. Até que o chefe de cais lhe vem bater à janela e diz: «Senhor Director, só posso mandar partir o comboio se me der ordem, era assim quando o seu pai estava a bordo, é assim consigo.» Os olhos do António converteram-se num rio.

Hoje, no cais do Alto de São João, partiste, igualzinho a essas locomotivas que cruzavam Angola, do porto do Lobito direitas ao grande coração mineral de África. Dos rapazes do nosso grupo jantarista de Tróia já tinham partido, uns de barco, outros de avião, o Pedro Bandeira Freire, o Alface, o Dinis Machado. Andamos por cá o José Navarro, o António Mendes Lopes, o António Setúbal e eu. As raparigas resistem melhor: só se foi embora a Dulce, tantas eram as saudades do Dinis, e estão cá a Antónia, que ia quase sempre, a Gina Frazão, a Cristina e a Manuel Carona que vinham por vezes.

Morávamos na mesma rua e tínhamos ponto de encontro nos cinema do El Corte Inglès. Não nos voltaremos a cruzar e não te ouvirei dizer, «Pá, a crónica desta semana do Expresso não era má de todo.» Adeus, António.

A página negra de Manuel S. Fonseca

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Esta é uma página bebé, como o Louis, o meu pré-neto, por ser o neto da Faty e do Abilio, meus irmãos de guerra. Já posso pôr aqui a foto dele, que o Louis já está grande e toca piano.

Esta é, a partir de hoje, a minha página na web. Não substitui o Escrever é Triste – que nada substitui o Escrever é Triste, como nada substituiu o É Tudo Gente Morta. Nem substitui a minha futura participação num projecto colectivo, mas não colectivizante, em que hão-de estar a Eugénia de Vasconcellos, o Pedro Norton, o Pedro Bidarra, o Henrique Monteiro, a Rita Vasconcelos, a Teresa Conceição, muitos outros Tristes e outros não-e- nunca-Tristes.

Esta página é uma página de outro tipo. É uma página narcisista, de um narcisismo negro, porventura, mas é sabido que eu entretenho com o negro um romance caravaggiano.

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Eis uma foto de puro e filosófico espanto tirada na amada costa ocidental de África, na casa do Sambizanga, a três passos das alcantiladas barrocas sobre o meu irmão oceano

Vou reunir nesta Página Negra artigos, divagações, entrevistas, jeremíadas, manifestos tonitruantes do passado, acrescentando-lhes sempre alguma coisa de novo, alterações que talvez venham a ser muito mais do que de rodapé.
E nesta Página Negra vão também surgir novos artigos, algumas prosas mais íntimas e confessionais. Dizia o esquecido e afogado Michel Leiris, que a escrita ou era uma arte tauromáquica ou não era nada. Escrever sem que o escrevente se exponha aos nus e afiados cornos do touro não é escrita. E chega de promessas. Passemos aos actos ou não seja esta a Página Negra de Manuel S. Fonseca.

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Este não sou eu. Bateu-me em cheio a arte de Alfredo Cunha