Fazer coisas belas a mulheres belas

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Ava Gardner

Para mim, não há cinema, há filmes. Nâo há , por isso, uma teoria do cinema.Não deixo, ainda assim, de ter uma palpável teoria. Em boa verdade pedida emprestada a Truffaut: “O cinema é fazer coisas belas a mulheres belas.” É esta a teoria.

Enumero algumas provas de indesmentível carácter científico: a trémula e ingénua Lilian Gish do “Lírio Quebrado” de Griffith; o calor torrencial da dança de Rita Hayworth na “Gilda” de Charles Vidor; o amor obsceno e metafísico de Gene Tierney pelo fantasma de Manckiewicz;  ou – e agora respirem a ver-se aqui neste espelho  –

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Carole Bouquet, Este Obscuro Objecto do Desejo

o obscuro objecto do desejo que Buñuel descobriu em Carole Bouquet; a involuntária sexualidade de Marylin no “Pecado Mora ao Lado” de Billy Wilder; a luz intensa e mágica do olhar de Elizabeth Taylor em “Um Lugar ao Sol”; os lancinantes pedidos de socorro de Natalie Wood em “Esplendor na Relva”; os shorts brancos de Jean Seberg em “Bonjour Tristesse”. A Monica Vitti de Antonioni, a Fanny Ardant de Truffaut, a Karina de Godard, a Liv Ullman de Bergman, a Loren de De Sica, a Nastassia Kinski de “Tess” e “Do Fundo do Coração”, a Grace Kelly da “Janela Indiscreta”. Todas as estrelas que os produtores amaram. O rosto, o corpo, os seios, as ancas de Ava Gardner, ponto final.

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Liz Taylor, A Place in the Sun

Pode filmar-se a poesia?

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Natalie Wood

Não sei se pode ou não filmar-se a poesia. Deixem-me tentar.

Invento que, em “Atonement”, a acesa boca de Keira Knightley, em que logo apetece humedecer a nossa, é apenas a tradução em filme deste resignado verso de e. e. cummings: “… se os teus lábios, que outrora amei, tiverem de tocar noutros.” A boca de Keira e o verso de cummings anunciam a separação dos amantes, antecipando a dor que há-de vir.

Poesia e cinema coincidem ao incendiarem de imagens cada cérebro que tocam. Na poesia, o verbo é tão actor como Natalie Wood em “Splendor in the Grass”. No poema, as palavras levantam-se como a câmara que sobe para ver o mundo do alto do céu no fim de “Perfect World”, de Clint Eastwood.

Pergunto: que cineasta poderia ter filmado a explosão verbal de Herberto Helder, o nosso maior poeta? Cukor tinha a elegância, mas não a viril vocação animal. Talvez Preminger, o Preminger de “Bonjour Tristesse”, se conquistado pelo romantismo doentio de Godard.

Imagino que todos os poemas foram já filmados. Mesmo os de Herberto. Fui ler:

“Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
Pelo orvalho parado da noite.”

Já vi estes versos no cinema: homens a correr “pelo orvalho parado da noite”. Em filmes de guerra de Samuel Fuller, no “Target”, de Arthur Penn, em que Gene Hackman é espião em Berlim. Também num velho filme de Fritz Lang, “Man Hunt”, irrompe a exacta imagem do verso de Herberto. É um filme de perseguição, presas humanas e nevoeiro espesso. Diga-se: no cinema contemporâneo, só um actor, Matt Damon, tem fôlego para correr pelo orvalho dentro, atravessando as portas da morte e renascendo de todas as perseguições.

Herberto foi ainda mais narrativo nos contos de “Os Passos em Volta”. “Polícia” é a história de um clandestino que sobrevive de expedientes e foge à extradição numa insuportável Bruxelas. Encontra Annemarie, “a criatura mais só da terra”, num sítio onde “as putas e os chuis eram mais do que as mães”. Leio e penso: já vi!

Mas onde é que já vi dois amantes nus a atravessar, a cobertores e café, a chuva de uma noite fria? Foi num dos filmes de longas conversas de Eric Rohmer? Não, foi no “They Live by Night” de Nicholas Ray: tenho a certeza de que Farley Granger leu e se inspirou no herói clandestino de Herberto. E invento: num filme ideal, Juliette Binoche seria Annemarie, uma francesa de Lyon.

O filme ideal, o que juntaria a Binoche e Matt Damon, escreveu-o Herberto, antes que os dois nascessem, no poema destes primeiros versos:

“As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.”

O cinema arde quando é dito assim.

they live by night
They live by night

O que é um telegrama?

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Há muitos, muitos anos, num planeta muito, muito distante chamado Terra, e havendo ainda uma instituição a que se chamava “correios, telégrafos e telefones”, um jornalista inglês mandou um telegrama ao agente de um famoso actor, Cary Grant, perguntando-lhe: “How old Cary Grant?
Acidentalmente, e como só nesses tempos remotos acontecia, o telegrama acabou por cair nas mãos do actor. Não só não se ofendeu, como, com panache e de coração ao alto, respondeu: “Old Cary Grant fine. How you?”.
O mundo já teve graça. Depois, dizem, ficou perigoso. A mim parece-me que talvez esteja só chocho.

grant_Mae

Ai, Mizoguchi

Convido-vos a virem comigo ao WC feminino da Cinemateca Portuguesa

MIZOGUCHI
ai, mizoguchi

Mas afinal, onde está a arte? Projectava-se o “Je Vous Salue Marie” na Cinemateca. No gigantesco portão da rua uma multidão de integristas tentava rebentar as barras, como se lá dentro estivesse a arte cativa e fosse preciso libertá-la das garras do João Bénard y sus muchachos, banda mariachi que era o ódio de estimação do então famoso crítico Augusto M. Seabra, a quem mando um abraço. Jovens de piedosos 20 anos trepavam o íngreme gradeamento, tombando na calçada do passeio, quais figurantes eisensteinianos. No breu da sala esmurravam-se integristas imberbes, velhos comunistas e perplexos polícias, concorrendo em arte e beleza com as imagens blasfemas e basquetebolistas de Jean-Luc Godard. A sala tinha um hálito de Espírito Santo, mistura do cheiro imperial a coca-cola teenager com o bafo lusíada de militante bagacinho foice e martelo. Não era o pandemónio, era a arte.

Marie
um hálito de Espírito Santo

Mas afinal onde está a arte? Andava a Cinemateca enroladinha com a Gulbenkian a fazer um Ciclo do pasmoso Cinema Musical e, na salinha Félix Ribeiro, pensou-se exibir o salmo à fé punk que era “The Great Rock ‘n’ Roll Swindle”. Ora bem. Houve, como nunca houvera, uma multidão espontânea em Lisboa. Era uma multidão de cabelos arco-íris eriçados, roupas em variantes negras de negro, botas e metais. Era a multidão anti-portuguesa que cuspia. Só o mau vinho carrascão em garrafas de grosso vidro verde a ligavam ainda à pátria de Afonso Henriques. As paredes da Cinemateca abaularam-se, um leque de líquidas, semi-sólidas ou sonoras manifestações metabólicas escorreram por sofás e alcatifas. Obra e espectadores fundiam-se, centáuricos, num todo caótico e sublime, arte total que humilharia Wagner e os execráveis wagnerianos.

thegreatrocknrollswindle
um salmo à fé punk

 Voltei ontem à Cinemateca. Ah, chorava eu, a melancolia que desliza pelas paredes tão institucionais e académicas de hoje! E eis que, não podendo dizer quem foi, e não fui eu, alguém vem do WC do urgente sexo feminino e me segreda que, numa das escatológicas portas, delicada mão em êxtase lavrou o haiku que resgata qualquer cinzentismo, fundindo, em sublime anseio artístico, a sala, os filmes exibidos e os mais fundos desejos dos espectadores. Na porta do WC, a mulher em chamas escreveu, e eu espero que se preserve e arquive como obra de arte: “Mizoguchi lambe-me a pussy.”

Publicado no Expresso

Apocalypse Now

Já passaram mais de oito anos. Volto a esta crónica, a mais fiel das crónicas ao modelo que me propus seguir no Expresso: nela se misturam os filmes e a livre evocação dos filmes, os filmes e os livros ou a vida que lhes deu corpo e alma. Não sendo mentira, esta crónica é injusta: falta-lhe, do filme, o rio que o barco de Sheen sobe, falta-lhe a corrente de consciência que a voz off inscreve em Sheen e nos espectadores que o contemplam. E falta-lhe, da vida, ajustar o retrato que nela se dava da Europa, que o Kurtz de Conrad já não amava, e da América que o Kurtz de Coppola, de tanto a amar, desprezava.

Kurts

Apocalypse Now

Francis Coppola e Marlon Brando gritavam maus modos um ao outro na selva filipina que lhes fingia de Vietnam. As filmagens estavam paradas há dias e a espessa indecisão que os aturdia cheirava a apocalipse. Milhões de dólares escorriam das folhas das palmeiras e batiam nas pás dos helicópteros que atroavam os ares. Olhava-se e via-se que aquilo era o Cinema.

Coppola e Brando discutiam um fim para a personagem de Kurtz desencantada no Heart of Darkness, de Joseph Conrad. Queriam que a personagem do filme coincidisse ponto por ponto com a do livro. E coincidia, na forma estranha que as coisas têm de coincidir em cinema.

No livro, pai meio-francês, mãe meio-inglesa, Kurtz era europeu e trabalhava para uma companhia belga. O Kurtz do filme era americaníssimo, coronel de tropas especiais, o comando com que o marechal Spínola sonharia a napalm e Shakespeare.

No livro, Kurtz arrancava marfim das profundezas do Congo com métodos que enchiam o espaço de uivos inumanos; o Kurtz do filme sacudia o Vietnam com uma guerra heterodoxa, de corpos trucidados e de impiedade amoral. Movidos pelos mais nobres ideais de civilização, ambos os Kurtz se fundiam com os nativos, regressando a uma pureza selvagem que confirma Rousseau como o idiota útil que de facto foi. Os dois Kurtz eram iguais como gotas de água, só que um era a gota de água europeia e o outro a gota de água americana.

Ah sim, num ponto Coppola e Brando desesperavam: que fim dar a Kurtz? No romance, Conrad envia Marlow, seu alter-ego, buscá-lo ao coração das trevas. Marlow recolhe-lhe o corpo mirrado, admira-o e deixa-o morrer, um gutural “o horror, o horror” a assombrar a noite.

Mas Coppola e Brando tinham vontade de ritual e sangue. E, com aquelas dores metafísicas que só os americanos sabem ter, perguntavam-se: deve ser o Destino ou um Punhal a pôr fim ao inferno a que os nobres ideais conduziram Kurtz?

No Cinema, quando o cinema é de milhões e de sonho, tudo se consegue: de 1902 e do céu desceu um helicóptero com Joseph Conrad. Fúnebre mas ainda bem conservado. Falou e disse: matem-no!

Matar Kurtz, explicou-lhes Conrad, não só é legítimo, como corrige o meu erro no romance. Matá-lo, não lhe altera a identidade; faz é de Marlow um assassino, o que jamais, jura Conrad, eu lhe poderia ter feito. Mas podia, confessou-lhes o escritor, ter dado a Marlow a coragem de dizer a verdade à noiva que Kurtz deixara na Europa. A Europa que essa noiva era, se ela tivesse sabido, teria sabido a violência convulsa que fora o Poder de Kurtz, o primitivo cortejo de crimes, os espectros bruxuleantes no nevoeiro da selva, as caveiras empaladas, o negríssimo rosto da aventura. A noiva saberia que, na hora da morte, Kurtz a esquecera e não pronunciara o seu nome.

Coppola e Brando ouviram Conrad e perceberam já ter fim para o seu Apocalipse: tudo o que a Europa não diz ou à Europa não se diga, é a verdade violenta da América, a sua arte. A Europa não diz, a América mata: no fim o imenso corpo de Kurtz tinha de ser despedaçado à catanada.

Sheen

Havemos de voltar

Vou trazer para esta Página Negra, todas as semanas, a crónica que escrevo na revista do Expresso. O título genérico da coluna é, como alguns fiéis amigos já sabem, “O Cinema Dá o Que a Vida Tira”. Um toque escapista, já se vê.
Uma semana depois da publicação, fica aqui. Agora, gostava muito que comprassem o Expresso e os jornais todos. O papel não deve morrer. Está nas nossas mãos (infelizmente, nos nossos bolsos também) evitarmos uma pequena catástrofe para duas coisas vitais, a liberdade e o prazer. 

Salmo Vermelho
Antes que o Verão acabe, eis uma lista de coisas que gostava de voltar a ver ou a ouvir:

Maminhas como as dos filmes de Miklós Jancsò.
Maravilhosa, a justificação dele: “Há três coisas que não passam de moda. Primeiro, os uniformes, a seguir a nudez e, enfim, os cavalos. É por isso que os uso tanto. Representam um pouco a eternidade.”

O cinismo na ponta da língua.
A história contou-a Elia Kazan, garantindo que não se passou em “The Arrangement”, filme que fizeram juntos. Noutras filmagens, Kirk Douglas, já uma estrela, embirrou com um jovem actor. Fizesse o mocinho o que fizesse, era tudo uma boa merda. A equipa já estava toda lixada, para não dizer constrangida, e um veterano director de fotografia passou-se dos carretos: “Kirk, lembro-me de quando começaste. Eras um puto porreiro. Agora estás feito um grande cabrão”. Kirk tinha uma resposta cabra na ponta da língua: “Estás enganado, fui sempre um grande cabrão, só que agora tenho dinheiro que chegue para o mostrar.”

michel-simon

Um título de primeira página que sodomize as fake news.
Havia um clássico francês, “Le Jour se Léve”, que fazia chorar Giscard d’ Estaing. O presidente convidou realizador e actores a almoçar no Eliseu. À saída, o fabuloso actor Michel Simon, anarquista, despenteado e mal-amanhado, disse aos jornais: “É muito prático este estabelecimento e além disso é central.” Morreu dias depois. O jornal “Le Canard Enchainé”, libérrimo, satírico e divinamente irresponsável, titulou em primeira página: “Michel Simon morre envenenado no Eliseu.”

O polegar da mão esquerda de Ornella Mutti.
Ah, Mutti, Mutti o que esse teu polegar de “A Última Mulher”, meio-escondido na tua boca sublime, nos fez sofrer e sonhar, num filme em que, exemplo maior da objectificação e exploração sexual do corpo masculino, Gérard Dépardieu conseguia o prodígio de passar muito mais tempo despido do que tu e em nu frontal.

Dos visionamentos matinais na Cinemateca.
Obrigado Edith Clever, minha Marquise d’O, por teres tão mansamente passado a mão pelos meus saudosos caracóis, no escuro da velha e enterrada sala da Cinemateca. Bem sei que estavam as luzes apagadas e o filme de Syberberg, que projectávamos, era só negrume – vinhas por isso a apalpar e pensaste que foi sem querer, e é essa tua ingénua crença no acaso que mais me comove.

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Publicado no Expresso

Adeus, António Escudeiro

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O António à direita, ao lado do Pedro Bandeira Freire. Eu, na ponta esquerda, com o Fernando Lopes ao pé. Com a devida vénia, foto do Correio da Manhã

Fui há pouco dizer adeus ao António Escudeiro, no Alto de São João. Ficarei com esta imagem, o António era uma coluna de fumo cor de África, que saía da chaminé do crematório. Uma coluna breve, que se confundiu com o tremendo calor das 14 horas deste penúltimo domingo de Setembro. Uma brisa levíssima, sopro da boca de Deus, e o fumo dissipou-se, ágil e breve.

Não sei para onde foi o fumo do António. Talvez tenha ido direitinho a esse terminal dos CFB, Caminho de Ferro de Benguela, no cais ferroviário do Lobito, que o António amava ainda mais do que eu. Foi ali que lhe aconteceu a despedida emocional da África a que nunca deixou de pertencer. Fora lá filmar uma cena do seu documentário de memórias. Quando entrou no gabinete do director, descobriu que a fotografia do pai, que fora director colonial dos CFB, estava na parede, acima do director angolano. «O seu pai marcou a história dos CFB, foi ele que permitiu que houvesse maquinistas negros», foi o que o António, comovido, ouviu da boca do director angolano. Depois, nova surpresa: tinham preparado a carruagem nobre e tinham-lhe reservado assento no lugar de honra que noutros tempo fora o do seu pai. O António chorava por dentro, tentando não dar parte de fraco por fora. Sentou-se e o comboio nunca mais partia. Pensou que seriam as burocracias angolanas, esses inenarráveis atrasos aprendidos com os portugueses e exponenciados pelo laissez faire tropical. Até que o chefe de cais lhe vem bater à janela e diz: «Senhor Director, só posso mandar partir o comboio se me der ordem, era assim quando o seu pai estava a bordo, é assim consigo.» Os olhos do António converteram-se num rio.

Hoje, no cais do Alto de São João, partiste, igualzinho a essas locomotivas que cruzavam Angola, do porto do Lobito direitas ao grande coração mineral de África. Dos rapazes do nosso grupo jantarista de Tróia já tinham partido, uns de barco, outros de avião, o Pedro Bandeira Freire, o Alface, o Dinis Machado. Andamos por cá o José Navarro, o António Mendes Lopes, o António Setúbal e eu. As raparigas resistem melhor: só se foi embora a Dulce, tantas eram as saudades do Dinis, e estão cá a Antónia, que ia quase sempre, a Gina Frazão, a Cristina e a Manuel Carona que vinham por vezes.

Morávamos na mesma rua e tínhamos ponto de encontro nos cinema do El Corte Inglès. Não nos voltaremos a cruzar e não te ouvirei dizer, «Pá, a crónica desta semana do Expresso não era má de todo.» Adeus, António.