A Idade Média era mais livre do que as vanguardas identitárias actuais

cristo na cruz, Colónia, Igreja Sankt Maria
A Idade Média não temia a violência das imagens. Este é um Cristo massacrado e sangrento, numa representação extremada do sofrimento. século XIII, igreja de Santa Maria, Colónia

Mil vezes a Idade Média, ia eu a dizer. E já sabia que estava a exagerar. Mas a Idade Média cristã não proibia imagens e isso é o que não podem dizer os vigilantes que em tantos lugares desta segunda década do século XXI vasculham museus e estabelecem padrões alfandegários para contabilizarem a ingerência de género, o peso étnico, a incheirável sexualidade intempestiva. Este é um tempo em que, dos fálicos nus de Mapplethorpe às talvez não imaculadas cuequinhas da menininha de Balthus, passando pelas apropriações culturais, se passa meticulosamente em revista um delirante sub-texto, flagelando-se as artes (e o pensamento) com chicotes moralizantes que impõem a ortodoxia de várias seitas a que chamarei, porque é o que elas são, minorias identitárias.

A pretexto das mais nobres e utópicas defesas do género e do trans-género, do anti-racismo, que sei eu, pululam censuras e adoptam-se proibições de um reaccionarismo atroz – se forem ao site do Partido Democrático dos EUA, sob o chapéu de People encontram 19 grupos minoritários, reforçando uma divisão que nega o universalismo do que deveria ser um partido nacional, mas isso é já outra conversa.

Estas proibições vanguardistas são proibições que nos fazem ter saudades da Idade Média. O monoteísmo cristão não interditou a pintura e a escultura, alegando que a “honra concedida à imagem reenvia ao protótipo”, ao contrário dos monoteísmos judeu e islâmico, que se refugiaram na impossibilidade da representação visual de Deus. E se ainda houve, no cristianismo, um conflito com a linha iconoclasta bizantina, que advogou a destruição das imagens, a Idade Média primou, vencido esse óbice, por uma extraordinária proliferação e liberdade da representação visual do quotidiano e do transcendente.

Todas as imagens. Fossem elas sagradas ou obscenas. Fossem pintura ou escultura ou iluminuras. As imagens triunfantes foram as de Jesus Cristo crucificado, nalguns casos representado em extremos de sofrimento a roçar um horror sangrento, e a Virgem Maria de que foi imensamente popular uma escultura em que a barriga da Santíssima Mãe se abria e lá se encontrava o Trono da Graça, com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, quase se sugerindo que a Trindade fora concebida no seio da Mulher.

Mas não pensem que a liberdade da imagem se reservava ao que fosse só edificante. Um bispo, Guillaume Durand, fixa, na segunda metade do século XIII, a doutrina, recorrendo à sabedoria do romano Horácio: «Aos poetas e aos pintores pertence a igual liberdade de tudo ousar.» E o bispo vai mais longe e manda às urtigas uma reserva de Horácio, reserva que teria liquidado toda a pintura de Bosch, a saber, o conselho de se deve evitar pintar «um belo busto de mulher que depois termine num feio rabo de peixe.»

A Idade Média pintou todos os rabos que quis e sereias também. A começar por S. José de rabo para o ar, sempre em tarefas ridículas, que insinuam uma duvidosa virilidade, passando pela florescência de falos e vulvas nas igrejas, com cenas de coito que estimulariam a fecundação das mulheres, como era o caso do grosso pino de madeira que servia de pénis a São Greluchon e que as mulheres rapavam para engolirem o pó em casa, o que obrigava à regular substituição ou acrescento do membro viril do esfregado e rapado santo.

Os livros de horas estavam cheios de orações e escândalo – que ao tempo não parecia escandalizar ninguém. Neles havia monges a dar o cu nos bosques ou em cenas de sexo com mulheres. E havia macacos – uma forma satírica de representação do clero – a defecar em cálices, com a expressiva legenda «Este é o meu corpo».

Nada disto era proibido ou escondido. Era livre, para não dizer libérrimo e só a Reforma e a Contra-Reforma vieram anular essa livre deambulação da sátira, esse livre encontro do obsceno com o sagrado.

Como é que, hoje, os grupos identitários, reclamando-se de esquerda e pela esquerda reclamados, tão fracturantes no discurso e na engenharia social, podem ser tão reaccionários que nos conseguem fazer pensar nestes frades copistas, nestes pintores de aldeia, nestes mestres escultores da dita obscura Idade Média como se fossem campeões da liberdade e das artes?

procissão de fim do século XIV
Bizarra procissão de falos, levando no andor uma vulva coroada. Peça em chumbo do século XIV.

(Esta minha prosa tem as suas fontes. Nasceu de duas leituras: a de uma entrevista do historiador de arte Jean Wirth, professor honorário da Universidade de Genebra, à revista Histoire; e uma recensão de Pascal Bruckner às teses do filósofo americano Mark Lilla, professor na Columbia University, de Nova Iorque.)

Os extraordinários blogs dos outros

Delito

Comecemos pelo Delito de Opinião. É um blog extraordinário, com cerca de 30 autores. E, além das qualidades intelectuais e cívicas enormes, o que também importa é que o Pedro Correia, que além de lá escrever, dele se ocupa, o impregna de um sentido de abertura, tolerância e generosidade genuínos. Já lá escrevi na qualidade de convidado, e a todos os blogues em que participei, o Delito fez questão de os saudar e divulgar. Acontece agora o mesmo a este meu Página Negra, que por estes dia o Delito escolhe como blog da semana. Faço daqui a agradecidíssima vénia de quem diz «Senhores, eu não sou digno», mas está no íntimo eufórico. Obrigado.

Cabeça

Outro blog que deu sinal do aparecimento deste A Página Negra foi o Cabeça de Cão. O nome irreverente deu-lho a Eugénia de Vasconcellos, co-criadora do É Tudo Gente Morta e do Escrever é Triste, e que anda agora a preparar a hiperbólica revista que há-de substituir o extinto Escrever. A Eugénia é autora de um dos mais belos livros de poesia publicado nos últimos anos, o Quotidiano a Secar em Verso (a minha opinião é admirativamente parcialíssima, dado ser eu o editor, mas reitero-a aqui com toda a veemência) e em Novembro vai surpreender-nos com outro livro de invulgar intensidade poética, que se vai chamar Sete Degraus Sempre a Descer. Enquanto não o podemos ler, vale a pena seguir o Cabeça de Cão, tão balalão, cabeça de cão, orelhas de gato, não tem coração.

Estes são os blogs de que me sinto família. Vou sacudir a preguiça, para descobrir mais, nos meses que se seguem.

Roberte nessa noite

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Vou recomendar um romance que não é da minha Guerra e Paz editores. Pertence, aliás, a uma editora do grupo dominante e verticalizado, a omnipresente Porto Editora, assim se provando a minha crença nas leis do mercado.
As leis deste romance são outras, as da hospitalidade, e este livro de Klossowski é o indicado para começar um domingo, se atendermos ao maravilhoso vendaval teológico que agita cada página, cada personagem, cada gesto mais insidioso das personagens.

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Há um romance em que, pelas leis de hospitalidade, o marido, invocando a essência do anfitrião, oferece aos convidados os favores da sua mulher. Tudo acontece em 94 páginas que oscilam entre a teologia e a pornografia.

Roberte-Nessa-Noite”, esse romance, foi escrito por Pierre Klossowski, em 1954. Entra naquela categoria de livros que, pelo seu anacronismo intrínseco, e pela perda de prestígio da cultura francesa, hoje ninguém se dá ao trabalho de ler e que só por bizarria recomendo. Li-o tarde, nos anos 80, estava quase a fazer 30 anos, e continua, sete lustros depois, a fazer parte dos meus livros de culto, como “A Idade de Homem”, de Michel Leiris, de que falei aqui, ou os “Cantos de Maldoror”, de Lautréamont, de que talvez um dia destes aqui escreva.

A biografia de Klossowski, o autor, compete com o “amontoado de desejos carnais e espirituais” que atravessa “Roberte”, o romance em apreço. Parisiense, era filho de pais de origem polaca e irmão do pintor Balthus, que as cuequinhas de uma menina dos seus quadros pôs na ordem do dia. Klossowski teve como mentores o poeta Rilke, que terá sido amante de sua mãe, e o escritor André Gide, de cujas mãos saíu, para se recolher durante alguns anos no seio de um mosteiro dominicano, na firme disposição de tomar ordens.

Em 1947, depois da Guerra, a vocação sofre um sobressalto e Klossowski abandona a vida monástica, casando-se com Denise Marie Roberte Morin-Sinclair, jovem viúva de guerra. É ela a heroína de “Roberte-Nessa-Noite”, o primeiro romance de uma trilogia erótica, com o título genérico “As Leis da Hospitalidade”. A Roberte do romance, membro do Comité de Censura do Parlamento, é tão inspirada na sua mulher, quanto Octave, o protagonista, escritor de livros obscenos, é o alter-ego do próprio autor.

O que é singular no romance é a fraternidade entre o deboche sexual (“Com uma joelhada violenta entre as nádegas, ele obriga-a a abrir amplamente as coxas; os dedos de Roberte deixam soltar todas as volutas do seu utrumsit à cara do corcunda…”) e o debate teológico (“Querendo colocar a vida do espírito ao abrigo da morte espiritual, o nosso autor criou a dupla substância na qual o espírito se torna solidário de um lugar obscuro, esta carne, imagem do segredo que toda a vontade criada partilha com ele”).

Essência e existência, corpos e puros espíritos, heresias gnósticas e Santo Agostinho, a vida da carne e os caminhos de Deus cruzam-se, em “Roberte”, com experiências sexuais limite que aproximam Klossowski da leitura que ele mesmo fez do divino e perverso marquês, no seu ensaio “Sade, Meu Próximo”, que por acaso dorme na minha biblioteca e, por vezes, me faz de almofada.

O romance de Klossowski é um romance de risco, de uma exposição pessoal que busca a transgressão e o escândalo, formas pelas quais o autor queria aceder à comunhão com o sagrado. Tudo servido pela sintaxe clássica soberba de quem traduzira do alemão Nietzsche e Heidegger e do latim Suetónio ou Virgilio.

Para evitar a censura francesa, “Roberte” foi publicado em edição de luxo com ilustrações do próprio Klossowski (não gostou das que Balthus, o irmão, lhe propôs), e foi vendido por subscrição. Em Portugal o livro saíu na “Livros do Brasil”, com magnífica tradução de José Carlos Gonzalez.

Klossowski morreu em Agosto de 2001 tendo, além da literatura, deixado vasta obra pictórica, como é o caso desta que integra a colecção Berardo.

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Eis o que nos impede o sonho e a utopia: haver vida

Life-In-City

A vida é uma monstruosa barreira à felicidade. Sem os impertinentes transtornos da vida realizaríamos todos os sonhos. Mas vem a vida e zás, ele é as prestações da casa, o trânsito, o governo da vida, os sindicatos da vida, o patronato da vida, estes empregos que não são vida, o raio da universidade que está contra a vida, o cabrão do doutoramento da vida que está a dar cabo de ti, e é a vida, a vida que não nos deixa ser aventureiros, heróicos marinheiros de céu e tanto mar.

A vida é que nos faz mal. Podíamos ter só as artes, os hobbies, passar a tarde de pincel na mão, uma tela em frente; ler toda a noite até nascer o incendiado primeiro raio de sol do dia à página 333; entrar-nos música pelos ouvidos; no intervalo da escrita, inundar-se-nos o palato com a aventura de sabores de ceviche e bouillabaisse, um teppanyaki de carne de Kobe ou ostras de Tavira.

Eis o que nos impede o sonho e a utopia: haver vida. Foda-se lá para vida que é persistente e está logo ali quando abrimos a primeira pestana. Não desgruda e ferra-se-nos à perna como um cão. Já Paul Gauguin fugiu da puta da vida, ou de uma vida filha da puta, recolhendo-se às delícias anti-vida de Noaha, Noah; e deixem-me fazer este ponto e vírgula, para acrescentar que até Jean-Nicolas Arthur Rimbaud calcorreou desertos atrás de camelos a ver se despistava a vida, faltando saber se a despistou mesmo ou se nos despistou só a nós.

Recusemos a vida, façamos greve à vida, ataquemos a jugular com uma dose de eutanásia a essa vida arrogante, presunçosa, cabrona, mandona, impositiva, agitada, histérica, às cidades da vida, às aldeias da vida, aos aeroportos da vida, a estação de São Bento ou ao Grand Central Terminal ou à Gare d’Austerlitz. Morte à vida. Sejamos deliciosa, sofisticadamente felizes sem vida.

A linguagem em cuecas

Cenas

Começou a contagem decrescente. Vem aí o livro que trata o palavrão e o insulto nacionais como eles merecem. Digo eu, que sou o autor, logo o pior juiz que pode haver para este livro talvez controverso. Só posso, como bem entenderão, falar de intenções. Eis então a boa intenção que anima este livro infernal: ser útil, sistematizando a recolha de insultos e palavrões – os verdadeiramente grandes, comecem eles por «c», «f» ou »p», ainda que alguns comecem por «b», o que significa que não estaremos propriamente a falar de alfinetes de peito.

Dia 16, chega às livrarias o “Pequeno Livro dos Grandes Insultos” e eu tenho encontro marcado com os amigos de Lisboa a 15 e com os do Porto a 24. Mas há mais notícias aqui. Oh, que semana.

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Escrever é oferecer-se aos cornos do touro

Ao Luís Osório

Escre­ver tem de ser ir para os cor­nos do touro, caso con­trá­rio vai-te des­pindo que já te atendo 

Leiris

Eu andava com um pé nos 17 e outro nos 18 quando com­prei, na livra­ria ABC, na baixa de Luanda, a “Idade de Homem”, de Michel Lei­ris. Hoje, não há já um por­tu­guês que se dê ao tra­ba­lho de ler um fran­cês como este. Era Luanda, sobrava tempo e li as 222 pági­nas. Dei­xa­ram mar­cas. O livro de Lei­ris, poeta, sur­re­a­lista, mas sobre­tudo etnó­logo e amigo do Geor­ges Bataille de “L’Erotisme”, era um livro de expo­si­ção pes­soal. O autor ofe­re­cia de si mesmo um retrato impla­cá­vel, arris­cando por vezes uma auto-flagelação que ainda hoje me faz pen­sar se o ver­da­deiro rito de pas­sa­gem para a viril idade não é a lúcida capa­ci­dade de nos auto-examinarmos e, com cal­cu­lada injus­tiça, nos des­va­lo­ri­zar­mos ao ponto de um certo escárnio.

É com esse exer­cí­cio cruel que Lei­ris começa o livro, fazendo a sua des­cri­ção física: “…detesto ver-me de repente num espe­lho por­que, não estando pre­pa­rado para isso, acho-me sem­pre de uma feal­dade humi­lhante”. Picasso, que era amigo dele, leu e disse-lhe com todas as letras: “Votre pire (ou meil­leur) ennemi n’aurait pas fait mieux !” Outro pin­tor, outro amigo, Bacon, confirmou-o com este retrato que não mos­tra o que pin­tor via, mas o que Lei­ris catas­tro­fi­ca­mente era.

Leiris_Bacon

O pro­pó­sito de Michel Lei­ris era o de des­ven­dar como “a par­tir do caos mira­cu­loso da infân­cia se chega à ordem cruel da idade de homem”. Que­ria fazê-lo, afir­mou, dizendo toda a ver­dade, um pouco mais até do que a irri­só­ria ver­dade. Foi a pri­meira vez que vi, ou li, a lite­ra­tura como uma forma (ou será mesmo um tea­tro) de expo­si­ção pes­soal. O que, dito nes­tes lamen­tá­veis ter­mos, é a mesma coisa do que estar calado. Lei­ris jogava um jogo de alto risco e oferecia-se cris­ti­ca­mente: tomai e comei todos, este é o meu corpo. Ou, como o autor expli­cava, era esta a única forma de intro­du­zir numa obra lite­rá­ria um risco apro­xi­mado à ame­aça dos cor­nos do touro que os homens de lan­te­jou­las enfren­tam na arena. Escre­ves, arriscas-te mostras-te, tens de ousar mostrar-te, na exte­rior e inte­rior dimen­são que, a um tempo, o lírico retrato de Bacon exibe.

Esta visão “da lite­ra­tura como uma forma de tau­ro­ma­quia” fascinou-me sem remé­dio. Ou se escre­via para nos por­mos em causa, correndo-se o risco do equi­li­brista no circo, ou não valia a pena, o que me liqui­dou qual­quer velei­dade lírica ou outros arrou­bos sinfónico-literários. Ou seja, se andam a usar a pobre gra­má­tica, ver­bos, adjec­ti­vos e alguns advér­bios de modo, para jogos flo­rais, então é melhor deixarem-se sodomizar-se pie­do­sa­mente em domés­tico remanso. Não precisa de se saber e não há cá maça­das para ninguém.

Mas será pos­sí­vel escre­ver­mos e descrevermo-nos da forma desa­pi­e­dada que Lei­ris pro­pu­nha? Basta lê-lo para per­ce­ber que os segre­dos, os mitos (tão tocan­tes, o de Lucré­cia, a mulher que se mata, e o de Judite, a mulher que mata), a ence­na­ção tea­tra­li­zada são, mais do que os fac­tos ver­da­dei­ros, a maté­ria da “Idade de Homem”. Neste livro catár­tico, no qual Lei­ris per­corre famí­lia, mulhe­res, mas­tur­ba­ção, sadismo, sagrado e suicídio, para men­ci­o­nar ape­nas alguns dos temas da sua vida, aca­ba­mos por des­co­brir que, por mais ver­dade que se queira pôr no retrato falado de nós, só con­se­gui­mos dizer-nos e contar-nos por sím­bo­los, por mitos e por ale­go­rias. O romance é o fio de Ari­ana do romance “autên­tico” que quero (Lei­ris que­ria) tor­nar comu­ni­cá­vel a outro. Romance é o que põe a nu o coração.

Para que conste, aqui fica a ficha do livro: “L’Age d’Homme” foi publi­cado em 1939, a pedido de Geor­ges Bataille, numa colec­ção eró­tica. A edi­ção por­tu­guesa sur­giu em 1971, na Edi­to­rial Estampa, e a tra­du­ção (exce­lente prosa) é de Maria Helena e Manuel Gusmão.

Curi­o­si­dade final, Lei­ris, no exem­plar do livro que deu à mãe, assi­nou uma dedi­ca­tó­ria reve­la­dora: “À ma chère maman, qui lira dans ce livre des cho­ses qui lui seront peut-être péni­bles, mais qui com­pren­dra — j’en suis sûr — qu’il ne s’agit là que d’injustices d’enfant, n’engageant pas la ten­dresse de l’âge adulte.  Michel” Ou seja: “À minha querida mãe, que vai ler neste livro coisas que serão talvez penosas, mas que compreenderáestou seguro que se trata apenas de injustiças de infância, em nada comprometendo a ternura da idade adulta.”

Que longe que era a guerra

Pode alguém ter saudades e memórias ternas e queridas da guerra? Aposta arriscada, mas vamos já à destrunfa: eu nunca conheci Hitler, mas Bill um miúdo inglês que bem podia ter crescido na velha Luanda dos anos 60, se não fosse um puto londrino dos anos 40, quer dizer duas coisas ao alemão de curto bigode e vai explicar-nos tudo.

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inenarráveis prazeres de um mundo em ruínas

Os escombros são o paraíso da infância. Coitadinha da infância asséptica! Nunca me engasguei tão bem a tentar travar o fumo, que nunca aprendi a travar, como na casa em ruínas. O bando em que sempre andávamos aventurava-se pelas precárias paredes, partíamos os últimos vidros, levantávamos com um pau um resto de vestido, a perna que sobrara de um par de calças.

Eis a casa destruída, com o cheiro tropical do abandono, capim que cresce, os lagartos ou a medrosa cobra que se escondem. Onde os adultos viam e cheiravam os apossépticos odores de um drama, nós víamos e cheirávamos o cabo da boa esperança dos nossos descobrimentos.

Víamos nós e via Bill, o herói de “Hope and Glory”, filme de John Boorman, pequeno e verdadeiro como só os pequenos filmes podem ser verdadeiros. Bill, o miúdo londrino, fomos nós, os exploradores de casas em ruínas da Luanda colonial, que o emprestámos a John Boorman. A sorte que Bill teve. Foi viver em guerra, para o que nós já o tínhamos preparado. E sou, de inveja, obrigado a repetir-me: a sorte que ele teve. Londres era bombardeada forte e feito pelos nazis, enquanto nós, em Luanda, só tínhamos as notícias em surdina dos nossos terroristas libertadores. Nem um eco de um morteiro, sequer o silvo anacrónico de um tiro de canhangulo.

Oh, que longe que era a guerra. Que raio de progressista era Che Guevara, que nem sequer ousara um passo a sul do rio Zaire, um pezinho que fosse no capim de Angola. A muito mais se atrevera, cinco séculos antes, o intrépido reaccionário Diogo Cão. Os nossos 10 anos já tinham saudades do 4 de Fevereiro de 61, que nos obrigara a passar as noites de dois meses em apartamentos da Baixa, colchões estendidos no chão, mulheres e crianças de um lado, homens do outro.

Às noites londrinas de Bill, vinham os bombardeiros da Luftwaffe rasgar a escuridão e o silêncio. Os dias seguintes, como se a vida em guerra fosse férias eternas, eram de alegria pirata nas ruas destroçadas. Até que chega o tempo de voltar às aulas. Bill e os amigos sentem a dura garra da escravidão e do dever aproximar-se. Chateado de morte, Bill volta à escola. Descobre que uma bomba perdida a arrasou essa noite. É o êxtase, o delírio entre os miúdos. Um deles grita, à espera que se ouça em Berlim: “Obrigado, Adolf.”

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chovem bombas em Londres

Publicado no Expresso

Coração tão vermelho como uma rosa

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Youth Without Youth, um filme de Francis Ford Coppola, do que me atrevo a chamar a sua fase tardia, narra a história de um homem de 70 anos que, por acidente, recupera a sua juventude e se descobre dotado de poderes e conhecimentos extraordinários. É um filme de Coppola, e é – vou ser mariquinhas – muito lindo.

Adaptado de uma história do admirável romeno Mircea Eliade, Youth Without Youth é um filme um tudo nada elitista, que tem escrito à entrada, “reservado o direito de admissão”. A entrada no coração, no coração tão vermelho como uma rosa, deste filme de Coppola, só é autorizada se já se for um bocadinho velho, um bocado velhinho.

Como é que eu vou explicar isto? Nem é uma questão de idade. O envelhecimento prematuro também serve. É preciso ter-se perdido uma coisa, qualquer coisa que nunca mais voltaremos a ter. Se em cada centímetro de pele, se nas mãos que já não conseguimos fechar, se lá mais abaixo, e delicadamente escuso-me a apontar, nos passar pela cabeça (pelo coração, sempre pelo coração) que, por exemplo ela, ela que tanto amámos, ela que tanto parecia amar-nos, nunca mais voltará (ou nunca mais a voltaremos a ter), é provável que estejamos autorizados a ver Youth Without Youth. A agonia, a agonia do amor, a agonia do desejo, a agonia da criação; é esse o tema, por vezes demasiado denso, do filme que Coppola pagou com os lucros dos seus vinhos de Napa Valley.

O filme de Francis Ford Coppola é desiquilibrado, delirante (nem sempre no melhor sentido), implausível. Mas é arrebatadoramente nostálgico. E tem o plano, a cena, mais bonita dos últimos anos: Tim Roth /Dominic é um velho curvado ao peso de setenta maus anos. A chuva começa a cair nos cem metros de rua de Bucarest onde veio, talvez, suicidar-se. Dominic tenta abrir um céptico e renitente guarda-chuva. De repente, num desses planos que a timidez me impede de qualificar, um raio vermelho e eléctrico rompe o ecrã e levanta Dominic do chão, transformando-o num anjo a arder. O que depois, logo a seguir, cai no asfalto, são arames incandescentes e um corpo carbonizado. Toda a cena, mas sobretudo a surpresa fulgurante desse plano de um corpo arrebatado que arde e voa, resgata-nos de anos de mau cinema.

Um só plano não faz um bom filme, mas a euforia desses dez segundos de agónica beleza não ma roubam – e faço raccord com a metafísica desta adaptação de Mircea Eliade – nem Deus nem o Diabo.