Ao Luís Osório
Escrever tem de ser ir para os cornos do touro, caso contrário vai-te despindo que já te atendo
Eu andava com um pé nos 17 e outro nos 18 quando comprei, na livraria ABC, na baixa de Luanda, a “Idade de Homem”, de Michel Leiris. Hoje, não há já um português que se dê ao trabalho de ler um francês como este. Era Luanda, sobrava tempo e li as 222 páginas. Deixaram marcas. O livro de Leiris, poeta, surrealista, mas sobretudo etnólogo e amigo do Georges Bataille de “L’Erotisme”, era um livro de exposição pessoal. O autor oferecia de si mesmo um retrato implacável, arriscando por vezes uma auto-flagelação que ainda hoje me faz pensar se o verdadeiro rito de passagem para a viril idade não é a lúcida capacidade de nos auto-examinarmos e, com calculada injustiça, nos desvalorizarmos ao ponto de um certo escárnio.
É com esse exercício cruel que Leiris começa o livro, fazendo a sua descrição física: “…detesto ver-me de repente num espelho porque, não estando preparado para isso, acho-me sempre de uma fealdade humilhante”. Picasso, que era amigo dele, leu e disse-lhe com todas as letras: “Votre pire (ou meilleur) ennemi n’aurait pas fait mieux !” Outro pintor, outro amigo, Bacon, confirmou-o com este retrato que não mostra o que pintor via, mas o que Leiris catastroficamente era.
O propósito de Michel Leiris era o de desvendar como “a partir do caos miraculoso da infância se chega à ordem cruel da idade de homem”. Queria fazê-lo, afirmou, dizendo toda a verdade, um pouco mais até do que a irrisória verdade. Foi a primeira vez que vi, ou li, a literatura como uma forma (ou será mesmo um teatro) de exposição pessoal. O que, dito nestes lamentáveis termos, é a mesma coisa do que estar calado. Leiris jogava um jogo de alto risco e oferecia-se cristicamente: tomai e comei todos, este é o meu corpo. Ou, como o autor explicava, era esta a única forma de introduzir numa obra literária um risco aproximado à ameaça dos cornos do touro que os homens de lantejoulas enfrentam na arena. Escreves, arriscas-te — mostras-te, tens de ousar mostrar-te, na exterior e interior dimensão que, a um tempo, o lírico retrato de Bacon exibe.
Esta visão “da literatura como uma forma de tauromaquia” fascinou-me sem remédio. Ou se escrevia para nos pormos em causa, correndo-se o risco do equilibrista no circo, ou não valia a pena, o que me liquidou qualquer veleidade lírica ou outros arroubos sinfónico-literários. Ou seja, se andam a usar a pobre gramática, verbos, adjectivos e alguns advérbios de modo, para jogos florais, então é melhor deixarem-se sodomizar-se piedosamente em doméstico remanso. Não precisa de se saber e não há cá maçadas para ninguém.
Mas será possível escrevermos e descrevermo-nos da forma desapiedada que Leiris propunha? Basta lê-lo para perceber que os segredos, os mitos (tão tocantes, o de Lucrécia, a mulher que se mata, e o de Judite, a mulher que mata), a encenação teatralizada são, mais do que os factos verdadeiros, a matéria da “Idade de Homem”. Neste livro catártico, no qual Leiris percorre família, mulheres, masturbação, sadismo, sagrado e suicídio, para mencionar apenas alguns dos temas da sua vida, acabamos por descobrir que, por mais verdade que se queira pôr no retrato falado de nós, só conseguimos dizer-nos e contar-nos por símbolos, por mitos e por alegorias. O romance é o fio de Ariana do romance “autêntico” que quero (Leiris queria) tornar comunicável a outro. Romance é o que põe a nu o coração.
Para que conste, aqui fica a ficha do livro: “L’Age d’Homme” foi publicado em 1939, a pedido de Georges Bataille, numa colecção erótica. A edição portuguesa surgiu em 1971, na Editorial Estampa, e a tradução (excelente prosa) é de Maria Helena e Manuel Gusmão.
Curiosidade final, Leiris, no exemplar do livro que deu à mãe, assinou uma dedicatória reveladora: “À ma chère maman, qui lira dans ce livre des choses qui lui seront peut-être pénibles, mais qui comprendra — j’en suis sûr — qu’il ne s’agit là que d’injustices d’enfant, n’engageant pas la tendresse de l’âge adulte. Michel” Ou seja: “À minha querida mãe, que vai ler neste livro coisas que serão talvez penosas, mas que compreenderá — estou seguro — que se trata apenas de injustiças de infância, em nada comprometendo a ternura da idade adulta.”
[…] a fazer parte dos meus livros de culto, como “A Idade de Homem”, de Michel Leiris, de que falei aqui, ou os “Cantos de Maldoror”, de Lautréamont, de que talvez um dia destes aqui […]
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