Roberte nessa noite

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Vou recomendar um romance que não é da minha Guerra e Paz editores. Pertence, aliás, a uma editora do grupo dominante e verticalizado, a omnipresente Porto Editora, assim se provando a minha crença nas leis do mercado.
As leis deste romance são outras, as da hospitalidade, e este livro de Klossowski é o indicado para começar um domingo, se atendermos ao maravilhoso vendaval teológico que agita cada página, cada personagem, cada gesto mais insidioso das personagens.

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Há um romance em que, pelas leis de hospitalidade, o marido, invocando a essência do anfitrião, oferece aos convidados os favores da sua mulher. Tudo acontece em 94 páginas que oscilam entre a teologia e a pornografia.

Roberte-Nessa-Noite”, esse romance, foi escrito por Pierre Klossowski, em 1954. Entra naquela categoria de livros que, pelo seu anacronismo intrínseco, e pela perda de prestígio da cultura francesa, hoje ninguém se dá ao trabalho de ler e que só por bizarria recomendo. Li-o tarde, nos anos 80, estava quase a fazer 30 anos, e continua, sete lustros depois, a fazer parte dos meus livros de culto, como “A Idade de Homem”, de Michel Leiris, de que falei aqui, ou os “Cantos de Maldoror”, de Lautréamont, de que talvez um dia destes aqui escreva.

A biografia de Klossowski, o autor, compete com o “amontoado de desejos carnais e espirituais” que atravessa “Roberte”, o romance em apreço. Parisiense, era filho de pais de origem polaca e irmão do pintor Balthus, que as cuequinhas de uma menina dos seus quadros pôs na ordem do dia. Klossowski teve como mentores o poeta Rilke, que terá sido amante de sua mãe, e o escritor André Gide, de cujas mãos saíu, para se recolher durante alguns anos no seio de um mosteiro dominicano, na firme disposição de tomar ordens.

Em 1947, depois da Guerra, a vocação sofre um sobressalto e Klossowski abandona a vida monástica, casando-se com Denise Marie Roberte Morin-Sinclair, jovem viúva de guerra. É ela a heroína de “Roberte-Nessa-Noite”, o primeiro romance de uma trilogia erótica, com o título genérico “As Leis da Hospitalidade”. A Roberte do romance, membro do Comité de Censura do Parlamento, é tão inspirada na sua mulher, quanto Octave, o protagonista, escritor de livros obscenos, é o alter-ego do próprio autor.

O que é singular no romance é a fraternidade entre o deboche sexual (“Com uma joelhada violenta entre as nádegas, ele obriga-a a abrir amplamente as coxas; os dedos de Roberte deixam soltar todas as volutas do seu utrumsit à cara do corcunda…”) e o debate teológico (“Querendo colocar a vida do espírito ao abrigo da morte espiritual, o nosso autor criou a dupla substância na qual o espírito se torna solidário de um lugar obscuro, esta carne, imagem do segredo que toda a vontade criada partilha com ele”).

Essência e existência, corpos e puros espíritos, heresias gnósticas e Santo Agostinho, a vida da carne e os caminhos de Deus cruzam-se, em “Roberte”, com experiências sexuais limite que aproximam Klossowski da leitura que ele mesmo fez do divino e perverso marquês, no seu ensaio “Sade, Meu Próximo”, que por acaso dorme na minha biblioteca e, por vezes, me faz de almofada.

O romance de Klossowski é um romance de risco, de uma exposição pessoal que busca a transgressão e o escândalo, formas pelas quais o autor queria aceder à comunhão com o sagrado. Tudo servido pela sintaxe clássica soberba de quem traduzira do alemão Nietzsche e Heidegger e do latim Suetónio ou Virgilio.

Para evitar a censura francesa, “Roberte” foi publicado em edição de luxo com ilustrações do próprio Klossowski (não gostou das que Balthus, o irmão, lhe propôs), e foi vendido por subscrição. Em Portugal o livro saíu na “Livros do Brasil”, com magnífica tradução de José Carlos Gonzalez.

Klossowski morreu em Agosto de 2001 tendo, além da literatura, deixado vasta obra pictórica, como é o caso desta que integra a colecção Berardo.

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