Keith Richards e eu

Sumbe, Novembro de 1975, veículo das FAPLA atingido pela artilharia sul-africana

Keith Richards e eu não estávamos juntos no Sumbe, em Novembro de 1975, e se era 1975 ainda o Sumbe era Novo Redondo, quando os sul-africanos entraram pelo Sul e correram comigo do Lobito, obrigando-me a recolher o meu progressismo revolucionário na barjuleta e zarpar quase 200 quilómetros para Norte, a caminho do cálido colinho caluanda.

E eu nem sei porque falo de Keith Richards, forma sonsa que tenho de dizer que sei muito bem para que nó estou a dar este ponto. Vejam, Keith Richards não só inalou as cinzas do seu pai como, com aquele seu ar de quem gosta do cheiro de napalm pela manhã, bebeu um dia a sua própria urina.

Eis o que de líquido tenho para dizer: a babugem da guerra desmembra a rotina e a solidão do convívio social. A guerra alastrou pela cidade do Sumbe como uma mancha em camisola de lã branca. Os meus amigos e eu podíamos ter bebido o que Keith Richards bebeu. E agora que penso melhor, não foi só Keith Richards que bebeu a líquida excreção. John Lennon e o nosso impatriótico Fernão de Magalhães provaram o seu próprio prosaico mijo, como o degustaram a actriz Sarah Miles e, diz-se, o escritor Salinger, autor do insólito Catcher in the Rye. Em tempo de paz só as elites bebem o próprio mijo, talvez seja a intrépida ilação a tirar.

A babugem da guerra, e aquela sua crescente mancha vermelha em t-shirt branca, apaga o solitário eu, patriotiza: da babugem da guerra pingam gestos excêntricos ou, já que quero mesmo ser redundante, esquipáticos.  Os meus amigos e eu tínhamos 21 anos e, de bexiga aliviada, fomos ter com as FAPLA.

Oferecemo-nos para fazer a guerra e surrar os aleivosos carcamanos. Creio que cantávamos You Can’t Always Get What You Want, já tínhamos sacado umas metralhadoras, e abordámos o brando e descontraído camarada recrutador. Para não faltar à verdade, talvez cantássemos o gimme, gimme, gimme, refrão do Honky Tonk Women. O camarada, tão jovem como nós, olhou para o nosso físico rock ’n roll e para os nossos óculos lennonistas. Ainda tenho esse olhar inteligente e perplexo, tão intenso, tão sonoro, a quase apagar a frase que derivou mansa da sua convicta boca independentista e pró-cubana: “Os camaradas são intelectuais – o jovem FAPLA pausou para que sentíssemos todo o firme peso anti-viril da afirmação, e continuou, indulgente – fazem falta na retaguarda.

Aqui está do que ainda lembro: aquela era “a guerra que estávamos com ela”. O povo, mesmo os meus amigos e eu, que tão estreitamente abraçávamos o povo, podíamos até comer uma mengueleca* com funje de milho, mas as assombrosas e indesmentíveis notícias eram as de que se comia carne humana. Comia-a o inimigo, está claro! Porque o inimigo é o depositário de todas as indignidades.

E eu tenho de confessar a minha falta de espanto. Um tão heróico baleeiro como o capitão Pollard, para sobreviver a um naufrágio, pôs a sua tripulação a comer a carne dos seus mortos e quando já ninguém mais morria, sorteou-se quem deveria ser abatido para que do seu corpo tomassem e comessem todos. O pintor Diego Rivera, para se fazer interessante aos olhos e ao arfante peito de Frida Khalo, com a veemência de tudo o que falsamente e para se saciar o baixo-ventre é capaz de dizer, clamava ter feito a experiência da bifana humana com amigos. E o chefe sioux Chuva na Cara, querendo que uma página da vida pudesse servir de exemplo a uma página de Camilo, arrancou do peito e comeu o coração do vencido e finado general Custer.

Era Novembro de 1975 e Keith Richards e eu não estávamos juntos no Sumbe.

Publicado no Jornal de Negócios

*Mengueleca: folha comestível de abóbora

The Godfather, cena 5

Estas cinco cenas comecei a descrevê-las quando ainda não havia net, no tempo das VHS, para o “Semanário”. Mudei e acrescentei agora muitas coisas.
Animava-me um forte sentimento e sentido de família. A minha filha tinha nascido há 15 dias, em Junho de 1989. Mais 15 e alguns dias, há de ela ter nas mãos o meu primeiro neto. Anima-me, de novo, um estranho sentimento de família.

Rituais. Como em John Ford, vamos como peregrinos de um funeral a um baptismo. Mas o que era vida e morte, em Ford, é agora morte e morte neste filme cru e desencantado. E o que em Ford era comunidade, ou o que na comunidade nos redime, é aqui família sufocada, estéril, antropofágica.

Do cemitério para a igreja. Francis Ford Coppola, perdido de paixão pelas linhas ou mundos paralelos, submete tudo o que filmou ao império da montagem. O Padrinho trata a montagem com a água benta da hipérbole. Oremus. A sal e a culatra, a óleo da unção ou a metálicos gatilho e percussor, cada oficiante, seguindo o cerimonial do seu culto, prepara a entrega de outras vidas à morte eterna. Credo in unum deum Patrem

O rosto de Al Pacino são dois olhos: córneas puxadas à sua direita, as escleróticas feitas lagos de terrível e fria ausência, o nariz romano e perfeito a desenhar uma feroz simetria.

Do you renounce Satan? Na camuflada via dolorosa do seu rosto, Pacino renunciará ao que for preciso, a Satanás, para não ou nunca renunciar a nada. Renuncia a Satanás, às suas obras e às suas seduções e falecem Barzini, Tataglia e todas as cabeças das cinco famílias. Alheio às gotas de óleo sagrado e às gotas de sangue da montagem paralela, o rosto de Pacino é a obscura áscua da mais inflexível amoralidade. In nomine Patris…

História portentosa, um Macbeth moderno dizem alguns, e ando eu a repetir de cena em cena, a cada uma das cinco cenas que aqui me trouxeram. E talvez este Macbeth não seja tanto o «retrato da América», para ser sobretudo a forma desmesuradamente ambiciosa de Coppola pintar a glória e a miséria humanas. Na sua dimensão mais visceral, O Padrinho é um ritual de vingança e de fidelidade. Na sua dimensão social, O Padrinho é uma nervosa e psicótica visão da família e um satânico ou divino retrato do Poder.

The Godfather, cena 4

Ia dizer que é uma cena de louvor do crime. E diria mal, porque esta é uma cena em louvor da lógica. O meu professor M.S. Lourenço, que escrevia com a mão direita, e escrevia a giz ainda no quadro negro na Faculdade de Letras, o que logo apagava com a esquerda, filósofos como Frege, Russell, o Wittgenstein do Tractatus, todos se renderiam à serena placidez de Al Pacino, a essa voz mansa que ele empresta ao implacável, por tão racional, Michael Corleone.

Sem levantar a voz, com o mesmo rumor monótono de um rio, Michael encosta o cunhado à crua verdade, aos terríveis e irrecorríveis factos que enumera. Tudo num ritmo de cada vez mais sufocantes campos e contracampos. “Don’t be afraid, Carlo”, diz Michael. E já um medo cósmico consome Carlo. Nada melhor do que descrevê-lo com o mais vulgar estereótipo: Carlo tem já a fronte perlada de suor, escreveria o nosso estafado neo-realismo.

E depois, num ritmo de que qualquer mestre de cerimónias se orgulharia, a coreografia começa. Um bilhete de viagem, uma mão que ajuda, gentil, a vestir um casaco, a luz deslumbrada do exterior, a mala no porta bagagens do carro, a entrada para o banco da frente. No banco de trás está Hans Holbein, isto é, está a morte que Hans Holbein pintou no século XVI, morte vizinha, dialogante – “Hello, Carlo!” – e prática. Um sapato parte e trespassa o vidro do pára-brisas. Sabe-se lá de onde, chega e lava-nos a música de Nino Rota. Água límpida.

Não é um ofício para amadores apavorados. O crime é visceral. Não se mata, vinga-se alguma coisa. Não se estraga nada: dispara-se para reparar uma ofensa. Depois do crime as coisas ficam melhores, ficam arrumadas.



The Godfather, cena 3

Esta é a terceira de cinco cenas pasmosas do melhor The Godfather, o primeiro.

A farda fica tão bem a Al Pacino como a dúvida que o retrai. É uma cena de duas canções, a canção melodramática deste sucedâneo de Frank Sinatra que entretém a noiva e a canção de bandido que Pacino recita para estupefacção de Diane Keaton. A montagem – esse velho beau souci da nouvelle vague – é soberana, num movimento de tensão (a conversa de Pacino e Keaton) e distensão (o palco do cantor).

Deixamo-nos levar, encantados, até surgir na boca de Pacino o refrão que vai atravessar todo o filme – made him an offer he couldn’t refuse. O longo espanto de Diane Keaton em close-up vale uma carreira: abre-se um outro mundo, estarrecedor, à frente da mansa, tão composta e certinha nova-iorquina. Nos lábios entreabertos de Diane Keaton, o puro espanto.

The Godfather, cena 2

Esta é a segunda cena que escolho de The Godfather. Vêm aí mais três

De um padrinho a outro. De pai para filho. Ambos são heróis macbethianos: povoam as imagens do Padrinho de sangue e morte, escuridão e insónia. Mas há alguma diferença entre ser-se criminoso em Shakespeare ou em Coppola: no Padrinho, antes dos crimes, há os beijos que os homens trocam, cerrados apertos de mão, há o pai que roça o desconsolado ombro do filho.

Quando escrevi isto não sabia que esta cena nem sequer estava no argumento original do filme. Coppola sentiu uma tremenda falha no filme, a da dolorosa passagem de testemunho de um Padrinho a outro. De um pai a um filho: um pai que renuncia ao sonho de ver um filho ganhar o direito a uma vida legítima, dentro da lei e do bem comum.

Desolação e desconsolo tombam sobre a conversa que começa em acção e passa ao sussurro, com a música de Nino Rota a vir instilar-se quase em surdina. “I don’t know… I dont know”, mas sei eu e sabemos todos que uma tristeza má tomará para sempre conta do olhar destes dois homens. Pai e filho.

The Godfather, cena 1

Esta é a primeira de cinco das cenas que mais me tocaram no The Godfather, o primeiro Padrinho, que conferiu a Francis Ford Coppolas os galões de autor clássico.
Descrevi-as quando ainda não havia web, no tempo das VHS, para o “Semanário”. Animava-me um forte sentimento e sentido de família. A minha filha tinha nascido há 15 dias. Junho de 1989. Voltam 32 anos depois, e não juro que não tenha já acrescentado, entretanto, um ponto a cada um destes contos.

«I believe in America. America’s made my fortune». Pode a primeira cena ser a mais bela cena de um filme? Começa num negro absoluto, com uma voz-off tremente e suplicante na banda sonora. É do escuro que vem a cara do homem que fala. Depois, a câmara recua num travelling exasperante de tanta lentidão, fugindo do rosto do homem que suplica, para só se deter no rosto patriarcal de Marlon Brando. É tudo muito devagar, tão devagar, e as bocas dos actores pronunciam separadamente cada palavra do diálogo, cada sílaba. Soletram honra, respeito, lealdade, justiça. Dentro de uma luz rembrandtiana, tão doce como crepuscular, os dedos de uma mão invisível enlaçam cada um desses conceitos e logo vemos que esses dedos são os dedos da mão do crime. O crime tem, afinal, a mesma ética irrepreensível do bem. Uma ética que não mata por dinheiro e só reclama “be my friend“. Tudo se declina em seis minutos e vinte dois segundos, tendo por prefácio a música de Nino Rota.

Livros Negros, três perguntas, três respostas

A revista online Novos Livros, editada por J.A. Nunes Carneiro, quis saber que colecção é a colecção “Livros Negros”. Perguntou e eu respondi.

1-Qual a ideia que está na base da criação desta colecção «Livros Negros»?
R- Aflorar os limites, é essa a ideia. Nas artes, e a literatura nunca quis fugir dessa tentação, houve sempre um impulso para a vertigem, uma busca dos abismos humanos, dos montes dos vendavais da psicologia humana, do sexo, mesmo da blasfémia. Os Torquemadas de todos os tempos – e hoje voltou a havê-los em abundância – também sempre quiseram purificar, pelo fogo ou pelo esquecimento, essas aventuras estéticas. Aos totalitarismos, de direita e de esquerda, religiosos ou seculares, padres e polícias, salta-lhes o pipi por e para queimar livros. Querem proibi-los, purificá-los pelo fogo ou pelo esquecimento. Esta colecção, Livros Negros da Guerra e Paz, é um pequeno movimento para se opor à fogueira, para resgatar do esquecimento.

2-São livros fortes e que podem, talvez, ser considerados “politicamente incorrectos” nos tempos que correm: está a valer a pena arriscar e provocar?
R- Pertencer ao lado bom da criação, dar ou prolongar existência, reavivar a memória e o gosto, vale sempre a pena. A receptividade de que o Benefícios de Dar Peidos, de Jonathan Swift, foi alvo, soube ao editor tão bem quanto um queijo da Serra autêntico. Foi uma recepção cheirosa, de sabores fortes. O editor, tradutor e apresentador do Manual de Civilidade para Meninas, de Pierre-Félix Loüys, que está a entrar nas livrarias, espera agora que as instituições que cuidam de etiqueta e de boas maneiras, prezem também e se louvem neste segundo título dos nossos Livros Negros. A sobriedade e elegância que o designer da Guerra e Paz, o Ilídio Vasco, quis emprestar à colecção, seduz muito, convenhamos. Quem não quer levar para a cama, ou para uma espreguiçadeira numa tarde de Verão, livros tão insinuantes como estes.

3-Depois de Pierre-Félix Louys e de Jonathan Swift, que autores e obras poderemos encontrar no futuro nesta colecção?
R- Tinha prometido a mim mesmo não revelar um átimo que fosse do que aí vem. Mas também é verdade que eu sou um espírito facilmente corruptível: não resisto à primeira pergunta. Não digo tudo, mas prometo um pequeno texto de Oscar Wilde, figura que também não resistia a qualquer pergunta que lhe fizessem. É um texto que talvez tenha sido chocante no seu tempo, mas que é hoje, desarmante e comovente. E é irresistível a ideia de ter um bom leitor em lágrimas com um interrogatório a roçar o pidesco. Outro título dos Livros Negros há de ser da autoria de Mark Twain. Um livro de verrina, cínico até à quinta casa, inclemente na exposição do criminoso que foi o rei Leopoldo dos belgas, senhor da devastação e do apocalipse dos africanos do Congo.

A ponta aguçada da estaca

Toda a estaca é dolorosa. E peço aos meus leitores que fechem os olhos e contenham um estremecimento, o inominável arrepio: vou falar da estaca de Vlad Drăculea, Vlad III, que três vezes reinou na Valáquia, esse território romeno, no século XV.

E antes de ter na mão a abominável estaca, distraio-me com um pormenor: Drăculea significa em latim “filho de Dracul” ou “filho do dragão” e o dragão era seu pai Vlad II, dito Vlad Dracul. Vlad pai e os seus filhos viveram acrobaticamente entalados entre a potência húngara que lhes queria roubar a soberania e a violência otomana. Eram cristãos, mas venderam de forma avulsa a alma ao diabo. Segundo filho, Vlad Drăculea foi deixado como refém ao sultão otomano – seria já Erdogan? – como garantia da fidelidade da Valáquia ao império turco. E foi nesse patético ostracismo que o filho Vlad soube que os nobres, os traidores boiardos valaquianos, lhe tinham assassinado o pai e o irmão mais velho. 

Agora vejam: voltará Vlad, o filho, já de estaca na mão? Nem tanto, antes pelo contrário. Se aguça já a ponta da estaca, é um Vlad sub-reptício que a aguça. Com a maligna influência otomana prefere, manso, tomar o poder.

E chega a Páscoa. Podia ter sido noutro domingo, mas não: foi a 17 de Abril de 1475. Vlad III convidou todos os boiardos, a finíssima flor valaquiana, para a missa da ressurreição do Senhor Jesus Cristo no castelo de Targoviste. Só eu já contei mais de 200 jejuados, compungidos e redimidos aristocratas. Tivesse eu escrito esta crónica há 20 anos e estaria a puxar de um cigarro e a perguntar-me: por que jazem no chão do pátio exterior mais de 200 aguçadíssimas estacas, de tão perfurante e pérfida ponta?

Ite, missa est. Já a fidalguia se regala com as entradas de Avilez e antecipa um primeiro prato do 100 Maneiras, quando o horror negro de guardas e guerreiros cerca a sala. Um silêncio agudo e indelicado deita-se com os convivas. Vlad III, filho do dragão, declina a vingança, com a pompa heróica de um Victor Hugo e a dicção barítona de um Manuel Alegre. Os ouvidos da futura Europa escutam os gritos desafinados, esganiçados de 200 nobres valaquianos.

E digo o que não consigo calar: a dor da estaca de Vlad III é indubitável. É uma estaca que conjuga sofregamente o verbo empalar na sua versão otomana. A Idade Média empalou na vertical, Vlad III empala na horizontal.

Há uma diferença subtil e terebrante. Na vertical, estaca enterrada no chão, o corpo da vítima coloca-se sobre a ponta aguçada e é o peso do corpo que o vai fazendo enterrar-se em agonia lenta; na horizontal, desnudada a vítima, a ponta da estaca é introduzida, com humaníssimo cuidado, nesse delicado orifício que o sol raramente ilumina, até sair, porventura por um ombro, só depois se erguendo a estaca com a espantada e ultrajada vítima. Em ambos os casos, o exímio carrasco tudo fará para que a perfuração evite ao máximo tocar órgãos vitais: a salvaguarda canalha de um longo martírio é o desígnio da boa vingança.

No pátio do castelo de Targoviste erguem-se agora 200 estacas, cada um com um boiardo empalado. Um frémito obsessivo, quase uma agitada oração, farfalha entre as árvores, mulheres, filhos, netos, avós dos empalados em feroz condolência. Vlad III, o Empalador, levá-los-á para uma caminhada de morte.

Dez anos depois de lhe terem matado pai e irmão, a vingança de Vlad Drăculea está consumada. O massacre que Coppola encenou no baptismo do filho de Michael Corleone, no primeiro e sublime “Padrinho”, é só a arte a imitar a velha e atormentada vida.

Publicado no Jornal de Negócios