
Toda a estaca é dolorosa. E peço aos meus leitores que fechem os olhos e contenham um estremecimento, o inominável arrepio: vou falar da estaca de Vlad Drăculea, Vlad III, que três vezes reinou na Valáquia, esse território romeno, no século XV.
E antes de ter na mão a abominável estaca, distraio-me com um pormenor: Drăculea significa em latim “filho de Dracul” ou “filho do dragão” e o dragão era seu pai Vlad II, dito Vlad Dracul. Vlad pai e os seus filhos viveram acrobaticamente entalados entre a potência húngara que lhes queria roubar a soberania e a violência otomana. Eram cristãos, mas venderam de forma avulsa a alma ao diabo. Segundo filho, Vlad Drăculea foi deixado como refém ao sultão otomano – seria já Erdogan? – como garantia da fidelidade da Valáquia ao império turco. E foi nesse patético ostracismo que o filho Vlad soube que os nobres, os traidores boiardos valaquianos, lhe tinham assassinado o pai e o irmão mais velho.
Agora vejam: voltará Vlad, o filho, já de estaca na mão? Nem tanto, antes pelo contrário. Se aguça já a ponta da estaca, é um Vlad sub-reptício que a aguça. Com a maligna influência otomana prefere, manso, tomar o poder.
E chega a Páscoa. Podia ter sido noutro domingo, mas não: foi a 17 de Abril de 1475. Vlad III convidou todos os boiardos, a finíssima flor valaquiana, para a missa da ressurreição do Senhor Jesus Cristo no castelo de Targoviste. Só eu já contei mais de 200 jejuados, compungidos e redimidos aristocratas. Tivesse eu escrito esta crónica há 20 anos e estaria a puxar de um cigarro e a perguntar-me: por que jazem no chão do pátio exterior mais de 200 aguçadíssimas estacas, de tão perfurante e pérfida ponta?
Ite, missa est. Já a fidalguia se regala com as entradas de Avilez e antecipa um primeiro prato do 100 Maneiras, quando o horror negro de guardas e guerreiros cerca a sala. Um silêncio agudo e indelicado deita-se com os convivas. Vlad III, filho do dragão, declina a vingança, com a pompa heróica de um Victor Hugo e a dicção barítona de um Manuel Alegre. Os ouvidos da futura Europa escutam os gritos desafinados, esganiçados de 200 nobres valaquianos.
E digo o que não consigo calar: a dor da estaca de Vlad III é indubitável. É uma estaca que conjuga sofregamente o verbo empalar na sua versão otomana. A Idade Média empalou na vertical, Vlad III empala na horizontal.
Há uma diferença subtil e terebrante. Na vertical, estaca enterrada no chão, o corpo da vítima coloca-se sobre a ponta aguçada e é o peso do corpo que o vai fazendo enterrar-se em agonia lenta; na horizontal, desnudada a vítima, a ponta da estaca é introduzida, com humaníssimo cuidado, nesse delicado orifício que o sol raramente ilumina, até sair, porventura por um ombro, só depois se erguendo a estaca com a espantada e ultrajada vítima. Em ambos os casos, o exímio carrasco tudo fará para que a perfuração evite ao máximo tocar órgãos vitais: a salvaguarda canalha de um longo martírio é o desígnio da boa vingança.
No pátio do castelo de Targoviste erguem-se agora 200 estacas, cada um com um boiardo empalado. Um frémito obsessivo, quase uma agitada oração, farfalha entre as árvores, mulheres, filhos, netos, avós dos empalados em feroz condolência. Vlad III, o Empalador, levá-los-á para uma caminhada de morte.
Dez anos depois de lhe terem matado pai e irmão, a vingança de Vlad Drăculea está consumada. O massacre que Coppola encenou no baptismo do filho de Michael Corleone, no primeiro e sublime “Padrinho”, é só a arte a imitar a velha e atormentada vida.
Publicado no Jornal de Negócios