A Guerra e Paz faz hoje 14 anos

 

A Guerra e Paz editores faz hoje 14 anos. Sob esta nuvem sombria que nos atormenta não queremos comemorar, nem queremos que nos dêem os parabéns.

Preferimos, como nessa tarde de dia 10 de Abril de 2006, em que na Fundação Gulbenkian apresentámos a Guerra e Paz aos leitores oferecendo-lhes um novo livro de Agustina e uma correspondência inédita de Jorge de Sena e de Sophia de Mello Breyner Andresen, estabelecer um compromisso – um novo compromisso – consigo: comprometemo-nos a sobreviver a este cataclismo que vai tombar sobre o mundo editorial, para servir o livro e servir o livro em todas as suas dimensões, na magnífica e mais nobre dimensão literária e criativa, poética ou romanesca, naquela outra faceta em que o livro é pensamento filosófico, sociológico ou histórico, e mesmo nessa vertente prática, informativa ou de mero entretenimento que serve milhões de leitores. Porque o livro é assim, como o olho de uma mosca, multifacetado, negando as práticas de exclusão, os ditames dirigistas, tanto furtando submeter-se a estritas hegemonias comerciais, como a fundamentalismos culturalistas. Esse espaço amplo do livro entendido em todas as suas gamas é a casa em que a Guerra e Paz quer morar na década que se segue.

E por ser este um tempo dramático, que exige acção a acompanhar os afectos, pedimos aos nossos leitores que em vez dos parabéns passem aos actos e comprem, no site da Guerra e Paz, nas próximas cinco noites e cinco dias, um livro nosso de um dos dois autores que inauguraram a Guerra e Paz, um livro de Agustina ou um livro de Jorge de Sena. Durante esses dias, os livros desses nossos dois autores estarão a um preço de aniversário: apenas 10€. E nós vamos a sua casa entregá-los.

De Agustina oferecemos As MeninasO Livro de Agustina, a Fama e Segredo na História de Portugal. De Jorge de Sena oferecemos as Correspondência com SophiaEugénio de AndradeSarmento PimentelJoão Gaspar SimõesRaul Leal e Delfim Santos.

O nosso compromisso é sobreviver no futuro próximo, como editora, para servirmos o livro. O seu, estimado leitor, é o de ler e reencontrar nos nossos livros o sabor da aventura, o sopro da emoção, a satisfação da curiosidade e a busca do conhecimento que justificam estarmos juntos.

A Guerra e Paz editores celebra hoje o seu 14.º aniversário. Assim, com este compromisso. Junte-se a nós!

Salazar, Delgado, Henrique Galvão, personagens da Correspondência de Sena

Os Dias e os Trabalhos de um Editor
Manuel S. Fonseca

Caro leitor, não queira saber a alegria que foram os dias em que trabalhei para que este livro nascesse: Correspondência (1959-1978), Jorge de Sena – João Sarmento Pimentel. E o espanto e júbilo com que li as primeiras cartas que a Isabel de Sena, a organizadora com Rui Moreira Leite, me mandou.

Mas deixe-me, caro leitor, começar pelo princípio. Este livro junta as cartas que um escritor e ensaísta, Jorge de Sena, trocou com um capitão, João Sarmento Pimentel, o mais exilado dos exilados portugueses. Estavam ambos exilados no Brasil, em cidades diferentes e carteavam-se para fazer oposição a Salazar. Se julga que ler cartas é uma chatice com o comprimento da Ponte sobre o Tejo, é porque não leu estas cartas.

Jorge de Sena é o portento intelectual, controverso, por vezes iconoclasta e impiedoso, que já conhecemos, mas a prosa viva, coloridíssima do capitão Sarmento Pimentel, que Salazar exilou, é uma refrescante surpresa também.

Deixe-me destabilizar qualquer possível ideia feita e apimentar um bocadinho a sua perversa curiosidade:

– não lhe vou dizer, nem como tratavam Salazar, nem que petits histoires dele contam;

– Humberto Delgado e Henrique Galvão são personagens recorrentes. Está quase a fugir-me a língua para a verdade, mas não, não direi que epítetos merecem aos autores, nem as circunstâncias das lutas intestinas que retalhavam a Oposição a Salazar;

– a expressão “comuna” surge regularmente e não é para referir a Comuna de Paris;

– os opositores reunidos em Argel, Manuel Alegre incluído, têm um retrato à la minuta e mais não digo.

Que prodigioso contributo histórico aqui está sobre as vivências, dramas, grandeza e mesquinhez da luta política! Além da política, este é um livro de amor à literatura e um hino à gigantesca e desinteressada amizade que dois seres humanos. E vem-me à memória uma frase batida: lê-se como um romance.

Experimente ler estas cartas soltas.
https://indd.adobe.com/view/0c21aeb9-3444-4431-a62c-1bb4fb664fd3?fbclid=IwAR0xy9Fy_3c72BdY5i0A-zAAuY-cWZ_meEqcTjLvCu3bwbfV4gx38lV8U-M

 

Os dias e os trabalhos de um editor

Vai ser quase um diário, ou seja, mais uma coisinha parecida com um comunicado de um porta-voz do comando do Movimento das Forças Armadas do Livro. Com sugestões de livros Guerra e Paz.

Eis o que quero dizer aos leitores da Guerra e Paz, aos visitantes do nosso site, aos visitantes das nossas redes sociais: um editor não foi feito para ficar em casa. E um leitor também não.
Sabemos todos porque estamos em casa. Estamos em casa pela nossa saúde, pela saúde de Portugal. Mas precisamos de mensageiros e os livros são mensageiros experimentados, que vão de casa em casa há uns quase quinhentos anos.
Por uns dias foi impossível aos livros da Guerra e Paz irem à casa dos leitores. Agora já podem, de novo.
Peça os nossos livros que nós vamos entregá-los a sua casa. As condições são as que estão no nosso site. E se ocorrer alguma dificuldade informática faça o seu pedido por guerraepaz@guerraepaz.pt e os livros hão de ir bater à sua porta.
Nos próximos dias, e que longos estão a ser estes dias, vou fazer-lhe sugestões. Estou aqui a olhar para livros que tinham acabado de chegar às livrarias e agora estão lá injustamente cativos – a Correspondência de Jorge de Sena com o capitão Sarmento Pimentel, a Apologia de Sócrates, de Platão, a História de Dois Patifes, de Fialho de Almeida – e penso que juntos, nós da Guerra e Paz e o leitor voraz que me está a ler, devíamos resgatar já estes livros dessa prisão e oferecer-lhes a liberdade da sua leitura.
Ajude-me a defender o livro, porque é no livro que reside o futuro do conhecimento, da experiência e do imaginário que faz de nós mais humanos.

Morreu Mécia de Sena

9

Com Mécia de Sena e Maria de Lurdes Belchior à porta do 939, Randolph Road

A esta nossa tormentosa Primavera, chega a mais outonal das notícias: a do falecimento de Dona Mécia de Sena.

Bati à porta de sua casa, em Santa Barbara, Califórnia, no 939 Randolph Road, em 1986. Pela voz e santa paciência de Mécia de Sena, eu, que julgava saber uma ou duas coisas sobre Jorge de Sena, descobri dele o imenso e brilhante lado escondido da lua. Vi a sala onde, cercado de livros, ouvia música, a secretária a que trabalhava, a mesa a que comia. E descobri que Mécia de Sena, a par da feroz guardiã da obra desse homem com quem partilhou o amor e a vida, era também e sobretudo uma finíssima estudiosa e crítica de poesia e romance, senhora de uma cultura variegada e vastíssima. De tudo isso me falava, e de música, e de ópera, enquanto, diligente, fazia um jantar para 10 ou 14 pessoas, como quem passa manteiga numa torrada. O seu ócio era a actividade.

Mécia revelou-me esse arquipélago de correspondência, acções e intervenções de um Sena imparável, mesmo quando as suas dores físicas o constrangiam, mas não vergavam. De Mécia descobri a irradiante luz própria.

E descobri a alegria simples e o riso: com ela, e com Maria de Lurdes Belchior, tive o picnic da minha vida, numa Missão Espanhola, na costa californiana, a bolinhos de bacalhau e uns inesquecíveis ovos verdes, delícia lusíada degustada com os olhos no imenso oceano que é o Pacífico.

Desse encontro resultou, mais do que uma amizade e um carinho mútuos, a minha admirada devoção por Mécia de Sena, pela sua inteligente persistência, pela sua cultura e rigor, pela descoberta da sua escrita cuidada, arrebatada, fluente e discursiva. Nesse remoto 1986 organizámos juntos um livrinho, Sobre Cinema, reunindo todos os textos que sobre filmes Jorge de Sena escrevera. Depois, quando me fiz editor, Mécia confiou-me as Dedicácias, e várias Correspondências de que destaco o belíssimo carteio de Jorge de Sena e Sophia de Mello Breyner Andresen, exemplo de partilha e amor poético e filosófico.

Já com Isabel de Sena, filha de Mécia e de Jorge, e desde que a idade tornara impossível a Mécia continuar a ser a guardiã literária de Sena, publiquei a Correspondência com Eugénio de Andrade e, há poucos dias, a Correspondência Jorge de Sena–João Sarmento Pimentel, na qual Isabel de Sena, que a organizou, incluiu também algumas cartas assinadas por Mécia de Sena. São, essas cartas, o testemunho do seu brilho intelectual, da sua escrita viva e da sua grandeza humana. É um pequenino orgulho poder juntar-me a essa homenagem que a filha Isabel lhe prestou.

Pimentel

Morreu, no dia 28 de Março de 2020, com 100 anos, Mécia de Sena. Digo-lhe adeus certo de que sou apenas um dos que guarda dela a memória de um ser humano grande e combativo, cheio dessa graça que é a vida. Eis o que nunca se apaga.

17
Na Cinemateca com Mécia de Sena e António M. Costa

Dois novos livros de Jorge de Sena

No centenário de Jorge de Sena, a Guerra e Paz tem a honra de anunciar a publicação, em breve, de dois novos livros do seu autor. Em primeiro lugar, a histórica correspondência trocada por Jorge de Sena com o capitão João Sarmento Pimentel. Depois, uma fotobiografia de Jorge de Sena. São edições que Isabel de Sena, a filha de Jorge de Sena, está a finalizar e que trazem nova luz, não só à obra de Sena e aos estudos senianos, mas também à História da oposição ao salazarismo.

Anunciamos estas novidades, hoje, no dia em que se comemora o centenário do nascimento de Jorge de Sena. Há pouco mais de 56 anos, Sophia de Mello Breyner Andresen, numa carta que Guerra e Paz publicou no livro, cuja capa podem ver aqui, em cima, escreveu-lhe assim: “Tenho andando muito soli­tá­ria, bas­tante desen­ga­nada de lite­ra­tos e sinto muito a sua falta, neste deserto inte­lec­tual. O saloísmo da mai­o­ria dos inte­lec­tu­ais por­tu­gue­ses é quase ina­cre­di­tá­vel e as for­tes desi­lu­sões que tenho tido fizeram-me per­der o ânimo.

Portugal ficou mais solitário. Perdemos Jorge de Sena há tanto tempo, e perdemos já, também, Sophia. Deixaram-nos as cartas – essa forma perdida de comunicação, cultura e afecto – de que a Guerra e Paz fez o seu primeiro livro, cartas que, ao longo de 19 anos, anos de exílio de Jorge de Sena, primeiro no Brasil, depois nos Estados Unidos da América, dois poetas maiores da língua portuguesa trocaram.

Se a correspondência entre Sena e Sophia é imprescindível, o copioso carteio que os poetas Eugénio de Andrade e Jorge de Sena trocaram, entre 1948 e 1978, é um monumento de informação poética, cívica e política e é outro dos grandes livros de Jorge de Sena publicado pela Guerra e Paz, a não perder.

Reúne uma correspondência de cerca de 30 anos, de 1949 a 1978. Por estas cartas e postais passa Portugal. As grandes batalhas literárias, os conflitos estéticos, o rumor pesado da Academia contra o qual Eugénio e Sena se batem, mas também a vida política, a falta de liberdade, a explosão dela no 25 de Abril, as esperanças e as frustrações que se lhe seguiram, que Eugénio, primeiro denuncia: “… a esquerda revolucionária já está a ser aproximada pelos bem pensantes do país, incluindo os comunistas, da mais sinistra reacção” e a que logo Sena responde “… revolução, que cada vez me parece mais um conluio de continuistas e de arranjistas, com alguns revolucionários parvos pelo meio, e muitos demagogos a agarrar os tachos com muita pressa…” de tudo isto há testemunho, vibrante, nestas cartas.

Esta é também, e sobretudo, a Correspondência de uma profunda e íntima amizade. São cartas de amor pelo tão emocionado amor que Sena e Eugénio têm pela literatura, pelo labor poético, pela forma como cantam e procuram a luz, que cega, da Beleza que pode haver num verso.

Melhor do que qualquer explicação, falam as cartas. Por exemplo estas duas que, com muito gosto, vos deixo ler, antes de correrem às livrarias para ficarem com um exemplar à cabeceira.

Carta de Eugénio de Andrade a Jorge de Sena

21 de Maio de 1969

Querido Jorge:

Recebi simultaneamente a tua carta e original de Cavafy, há já alguns dias, mas não tive ocasião de te escrever logo após a leitura dos poemas, como gostaria de ter feito. Comparei mesmo alguns poemas com a tradução do Pontani. Como imaginava, a tua tradução é incomparável, particularmente, os poemas breves, os mais difíceis de traduzir, pelo risco que alguns correm de se transformarem numa quase banalidade madrigalesca, o que acontecia com as traduções francesas, a que não escapam mesmo as traduções mais belas. É um prodígio o que consegues. E se podes afirmar, apoiado em Goethe, que não há grande poema que não possa ser traduzido, seria indispensável juntar que tudo vai do tradutor. Ora o Cavafy teve a sorte de te encontrar no caminho. Se dou mais relevo às traduções dos «eróticos » (achando igualmente notável o que fizeste dos três poemas do Cavafy que prefiro – «O deus abandona Marco António», «Ítaca» e «À espera dos bárbaros») é tão-só porque considero a tradução de tais poemas mais difíceis que os outros. A matéria, além de muito frágil é, em outro sentido, delicada. Tu resolves tudo com uma franqueza, uma elegância e uma frescura verdadeiramente notáveis. Reparo até que os poemas têm uma força explosiva que só intuíra nas traduções francesas ou italianas, receando até que tais poemas constituam um pequeno escândalo, justamente, como muito bem referes no teu prefácio, que é muito corajoso, pela nobreza moral que revelam, isentos, como são, dos perversos conceitos de «pecado».

As traduções deram-me uma grande alegria. Este livro pertence–me. A primeira vez que traduziste o Cavafy, lembras-te?, foi para mim, numa noite em tua casa, talvez depois da leitura de As Evidências. Quando apareceram as tuas primeiras traduções no Comércio, estimulei-te, através de correspondência, no sentido de publicares novas traduções. Quando o editor me pediu a indicação de alguns poetas estrangeiros para a colecção que iniciou com o Lorca, o Cavafy, traduzido por ti, foi dos primeiros nomes que apontei. «Um deus abandona Marco António» e «A origem» são poemas que me acompanham desde a tua tradução no Comércio. (Pude assim notar agora as variantes, importantíssimas, lendo agora «A Origem» neste teu volume).

Felizmente que a alegria que me deu o teu livro me compensou da melancolia da tua carta. O que sobretudo lamento, nesta história do prémio, é que por via de o não receberes sejamos privados de nova visita tua. Tu já sabes o descrédito que tem para mim a chamada glória literária. Ser-se Namora, para me servir da tua expressão, é coisa que suponho não interessa a ninguém. Que importa o êxito? Tu não és um escritor para multidões, não no fundo o desejaste nunca ser. De um certo êxito suponho que terás até desprezo. Podes estar tranquilo: a tua obra está aí, e brilha, e aquece. Ela pertence aos melhores, como bem sabes. É pena, realmente, que a tal ilha, Taiti ou outra qualquer (a minha fica no mar grego), não esteja nunca senão no nosso desejo. Que havemos de fazer? Suportar é tudo – não foi o Rilke que disse? Suportar – não há para nós outra solução sob pena de abdicarmos de sermos homens.

Na próxima carta já te direi quais são os teus 50 poemas que prefiro. Tenho o maior gosto em indicar-tos.

Lembranças afectuosas à Mécia. Para ti o maior abraço do muito

teu, Eugénio

Carta de Jorge de Sena a Eugénio de Andrade

Madison, Wis., USA, 25 de Maio de 1969

Querido Eugénio

Ontem chegou a tua carta com as tuas impressões do Cavafy traduzido, e a certeza de que ele aportou ao Porto em paz. Entretanto terá chegado a Emily Dickinson, criatura (e volume) menos alentada mas não menos grande à sua maneira. Creio ter-te dito que o novo livro de poemas (**) já foi, também pronto, para a Portugália. E todo o meu trabalho se concentrou furiosamente, depois disso, na revisão e cópia (e também conclusão de coisas começadas às vezes e não acabadas nunca) da Primeira Parte das minhas outras traduções: uma massa de cerca de 60 poetas desde 600 AC até 1900… com cerca de 200 poemas (mas muitos são poemas brevíssimos), que dará um volume de 200 e tantas páginas, com algumas das coisas mais belas que fiz na matéria e como «tour de force»: uma dezena de gregos, meia dúzia de romanos, dois chineses, dois provençais, uma dezena de italianos, outro tanto de franceses, cinco espanhóis, outro tanto de alemães, um japonês, uma dezena de gente em inglês. Gente de primeiríssima: Eurípedes, Horácio, Catulo, Li Po, Dante, Miguel Ângelo, Ronsard, Tasso, Góngora, Shakespeare, Bashô, Blake, Goethe, Leopardi, Heine, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud, Nietzsche… Quase tudo inédito em letra de forma (só uma dúzia destas traduções todas foi alguma vez publicada, pois que, sobretudo «didacticamente», mais publiquei sempre os modernos que são outro tanto, mas mais concentrados em Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Itália, com alguma França).

Fiquei profundamente comovido e sensibilizado com o teu entusiasmo pelas e a tua apreciação das minhas traduções do Cavafy. Tens razão com a explosividade de muitos dos poemas dele, ante que todos os tradutores sempre preferiram recuar, ainda quando o admirassem e compreendessem. As variantes que encontraste nalguns poemas resultaram do intensivo confronto das versões e dos originais (com o meu grego analfabetismo), em que os eternos eufemismos se me desmascaram. O mal é que a maior parte das pessoas que traduz não são suficientemente poetas: e assustar-se-iam menos com um palavrão que com a franqueza de um poeta que do sexo fale como só aventura. Como o sentimentalismo romântico é um disfarce da moral burguesa (o melado João de Deus que o diga)! E como a «respeitabilidade» não é senão a manutenção dos mitos eróticos. Por isso, como verás, me consolei anos e anos a traduzir poetas que diziam o contrário: e nenhum que tenha sacrificado, pelo menos no poema que traduzisse, à hipocrisia idealizadora, eu jamais traduzi.

Na verdade, este livro pertence-te. E mais do que julgas. Podes estar certo que foi pensando no gosto que terias, que traduzi bastante mais Cavafy, apesar de quanto o admiro como poeta (e creio que o meu prefácio e as minhas notas o analisam bem – também nisso há algo de especial gosto, dada a fragilidade crítica de quase tudo que se escreveu sobre ele). A propósito: não te esqueças de inserir na lista bibliográfica aquela edição do Pontani, que foi a única que não consegui obter nem consultar e tu tens.

Em matérias de glórias, eu sou, francamente, um sujeito contraditório: ao mesmo tempo as pessoas incomodam-me (e muitas vezes até quando escrevem admirativamente a meu respeito, sem que nisto vá ingratidão), o êxito parece-me risível, e sei melhor que ninguém a que várias circunstâncias pode dever-se. Mas a hostilidade com que lutei desde a primeira hora, ou que suscitei sem querer (ou muitas vezes por querer), deu-me também uma sede de triunfo, de mundo a meus pés – talvez pelo que de outcast tenho sido sempre de grupos literários ou profissionais. E isso o não sinto menos na minha vida universitária, onde, no fundo, os meus «colegas» de cá e de lá não me perdoam que eu tenha entrado na profissão «por cima», por força de uma bagagem maior que a deles todos juntos. Mas tudo me fere: fui sempre a vida inteira o mesmo menino esquecido e jogado entre os pais, sedento de atenção e de amor, dividido entre estar só e acompanhado. Ainda há pouco, com o melhor dos sorrisos, um dos velhos daqui me dizia que, com o tempo, talvez eu até desse filologia (visto que, especialista de literatura que a si mesmo se fez, tenho só a filologia que sempre achei precisa só para ela, mas não posso evidentemente, a não ser que me desse uma veneta que não vale a pena, ensinar a dita cuja)…  Quem me dera ter a suprema isenção de um Eça, atento à Inglaterra e à França literárias, mas despegadamente longe de vidas literárias que não eram a sua (aliás, tenho-a por orgulho, pois que faço o mesmo, e não tenho relações literárias na América) – para suportar a babação dos meus colegas de espanhol ante um qualquer escritor espanhol de segunda ordem, comigo ao lado, que nunca leram. E havias de ver a fúria deles, quando um dos doutorandos, no exame escrito, sobre literatura contemporânea portuguesa, se referiu aos meus contos…

E o que mais me dói é o desprezo por tudo o que é português, como se fôssemos uma espécie de leprosos do universo, sem interesse algum. Ainda por cima, tenho de dar cursos de literatura brasileira, em que a maior parte dos admirados escritores não são de modo algum aos nossos superiores: há-os grandes, e isso é outra conversa – mas quanta coisa menor tenho de tratar, e trato, a sério! E é o que irremediavelmente me separa na profissão de professor. O homem de carreira estima tudo o que lhe disseram ou a bibliografia diz que é estimável, sem gastar nisso paixão ou gosto literário.

Eu estimo o que é admirável, ou, por interesse de cultura, o que seja significativo. Só peço aos deuses que o curso que, no ano próximo, vou dar no Departamento de Literatura Comparada, sobre o Maneirismo e o Barroco (Itália, Inglaterra, Alemanha, França, Espanha, Portugal, América Latina, e as artes juntamente), seja um êxito – porque possa eu passar-me, e os medíocres que venham consolar-se de mediocridade em Português, no meu lugar. Mas teria então raivas de pensar nisso. Tudo isto ainda é – ridiculamente – lamúria por causa do prémio. Não é grande coisa, nenhum é aí. Mas tapava a boca a muita gente, abria-me muitas portas, e teria enorme repercussão aqui, porque a essas coisas a americanada é sensível, vem no jornal. Uma das coisas que nunca perdoei nem perdoarei ao Brasil foi, para lá do prestígio dos meus artigos, das minhas ligações, das minhas artes de professor, nunca ter cuidado efectivamente de saber quem eu era. E o prémio seria também uma bofetada para lá. Paciência, boa para a vista, como dizia a minha avó. E o dinheiro, meu filho, neste inferno sem saída que é financeiramente a minha vida com a família que tenho ([…] que não posso ter dinheiro para educar universitariamente, se eles não arranjam notas que lhes garantam bolsas – e que, sem tal, nos tempos que correm, acabam a lavar pratos ou carros), donde venha faz-me arranjo. Que sou honesto, firme, etc., quando há tantos governos deste mundo para que se pode trabalhar chorudamente – mas eu estou sempre do lado dos que caem ou não sobem…

Logo que o volume das traduções esteja pronto – ficá-lo-á esta semana que entra, em que começam curtas férias antes dos cursos de verão –, mandar-to-ei, para que saboreies muito do que lá está. Passá-lo-ás depois ao Cruz Santos, a quem Deus e Mercúrio dêem vida e saúde e dinheiro.

Afectuosas lembranças da Mécia. E o grande abraço muito amigo

do Jorge

(**) Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta (Lisboa: Portugália Editora, 1969).

Ademanes eróticos

Um dia, a propósito desta edição do livro “O Físico Prodigioso” de Jorge de Sena, disse o que agora, que o livro vai ser o ex-libris da Guerra e Paz, nesta Feira do Livro, volto a dizer. Com mais veemência e gosto, ainda.

DSC_0544

Nós, ocidentais, temos desenvolvido um gosto extraordinário pela auto-expiação e não nos dá jeito nenhum, para esse fim incriminatório, ver o que há de pan-erótico no cristianismo, a começar no processo que esse extraordinário Deus trinitário arranjou para seduzir – com voz de anjo – a Virgem Maria. Com o seu exército de anjos, arcanjos, serafins, santos e santas em êxtase místico, o cristianismo, e em particular o catolicismo, quase transbordam de ademanes eróticos, o que a profusão de talha dourada, mantos de seda e cheirinho de incenso só reforçam e excitam. Poderia lá existir este texto de Jorge de Sena, este O Físico Prodigioso se não tivesse bebido nesse rio de água benta em que se banha o sagrado e o profano, o invisível Espírito Santo e o tão táctil demónio?

Drummond e Sena: beijos, lábios e língua

beijos

Não se diga da poe­sia de lín­gua por­tuguesa que é del­i­cada e para del­i­ca­dos. Dois poetas pelo menos, o brasileiro Jorge de Sena e o por­tuguês Car­los Drum­mond de Andrade – e se me dis­serem que me enganei, aos dois declaro nasci­dos e glo­riosa­mente mor­tos na mes­mís­sima lín­gua tan­tas vezes a por­tugue­ses e brasileiros estranha – Sena e Drum­mond, dizia, can­taram o amor com essa sub­lime e priv­i­le­giada indel­i­cadeza que só o é para quem já não tem a inocên­cia de acred­i­tar que com casti­dade se abrem coxas ou que mão apal­pante deslize pura pela perna que pronta­mente responde.
Leio estes dois poe­mas e o que deles mais gosto é que são livres e sabem a desinibido quotidiano.

Era Manhã De Setem­bro
Car­los Drum­mond de Andrade


Era manhã de setem­bro
e
ela me bei­java o membro.

Aviões e nuvens pas­savam
coros negros rebramiam
ela me bei­java o membro

O meu tempo de menino
o meu tempo ainda futuro
cruza­dos flo­riam junto

Ela me bei­java o membro

Um pas­sar­inho can­tava,
bem den­tro da árvora, den­tro
da terra, de mim, da morte

Morte e pri­mav­era em ramo
disputavam-se a água clara
água que dobrava a sede

Ela me bei­jando o membro

Tudo o que eu tivera sido
quando me fora defeso
já não for­mava sentido

Somente a rosa crispada
o talo ardente, uma flama
aquele êxtase na grama

Ela a me bei­jar o membro

Dos bei­jos era o mais casto
na pureza despo­jada
que é própria das coisas dadas

Nem era pre­ito de escrava
enrodil­hada na som­bra
mas pre­sente de rainha

tornando-se coisa minha
circulando-me no sangue
e doce e lento e erradio

como bei­java uma santa
no mais divino trans­porte
e num solene arrepio

bei­java bei­java o membro

Pen­sando nos out­ros homens
eu tinha pena de todos
apri­sion­a­dos no mundo

Meu império se esten­dia
por toda a praia deserta
e a cada sen­tido alerta

Ela me bei­java o membro

O capí­tulo do ser
o mis­tério do exi­s­tir
o des­en­con­tro de amar

eram tudo ondas cal­adas
mor­rendo num cais longín­quo
e uma cidade se erguia

radi­ante de pedrarias
e de ódios apazigua­dos
e o espasmo vinha na brisa

para con­sigo furtar-me
se antes não me des­fol­hava
como um cabelo se alisa

e me tor­nava dis­perso
todo em cír­cu­los con­cên­tri­cos
na fumaça do universo

Bei­java o mem­bro
bei­java
e se mor­ria bei­jando
a renascer em dezembro

beijo_b

Beijo
Jorge de Sena

Um beijo em lábios é que se demora
e tremem no abrir-se a dentes lín­guas
tão pen­e­trantes quanto lín­guas podem.
Mais beijo é mais. É boca aberta hiante
para de encher-se ao que se mova nela.
É dentes se aper­tando del­i­ca­dos.
É lín­gua que na boca se agi­tando
irá de um corpo inteiro desco­brir o gosto
e sobre­tudo o que se oculta em som­bras
e nos recan­tos em cabe­los vive.
É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios se deseja.