Por ti, pagaria uma fortuna

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São gangsters. Estão na casa de banho do Cotton Club e fazem, com líquido vagar, o que de pé os homens fazem na casa de banho. Falam de respeito, do respeito que é só medo canino e do respeito que nasce da lealdade límpida.

Owney tem, no filme de Coppola, a graça confortável dos gordos. Frenchy junta ao corpo gigantesco a fealdade de um trovão e uma imperturbável inexpressividade. São leais e não dizem, por horror ao pleonasmo, a amizade que os une.

No filme, o gang de um cão raivoso rapta Frenchy e pede resgate. Owney sofre como se lhe tivessem levado um filho e paga. Reencontram-se e estão agora na casa de banho. Frenchy, o corte de uma facada na orelha, mente com a ironia dos duros: “O cão raivoso tratou-me como realeza”. Aproxima-se de Owney, segura-lhe no belo relógio de bolso como quem faz contas ao tempo de cativeiro, deixa-o cair, diz que não funciona e o vai arranjar, mas esmaga-o com uma estatueta maciça. Grita-lhe com fúria ciclónica: “You, cheap son of a bitch, ouvi dizer que pagaste a miséria de 500 dólares para me libertares. Eu pagaria uma fortuna por ti.”

Owney salta, apopléctico: “Só queriam 35 mil e paguei 50 para que não te tocassem num cabelo. Teria pago 500 mil. Quase morri em cuidados… Olha o que fizeste à merda do relógio.”

Com voz de mel, Frenchy sussurra como se saboreasse cada dólar “cin-quen-ta mil…” e dá a Owney uma caixa com um laço. Owney desembrulha-a num furioso o que é isto. Abre e: “Um relógio de platina… minha grande besta.” O abraço deles é o abraço de uma das mais belas cenas de amizade do cinema americano.

Ser amigo é como ser irmão, mas sem a desculpa fácil do sangue. Descobrem-se amigos à primeira vista quando somos miúdos. Com o tempo é mais difícil fazê-los e cada vez mais doloroso perdê-los. Não consola saber que, de algumas pessoas, se tivéssemos a sorte de as encontrar, seríamos os melhores amigos.

Aconteceu em Los Angeles. Levaram Jerry Lewis à mesa de Chaplin. “É um prazer conhecê-lo, Mr. Chaplin” disse Jerry. “Para si, sou só Charlie”, respondeu o velho Charlot. “A mim, trate-me por Mr. Lewis” replicou Jerry, e foi a primeira gargalhada. Faltavam dez para a meia-noite. Levantaram-se às três da manhã. Amigos à primeira vista.

Nesses anos 60, Jerry actuou no Olympia. Estava a tout Paris. Godard, Truffaut, Juliette Greco na fila da frente. Também Geraldine, filha de Chaplin, que, depois, lhe disse maravilhas do espectáculo. E rematou: “O meu pai adorou.” Espanto de Jerry: “O seu pai não estava na sala.” Ela jurou que sim. E explicou: “O meu pai escondeu-se lá em cima, atrás do controlo de luzes. Achou que se aparecesse agora, em Paris, desviava as atenções do seu espectáculo. Veio em segredo, pela alegria de o ver no palco.”

Riram-se lágrimas nos olhos de Jerry derretido com o amigo incógnito, ou não fosse a elipse a única figura de estilo que a amizade consente.

Jerry

E foi assim, há dois anos, quando soube que Jerry Lewis tinha morrido. Se fosse hoje, repetiria, palavra a palavra. Repito.

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Vou ser-te franco, Jerry, pensei que já tinhas morrido. Com a alarvidade do teu “O Morto Era Outro”, de 1969, vais responder-me que o meu problema é ainda ninguém se ter dado ao cuidado de me avisar de que bem morto estou eu. E estou. Onde é que está o candengue que eu era quando tu pela primeira vez me falaste – me atropelaste, melhor seria dizer –, tinha eu 11, 12 anos, no cinema da 7ª esquadra, em Luanda, já 8 ou 9 inteiros anos passados sobre o puro e rebelde assalto do 4 de Fevereiro.

Tu perguntas-me, com a tua americaníssima ignorância, que raio foi ou é o 4 de Fevereiro? E eu pergunto-te que raio de ideia te passou pela cabeça para me apareceres assim, a tentares esquizofrenizar-me, numas cenas Professor Julius Kelp, corpo todo retorcido, a pingares um recalcado desejo pela Stella Stevens, e noutras cenas, em fatos rutilantes, voz de rythm and blues, um Buddy Love sedutor, mentor, sexy e cantor?

Sim, encontrámo-nos nas Noi­tes Lou­cas do Dr. Jer­ryl, a que chamaste The Nutty Professor. E tu, Jerry, era dois em um: de dia, o míope, cor­cunda e alu­ado prof. Julius Kelp e, à noite, depois de meteres à boca uma con­ve­ni­ente mis­tela aluci­no­gé­nea, eras o ego­ma­níaco e sedu­tor Buddy Love. Há quem diga que eras, num dos teus eus, um auto-vexatório Jerry e, no outro eu, a zur­zida cari­ca­tura de Dean Mar­tin, com quem tinhas feito dupla e uma daquelas amizades que nunca acaba.

Com o meu engas­gado estilo de Julius, logo me ape­te­ceu roubar-te a fama e o pro­veito de Buddy Love: esbo­fe­tear humi­lhan­te­mente quem me con­tra­ri­asse e tra­zer sem esforço as fres­cas bocas das lou­ras ado­les­cen­tes à minha boca. Não deves ter gostado nada de mim, mas eu gos­tei de ti, Jerry: per­ten­cias ao tempo em que vivía­mos e, sobre­tudo, pare­cias do tempo em que sonhá­va­mos viver.

Ado­rei, desculpa repetir-me, esqui­zo­fre­ni­ca­mente As Noi­tes Lou­cas do Dr. Jer­ryl. Por ser um sonho de miúdo. O que eu que­ria era o que tu fazias no filme: ter outra e des­co­nhe­cida iden­ti­dade, ser o irre­cu­sá­vel, irre­sis­tí­vel, melhor de todos, entrar na dis­co­teca (ui, e logo o Pur­ple Pit; sim, lá na rua, logo lhe chamámos o pitinho púrpura) e a orques­tra parar, todos os olhos fixa­dos no pro­di­gi­oso fato azul celeste de cola­ri­nhos pre­tos, colete branco, camisa rosa e gra­vata azul-escuro com que, feito Buddy Love, irrompias, dei­xando esga­ze­a­dos os tam­bém azu­lís­si­mos olhos da Stella Ste­vens que, essa manhã, o estra­bismo de Julius sonhara des­pir de todas manei­ras e melhor feitio.

Sei bem que não sabes, mas deixa-me contar-te, agora que já não podes partir-te todo à minha frente, a rir-te ou, pior ainda, a gritar como gritavas no The Ladie’s Man. Quando o João Bènard me convidou para a Cinemateca, o primeiro ciclo que organizei, com o João Lopes, foi em tua homenagem (ou à tua custa, dirás tu).  Não minto. Tens aqui a capa do catálogo que é de Julho de 1981.

A sala da Cinemateca tinha ardido e fomos fazer o ciclo ao Quarteto, ainda eu estava longe de saber o amigo do peito que o Pedro Bandeira Freire acabaria por ser. O catálogo é humildemente deslumbrado, quase uma plaquete estudantil, de 52 páginas, a custarem uns caros 80 escudos, que os teus luxos pagam-se. Mas era, se um catálogo fosse a foz de um rio, um delta de amizade. O que não copiámos e traduzimos dos Cahiers du Cinèma (sim, aquela revista que embrulhou os filmes no papel celofane que põe os teus reticentes compatriotas de olhos em alvo), pedimos aos amigos que escrevessem, a começar pelo Camacho Costa: “Era uma vez um palhaço, tinha um nome e um rosto e um corpo. O resto era só a alegria de se descobrir mergulhado nessa vertigem imensa que é inventar do outro lado a nossa própria loucura.” E convidámos, o João e eu, dois Gabriéis. O João, um psicanalista, o José Gabriel Pereira Bastos. Eu, um filósofo, o José Gabriel Trindade Santos, meu eterno professor. Escrevemos também nós. E lembro-te o que o João Lopes começava por dizer: “Herbert H. Heerbert, o “homem das mulheres” de Jerry Lewis, tem medo do cão que ruge, esse “Baby” (bebé) que tantas preocupações traz à sempre presente e dominadora Mrs. Welenmelon.”

O João Lopes tinha razão: tinhas medo desse cão, Baby, que não podia soltar-se, nem ver-se E nem era preciso que Mrs. Welemelon te tivesse prevenido. O rugido de Baby e a fome insaciável de Baby perseguiram-te a vida toda, os filmes todos. Baby, o cão, está agora à tua espera. Deus só pode ser esse bebé que ruge. E o céu é, de certeza, um cenário quase tão prodigioso como o de The Ladies Man. O que Baby, ou Deus, não sabe é o susto que vai levar quando descobrir que tu és o que és e o que não és. E o que és? Julius Kelp ou Buddy Love?

The-Nutty-Professor