E foi assim, há dois anos, quando soube que Jerry Lewis tinha morrido. Se fosse hoje, repetiria, palavra a palavra. Repito.
Vou ser-te franco, Jerry, pensei que já tinhas morrido. Com a alarvidade do teu “O Morto Era Outro”, de 1969, vais responder-me que o meu problema é ainda ninguém se ter dado ao cuidado de me avisar de que bem morto estou eu. E estou. Onde é que está o candengue que eu era quando tu pela primeira vez me falaste – me atropelaste, melhor seria dizer –, tinha eu 11, 12 anos, no cinema da 7ª esquadra, em Luanda, já 8 ou 9 inteiros anos passados sobre o puro e rebelde assalto do 4 de Fevereiro.
Tu perguntas-me, com a tua americaníssima ignorância, que raio foi ou é o 4 de Fevereiro? E eu pergunto-te que raio de ideia te passou pela cabeça para me apareceres assim, a tentares esquizofrenizar-me, numas cenas Professor Julius Kelp, corpo todo retorcido, a pingares um recalcado desejo pela Stella Stevens, e noutras cenas, em fatos rutilantes, voz de rythm and blues, um Buddy Love sedutor, mentor, sexy e cantor?
Sim, encontrámo-nos nas Noites Loucas do Dr. Jerryl, a que chamaste The Nutty Professor. E tu, Jerry, era dois em um: de dia, o míope, corcunda e aluado prof. Julius Kelp e, à noite, depois de meteres à boca uma conveniente mistela alucinogénea, eras o egomaníaco e sedutor Buddy Love. Há quem diga que eras, num dos teus eus, um auto-vexatório Jerry e, no outro eu, a zurzida caricatura de Dean Martin, com quem tinhas feito dupla e uma daquelas amizades que nunca acaba.
Com o meu engasgado estilo de Julius, logo me apeteceu roubar-te a fama e o proveito de Buddy Love: esbofetear humilhantemente quem me contrariasse e trazer sem esforço as frescas bocas das louras adolescentes à minha boca. Não deves ter gostado nada de mim, mas eu gostei de ti, Jerry: pertencias ao tempo em que vivíamos e, sobretudo, parecias do tempo em que sonhávamos viver.
Adorei, desculpa repetir-me, esquizofrenicamente As Noites Loucas do Dr. Jerryl. Por ser um sonho de miúdo. O que eu queria era o que tu fazias no filme: ter outra e desconhecida identidade, ser o irrecusável, irresistível, melhor de todos, entrar na discoteca (ui, e logo o Purple Pit; sim, lá na rua, logo lhe chamámos o pitinho púrpura) e a orquestra parar, todos os olhos fixados no prodigioso fato azul celeste de colarinhos pretos, colete branco, camisa rosa e gravata azul-escuro com que, feito Buddy Love, irrompias, deixando esgazeados os também azulíssimos olhos da Stella Stevens que, essa manhã, o estrabismo de Julius sonhara despir de todas maneiras e melhor feitio.
Sei bem que não sabes, mas deixa-me contar-te, agora que já não podes partir-te todo à minha frente, a rir-te ou, pior ainda, a gritar como gritavas no The Ladie’s Man. Quando o João Bènard me convidou para a Cinemateca, o primeiro ciclo que organizei, com o João Lopes, foi em tua homenagem (ou à tua custa, dirás tu). Não minto. Tens aqui a capa do catálogo que é de Julho de 1981.
A sala da Cinemateca tinha ardido e fomos fazer o ciclo ao Quarteto, ainda eu estava longe de saber o amigo do peito que o Pedro Bandeira Freire acabaria por ser. O catálogo é humildemente deslumbrado, quase uma plaquete estudantil, de 52 páginas, a custarem uns caros 80 escudos, que os teus luxos pagam-se. Mas era, se um catálogo fosse a foz de um rio, um delta de amizade. O que não copiámos e traduzimos dos Cahiers du Cinèma (sim, aquela revista que embrulhou os filmes no papel celofane que põe os teus reticentes compatriotas de olhos em alvo), pedimos aos amigos que escrevessem, a começar pelo Camacho Costa: “Era uma vez um palhaço, tinha um nome e um rosto e um corpo. O resto era só a alegria de se descobrir mergulhado nessa vertigem imensa que é inventar do outro lado a nossa própria loucura.” E convidámos, o João e eu, dois Gabriéis. O João, um psicanalista, o José Gabriel Pereira Bastos. Eu, um filósofo, o José Gabriel Trindade Santos, meu eterno professor. Escrevemos também nós. E lembro-te o que o João Lopes começava por dizer: “Herbert H. Heerbert, o “homem das mulheres” de Jerry Lewis, tem medo do cão que ruge, esse “Baby” (bebé) que tantas preocupações traz à sempre presente e dominadora Mrs. Welenmelon.”
O João Lopes tinha razão: tinhas medo desse cão, Baby, que não podia soltar-se, nem ver-se E nem era preciso que Mrs. Welemelon te tivesse prevenido. O rugido de Baby e a fome insaciável de Baby perseguiram-te a vida toda, os filmes todos. Baby, o cão, está agora à tua espera. Deus só pode ser esse bebé que ruge. E o céu é, de certeza, um cenário quase tão prodigioso como o de The Ladies Man. O que Baby, ou Deus, não sabe é o susto que vai levar quando descobrir que tu és o que és e o que não és. E o que és? Julius Kelp ou Buddy Love?