Histórias que os filmes não confirmam nem desmentem, parte 3

Histórias que os filmes não confirmam nem desmentem,
antes pelo contrário, parte 3

Fanny_et_Alexandre

[Continuação da Parte 1 e da Parte 2]

Continuemos com gangsters e vejamos como mesmo os gangsters também têm sonhos e como eles enterram os sonhos falhados. Numa das mais contidas e elegíacas histórias de despedida que o cinema já contou, vejamos como na obra-prima que é O Padrinho, parte 1, Marlon Brando e Al Pacino, Vito e Michael Corleone, enterram os seus sonhos.

 Don Vito Cor­le­one já fora bale­ado antes. Ouvira-se o baru­lho seco dos tiros e o Padri­nho dan­çara hesi­tante, um pé a fugir ao outro, o vulto patri­ar­cal a tom­bar sobre uma banca da fruta e legu­mes. Duas, tal­vez três balas no corpo, e uma laranja a rolar no can­sado alcatrão. Fiéis e inimigos percebem que chegara ao fim o reinado de Don Corleone.

Don Vito sobre­vi­veu, mas Sonny, o filho herdeiro, não teve a mesma sorte. Numa portagem fize­ram dele um pas­sa­dor. Nesse momento, The Godfather enche-se de punhais e sangue. Sobre­vi­ven­tes, pai e filho têm de conversar sobre a lide­rança da famí­lia. A cena não exis­tia no livro de Mario Puzo, nem no argu­mento de Fran­cis Cop­pola. Mar­lon Brando, o Padri­nho, já só tinha mais 24 horas de fil­ma­gens e Cop­pola pre­ci­sava de fazer a “pas­sa­gem” de teste­mu­nho. Que­ria tam­bém, diz ele, mos­trar o amor de pai e filho, de Don Vito e Michael. Chama­ram Robert Towne, um obs­curo gui­o­nista. Viu, em bruto, horas de mate­rial já fil­mado e escre­veu a cena. Che­gou ao pla­teau e Mar­lon Brando pediu-lhe que a lesse em voz alta. Quando aca­bou, ouviu-se “outra vez” e era a voz de Brando a res­cen­der a maçãs. Towne per­ce­beu que já tinha nas mãos o coração de Brando.

Fil­ma­ram. No recato de um quin­tal, Brando e Al Pacino, os dois Cor­le­o­nes, con­ver­sam. Uma haste de videira é a ténue alu­são a esta nossa Europa mediterrânica de onde a família partiu. O copo de vinho na mão do patri­arca, Don Corleone, subli­nha essa origem. Entre sor­ri­sos ter­nos, na doçura da tarde, dois homens que se amam, matam, um em frente ao outro, aquilo que amam. Em duas fra­ses sin­ge­las, Don Vito entrega um impé­rio ao filho: um sórdido impé­rio de crime e trai­ção. O filho terá de matar para não ser morto e o pai diz-lhe como matar e quando matar.

E, ao mesmo tempo, paredes meias com palavras sobre o crime e a traição, falam da mulher de Michael, dos filhos de um, netos do outro. No rosto de Pacino esconde-se uma tristeza sem fim. Todas as suas espe­ran­ças, a esperança de uma vida limpa, uma vida de verdade e beleza, vão a enter­rar, ali no quin­tal, ao lado da horta onde cres­cem os tomatei­ros.

E Don Vito, ou tal­vez devês­se­mos dizer um bíblico Abraão, sufo­cando a culpa, dilacera-se, evo­cando um futuro que nunca chegará: um filho sena­dor, um Michael com uma car­reira legí­tima. A desilusão res­vala no olhar de Mar­lon Brando: pelo preço de manter o poder na fami­glia acaba de afo­gar o filho, como na minha infân­cia se afogava uma ninhada de gatos recém-nascidos.

Dois séculos e meio depois, num pátio de Nova Ior­que, na cena escrita por um obs­curo e divino argu­men­tista, Abraão con­suma o sacri­fí­cio do seu filho Isaac. Tudo se repete, menos Deus, que já não com­pa­rece para tra­var a mão que se estende con­tra o menino dei­tado na lenha do holo­causto. Vejam como se enterram os sonhos.

Como vêem, não há só Ilíadas e Odisseias no cinema. Por vezes, tantas vezes, o cinema, neste caso Hollywood, reza pela Bíblia.

Quando Francis Coppola recebeu o Oscar por Godfather, logo ali, no palco, fez justiça a Robert Towne, o argumentista e escritor desta cena, que não vinha no livro de Mario Puzo que foi a base do filme. Disse Coppola: “Vito a dizer a Michael, no jardim ‘I never wanted this for you?’ Isso não é de Puzo.” Não é! É de Robert Towne, argumentista também de outro prodígio chamado Chinatown.

Das muitas histórias de filmes e nos filmes que escolhi, tive de abdicar, por razões de tempo das histórias de Citizen Kane, da exemplar adaptação que Elia Kazan fez do A Leste do Paraíso, de John Steinbeck, e de mais uns dez filmes exemplares.

Preferi, a muitos filmes cheios de significado, um filme sem significado nenhum, escolha que, na arte, na literatura e no cinema, tem sido a minha, a de escolher o poema, o romance, o filme, a pintura que não tem no significado a sua justificação. A arte devia sempre orgulhar-se de apanhar falta injustificada e chumbar no progressivo exame das grandes razões e da grande moral.

Há um filme de Hitchcock, e nesse filme esta cena, que eu considero o melhor exemplo de arte pela arte, o melhor exemplo da insignificância levada ao sublime.

Ainda por cima, uma cena de sedução, num comboio, quando os comboios tinham aquela maravilhosa música intermitente de sobe e desce, que era o pouca terra, pouca terra, pouca terra.

Só há, nestes dois minutos e meio de conversa entre Cary Grant e Eva Marie Saint, um defeito impertinente: o excesso de prazer. São dois minutos e meio de puro prazer de cinema com cerca de 60 planos em campo-contracampo, o que dá pouco mais de dois segundos por plano. É uma loucura de rapidinhas, com a câmara imóvel a entregar-se ao obsceno prazer de contemplar a beleza de dois rostos.

É a felicidade de um diálogo que cumpre a suprema missão de um escritor, a de encantar, e que, sem ter sentido nenhum, tem mais inuendos e subentendidos do que tem brilhos ao sol a cauda aberta de um pavão real.

Uma mulher e um homem falam um com o outro, a mulher delicia-se em desconcertante abuso da sua posição dominante, mas mesmo que tirássemos o som ao filme, bastava o diálogo de olhares, bastava a entoação dos olhares que trocam, para que a palpitante emoção que sentimos, e permitam-me que não diga onde é que a sentimos, nos fizesse também aborrecer, como Eva Marie Saint diz que se vai aborrecer com o livro que temos para ler hoje à noite.

Escolhi outra cena deste North by Northwest:

Cary Grant ia a meio das filmagens e estava mais baralhado do que quando o filme começou. Virou-se para Hitchcock e disse-lhe: “Mas que pepineira de argumento é este que eu não lhe consigo perceber nem os pés nem a cabeça.” Foi música para os ouvidos de Hitchcock.

O argumento, absolutamente perfeito, é de Ernest Lehman, e usa a confusão de identidade de Cary Grant como sua energia eólica. Na verdade, a personagem, que põe em brasa, tanto Cary Grant como os espiões, e causa a mistificação a que assistimos neste filme, é um agente secreto falso, que nem sequer existe. É bem possível que esse magnífico fait-divers português que se chama Tancos, tenha sido um legado de Hitchcock, uma practical joke que ele nos deixou.

Cary Grant não sabe, mas é um cavalo de Tróia infiltrado num ninho de espiões soviéticos, e também não sabe que Eva Marie Saint, desde aquela cena do comboio, que já vimos, vai escondida dentro dele, como os aqueus no grande bicho de madeira que os troianos metem dentro das muralhas.

Nesta cena, em que o inimigo o descobriu e cercou, Hitchcock é um menino guloso a mamar doces: os mesmos olhares cheios de música e emoção que vimos em Cary Grant e Eva Marie Saint estão agora nos olhos de Cary Grant e dos espiões que lhe fecham a saída, e a surpresa que era cada réplica de Eva Marie Saint transitou para o delirante nonsense que é a licitação de Cary Grant às peças do leilão.

Acabo. Com uma discreta concessão à Bíblia, defendi, no essencial, que o cinema é uma invenção grega que passa o tempo a repetir duas histórias, a guerreira Ilíada e a deambulatória Odisseia.

Há pouco defendi também que as melhores histórias, as que têm mais pregnância artística, são as que não têm significado nenhum. Quero, para minha desgraça pessoal, acabar a defender o eufórico valor artístico do traque. Mas antes de dizer seja o que for peço a Ingmar Bergman, sueco vindo dos mortos, que interceda por mim.

Há muitas cenas metafísicas e sublimes de Bergman, até mesmo neste seu tão confessional e bonito Fanny e Alexandre. Mas é nesta cena, digo eu, que está inscrito tudo que nos faz contar histórias.

Contamos histórias porque queremos maravilhar e ser maravilhados. Contamos histórias porque queremos ouvir o traque, o sonoro flato, a ventosidade que faz bruxulear a luz de uma vela. As histórias são os traques que ressuscitam e fazem rir o menino que os trabalhos e os dias adormeceram em nós. Peço-vos uma coisa. Como o tio de Bergman, subam e desçam as escadas a correr, baixem as calças, levantem as saias, e façam o que faz o tio de Bergman.

Eu por mim, e para me despedir, plagio o que li há dias numa revista. Um visitante que vá regalar-se a ver as ruínas de Herculano, perto de Nápoles, se procurar bem, encontrará, em latim, esta antiquíssima inscrição de um cidadão do império romano, que eu traduzi assim: “Aqui, de nádegas viradas para o céu, fiz amor com a minha mulher, mas escrever isto, ah, que grande vergonha.” Obrigado.

The end

A professora inglesa

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E o que vemos é a perfeição

Tenho o fetiche da professora inglesa. Confesso e explico-me.

O sexo estampado na cara de Marilyn ou de Brigitte Bardot repugnava a Hitchcock. Preferia a sexualidade das britânicas. Uma professora inglesa – é ele a contar – vai connosco no táxi e, a meio da cândida conversa sobre o tempo e Henrique VIII é perfeitamente capaz, súbito e sem explicações, de nos atirar a mão à braguilha.

Truffaut, que o entrevistava, ficou de boca aberta até Hitchcock rematar: “Só com mulheres dessas pode haver descoberta do sexo.”

Na esperança de ser lido na ligeiramente puritana Fenprof, sugiro que as conversas de Hitchcock com Truffaut passem a ser obrigatórias na formação docente. Debate esclarecido nunca fez mal a ninguém.

Esta inocente concepção da sexualidade atinge o seu expoente em “Rear Window” e “To Catch a Thief “, protagonizados pela loiríssima, angelicamente linda, Grace Kelly. Com ela contracenam Jimmy Stewart e Cary Grant. Nenhum parece ter vontade de lhe tocar.

Stewart, no começo de “Rear Window”, tem uma perna engessada e senta-se à indiscreta janela a espiar os vizinhos, procurando na vida deles a excitação que a forçada reclusão não lhe dá. Também não o excita a ideia de casar com a rica Grace Kelly que acha fútil, vinda de um ambiente tão rarefeito como a nossa Quinta da Marinha, a cabeça feita em vestidos, jóias e jantares milionários.

O espectador já sabe isto tudo e ainda não viu Grace Kelly. Quando primeiro a vemos, o que vemos é a sua sombra. O imobilizado Stewart adormeceu. Sobre a rija perna de gesso desliza uma sombra humana que passa ao ventre, e avança pelo peito, até lhe tapar o rosto. O perfume dela acorda-o, abrem-se-lhe os olhos e vê-a. Nós também pelos olhos dele. E o que vemos é a perfeição. Por ela pecaria o Espírito Santo se a sua língua de fogo tivesse olhos.

Por não ver na sombra a essência de Grace é que Stewart a não quer. Vê o gelo louro e a pele imaculada. Mas não ouve o vulcão que o sussurrado adágio da voz dela anuncia. “Como vai a tua perna?” pergunta. “E o teu estômago?” diz a seguir. É uma voz de sombras macias que promete correr-lhe a anatomia toda.

Grace Kelly toma a iniciativa também em “To Catch a Thief”. Cary Grant é ou foi um ladrão de jóias. Grace traz ao pescoço um colar refulgente que chama nomes ao seu decote. Se o paraíso é uma voz então é o paraíso que da boca dela convida Grant: “Toca-lhe!” E a mão dela a oferecer à dele a exposta jóia: “Agarra-a”.

Nesses filmes de crimes e roubos, Hitchcock fez de Grace Kelly a mais erótica jóia da sua colecção. A forma civilizadíssima e elegante como a filma só realça a húmida convulsão que a faz dizer a Stewart: “Quando quero um homem, quero tudo o que ele tem.”

Por estes sonhos ninfomaníacos de Hitchcock perpassa a sombra de uma professora inglesa.

A bomba atómica

Hitch

Talvez explodisse a uma fulgurantíssima terça-feira. Ou a um domingo, apanhando a família a comer caranguejos, na casinha colonial que tínhamos em pleno musseque Sambizanga. Estava para explodir a bomba atómica que apagaria da face da terra a afrodisíaca insatisfação da humanidade. A bomba atómica foi-me apresentada em 1959, mal comecei a ler. A apocalíptica bomba vadiava nos jornais, mesmo na revistinha “Missões e Missionários”, que por caridade e devoção a minha mãe assinava. Do porto de Luanda, traficado num barco conradiano, o meu pai trazia-me esse baluarte americano que era o “Reader’s Digest”. Nele aprendi a soletrar atomic bomb, antes do exagero optimista de qualquer good morning.

Todos sabemos que a bomba atómica foi inventada por Hitchcock. Havia uma cave repleta de urânio numa improvável casa do Rio de Janeiro, insidioso pretexto hitchcockiano para meter Ingrid Bergman na cama de quem ela não amava, de resto a única forma que Hitchcock supunha ser a de meter uma mulher na cama. O filme, “Notorious”, revelou o segredo da bomba atómica e urdiu o beijo na boca de dois minutos e meio.

Um código de mau hálito proibia no cinema beijos com mais de três segundos. A proibição excitou o anafado espírito de contradição de Hitchcock e eis que ele inventa o longuíssimo beijo pré-adúltero, pondo Cary Grant e Ingrid Bergman a colarem e descolarem as bocas a cada três segundos, num erotismo delicado e sôfrego, servido, sem cortes, em plano sequência. São os mais humedecidos e sussurrados dois minutos e meio da história do cinema.

E não é de sussurros, mas de um épico estrondo que quero falar. Claude Rains é um nazi filho da mãe, casa à força com a democrática beleza de Ingrid Bergman e tem garrafas de urânio escondidas ao pé de báquicos Premier Cru de Bourgogne. Foi antes da fatídica Hiroshima que o filme começou a ser preparado e ninguém sabia o que era esse pó de urânio, a não ser o então omnisciente FBI. Hitchcock esteve para ser preso e, fosse ou não pela mão dos nazis amigos do Claude Rains de “Notorious”, o urânio chegou à impenetrável Cortina de Ferro.

A bomba trouxe um medo absoluto de fim do mundo a um mundo dividido ao meio. Traria depois o riso absoluto de outro filme, “Dr. Strangelove”. Felicidade atómica: nada é mais inspirador do que o medo e o riso.

 

Dez grandes cenas do cinema: Psycho

Iam cinco e agora vão seis. Esta é, com a paquidérmica presença do senhor Hitchcock, a 6º cena que eu escolhi para O Gosto dos Outros na Gulbenkian

psycho

PSYCHO (1960), de Alfred Hitchcock
cena do duche

Se não se importam, vamos agora ao banho. O medo é uma das grandes paixões da humanidade. Sem lobos maus, sem bruxas feias, perversas e iníquas, as histórias que os pais nos leram na nossa infância e que também nós lemos aos nossos filhos, não valiam um caracol. O cinema apaixonou-se pelo medo desde o início. É verdade que o cinema também se apaixonou pelo amor, mas a paixão pelo medo provocou bem mais gemidos e gritos, bem mais sobressaltos do que o amor.

Foi com os requintes do medo que os grandes realizadores conseguiram verdadeiramente que o espectador tirasse ou pelo menos mexesse o rabo na cadeira, prova de que a expressão “quem tem cu, tem medo”, tem mesmo algum significado.

Nenhum realizador viveu de sofisticado beijo na boca com o medo como Alfred Hitchcock. Saíram da cabeça dele as melhores cenas de suspense e medo que os nossos olhos já comeram. Escolhi esta, em que, com uma faca e uma cortina de duche, Hitchcock redefiniu o terror.

Este filme baseia-se na história autêntica de um criminoso, que não matou nenhuma das víti­mas no banho, limitando-se a cortar-lhes a cabeça. Tudo solu­ções que desagra­da­vam a Hit­ch­cock. Não gos­tava de mui­tas mor­tes nos fil­mes – “os cadá­ve­res não sabem repre­sen­tar”, dizia ele, achando que era um des­per­dí­cio e uma san­gria desa­tada cortar-se sim­ples­mente a cabeça à vítima.

O plá­cido cine­asta inglês tinha inveja do que os realizadores do mudo tinham feito às suas actri­zes e heroí­nas. Nessa altura, jurava ele, os realizadores sabiam tor­tu­rar uma mulher e faziam aquilo bem feito. Ins­pi­rado nessa tradição, nasceu na cabeça de Hit­ch­cock a bela e cri­mi­nosa ideia de matar no banho a sua pro­ta­go­nista, Janet Leigh, aos 47 minu­tos de filme.

Três minutos de chuveiro e umas 50 facadas são a matéria prima desta cena sublime de Hitchcock. É um prodígio de montagem, uma combinação fabulosa de música, grandes planos, água, chuveiro, cortina de plástico e reacções humanas. Se virmos bem são ingredientes humildes, prosaicos, sem valor estético, mas a combinação é artisticamente sublime, num preto e branco que era, em 1960, já anacrónico e raro.

O pai de uma jovem espectadora escreveu a Hitchcock, acusando-o de que a filha, depois de ter visto o filme, se recusava há meses a entrar no duche. O velho e gordo cineasta respondeu-lhe, escrevendo: “Mande-a à limpeza a seco.”