O meu maravilhoso funeral

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(c) Bob Dylan

Não é uma canção. É o meu maravilhoso funeral. Nunca me imaginei ir a enterrar na voz de Bob Dylan. A cantar Murder Most Foul (A Mais Obscena das Mortes, traduzo eu), a voz de Dylan vai em marcha lenta, a singela carreta funerária à frente de milhares de passos de silenciosos corpos presentes, que vêm despedir-se.

Eu vou a enterrar em Murder Most Foul (A Mais Hedionda das Mortes, traduzo eu), Bob Dylan de coveiro, voz monocórdica, constante, repetitiva, a abrir a cova como o velho e humilde sacho do cavador de cemitério de aldeia. Em Murder Most Foul (A Mais Abominável das Mortes, traduzo eu) morre ao piano (roubado a Keith Jarrett?) e vai a enterrar em soturno violino todo o mundo que eu amei, as canções, os filmes, as velhas ruas americanas, a cabeça de John F. Kennedy. A colcha almofadada deste caixão é os anos 60, a cultura pop, tanta esquecida contracultura, que me encheu de amor as veias, e já deito a cabeça no colo dessas ruas de polícias (cops, traduzo eu), salpicadas a Woodstock e Altamont, como na salada se infiltram sal e pimenta.

Vou a enterrar na mais suave e cruel das elegias, a inesperada elegia de Dylan, tributo, aceitação e morte. Morro, morremos em Murder Most Foul (A Mais Desleal das Mortes, traduzo eu), nesta canção temperada a uma saudade venenosa e doce, intraduzível nessa língua portuguesa que tanto se vangloriava de ter a exclusividade dela. Em cada rima de Dylan há uma perda e mil adeus, adeus, The Beatles are comin’, they’re gonna hold your hand.

Esta canção entra-nos na cabeça com a delicadeza que a bala de Lee Oswald não teve ao entrar na cabeça de John F. Kennedy. Era uma questão de tempo e este é o tempo certo: Dylan, profético, cordeiro sacrificial de Deus, canta (play, traduzo eu), canta-me a mim, a nós, em cada verso lembrando os dias, as casa, os carros, a rádio, o cinema, a igreja, o que fizemos, as ausências e a nossa cabeça que tomba, como tombou a de John F. Kennedy, gota de sangue no olho, gota de sangue no ouvido.

Em 17 minutos xamânicos, Dylan entrega a memória de uma vida e de um tempo nos braços e no colo da morte e leva-nos de limusina para o infinito, inferno ou céu. Fui hoje a enterrar em Murder Most Foul (A Mais Tempestuosa das Mortes, traduzo eu). Obrigado Bob Dylan por tão gentil eutanásia.

Futuro, funerais e sonhos

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Pablo Picasso, do período azul

Estas foram as Bicas Curtas que servi no CM, corriam os dias 24, 25 e 26 de Março. Mau grado a velocidade a que anda hoje o mundo, não retiro nem uma vírgula ao que disse.

O futuro emergente

Há duas coisas abomináveis. Ou melhor, abominável é explorar este cataclismo para açambarcar e inflacionar bens essenciais. Mas, se não é abominável é, pelo menos, populista, arrancar desta catástrofe ilações ideológicas prematuras, divisionistas e culpabilizantes, seja para atacar a direita ou a esquerda.

Uma inquietação: quem será capaz de dar à humanidade que somos um farol depois da crise. A China e a sua ditadura? Uma outra América, que não a deste Trump paroquial, desconexo e abdicacionista? Conseguirá a Europa ser a referência solidária, cultural e económica que um novo tempo de desenvolvimento, ciência e bem-estar precisa?

Chorar os nossos mortos

Há, na dor dessa belíssima Itália, na implacável ceifa de morte a que o vírus a submeteu, um aspecto que a todos nos choca e desanima: os mortos vão a enterrar sozinhos, sem ritual religioso ou civil. É um enterro secreto, escondido. Ninguém assiste, ninguém se despede, cônjuges, filhos, netos, amigos ou vizinhos. Não é só a cremação solitária, é o facto de ninguém fazer o luto, de ninguém poder chorar os seus mortos.

Não poderemos, em Portugal, evitar os nossos mortos, mas temos de lutar e ajudar para que, nesta peste, não cheguemos ao ponto em que nem a um funeral possamos assistir. Ficar em casa é uma forma de luta, uma boa ajuda.

Tive um sonho

Quantos sonhos destruirá o covid 19? Que alegrias adolescentes não roubou já aos nossos miúdos? Com que angústias inesperadas não assombrou já os nossos velhos? Esse é o efeito do presente. E o do futuro? Por quantos anos pesará o choque sobre as empresas e os negócios? Quanto se reduzirá o salário com que se paga o pão de cada dia?

Sonho com uma resposta mundial para a saída desta crise. Uma economia aberta, desenvolvimentista, global, sem a clausura paroquial que faria de cada país uma aldeia salazarenta. E sonho com um sistema de saúde mundial, com um investimento brutal na ciência e nos meios de ataque às próximas pandemias.