Todo o guru de venda por atacado jura que há em cada convulsão uma janela de oportunidade. Depois da multiplicação de canais de cabo, o streaming, ou seja, as plataformas cuja oferta está em acesso permanente por subscrição, estão a fazer explodir a velha televisão. A Netflix, Amazon, HBO Max, Disney + têm aos 150 milhões de assinantes. Oferecem séries e filmes com orçamentos loucos. Estão em Espanha e França e a condição é investir na ficção local. Na estreia, a série 3 da “Casa de Papel” teve 34 milhões a ver.
E em Portugal? Qual o caderno de encargos? Vão investir na nossa ficção e livrar-nos da anacrónica telenovela?
A título de disclaimer e para que não tombem sobre mim acusações futuras, comunico que o post Um inédito de William Faulkner, na linha de uma tradição de fantasia literária, é pura ficção. Ah, mas que bem que soube a deambulação “canular”, como diriam os franceses.
Jorge Luis Borges, no volume IV das suas Obras Completas, reunindo prefácios que escreveu para dezenas de obras maiores e de extraordinárias obras menores, sugeriu que se publicasse um livro inteiro de prólogos de livros apócrifos ou inexistentes e que se carregassem com a verosimilhança de citações dos inexistentes autores e de saborosos pormenores externos. O desafio, irresponsável, cativou-me. Faulkner e o tão fragmentado romance que é “Go Down Moses” pareceram-me um bom alvo. Imaginei que Faulkner tivesse agarrado em duas personagens reais, a mãe Molly e o filho Henry, e os tivesse juntado, numa tentativa de síntese do mosaico de vida que ele criou e que não pode, justamente, ter síntese.
Ou seja, and just for the record:
Faulkner nunca escreveu o conto “The Prodigal Son”.
A revista “Story” nunca publicou o conto que Faulkner nunca escreveu, embora tenha publicado alguns dos que ele escreveu.
Os arquivos da Princeton University, Box 36 e Folder 33, contêm de facto as histórias que Faulkner publicou na “Story”, mas nenhum inédito maldito.
A revista Prism existe e, a seguir ao número do “Verão de 2005”, esteve mesmo fechada durante dois anos. Seria uma assustadora surpresa para mim, se agora se descobrisse ter publicado o conto “The Prodigal Son”, que Faulkner nunca escreveu.
Peço ao meu heróico kamba, que invoquei em vão, as maiores e mais “falsas” desculpas, que hei-de conseguir inventar, por tê-lo associado a um processo de falsificação histórica, que inclui a tentativa de forjar documentos. Para a impoluta actividade que exerce é uma mancha irreparável que só a generosidade dele me perdoará.
As citações que constam do texto do post são “fabricação” minha com algum recurso a frases de outras obras do escritor do Mississipi.
Aos amigos que misericordiosamente me comentaram no blog e no facebook, o meu obrigado.
Para tudo isto, que é sobretudo diletante (e que outra coisa é a literatura, para já não dizer a própria vida), tenho uma excelente desculpa: deu-me uma trabalheira de prazer.
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Não podemos ser todos Sócrates, pensou David E. Kelley, o produtor de “Big Little Lies”, pequena mini-série ovo, com clara televisiva e gema cinematográfica protegidas por robusta casquinha social. Não vi melhor este ano.
Sócrates, o da Apologia, recusava falar do que falavam os grandes homens do seu tempo. Pedia-lhes que cuidassem da alma. Imagino-o na ágora, a desviar conversas, a encafifar interlocutores com perguntas risíveis, quando eles queriam falar sobre os grandes temas. Com licença de Eça, naquele tempo havia já Acácios e Pachecos.
Ah, os grandes temas! Os grandes temas são a selva amazónica da nossa ágora, o seu ponto de exclamação. Os grandes homens e mulheres deste tempo peroram sobre os grandes temas. Respeitemos-lhes a grandeza e sejamos de uma homérica injustiça: a ágora, jornais, revistas, rádios e televisão estão sobrepovoados de Acácios e Pachecos. Os próprios grandes temas já são acacianos e pachequianos. O nosso tempo não é socrático, o que algum Sócrates contemporâneo poderá nostalgicamente atestar. Sócrates era o não-especialista: prezava a sua ignorância. Com ironia, digamos. Fazia perguntas a Acácios e Pachecos, mas não os admirava. Hoje, Acácios e Pachecos vingam-se: da boca de nenhum se ouvirá um socrático “como nada sei, estou certo de não saber”.
David E. Kelley sabe que ninguém, neste tempo, pode ser um Sócrates. Fez “Big Little Lies” e enche de pequenas mentiras, em vez de grandes verdades, os sete episódios dessa mini-série casquinha de ovo. Acácios e Pachecos desunhar-se-iam a falar de bullying escolar, de violência doméstica, de controlo parental. Com quatro mulherzinhas troianas, Kelley arranca a vida da selva amazónica, que são os grandes temas, e mostra-a numa mistura de riso suave e doçura intensa. É a grande esmola que a mão direita de “Big Little Lies” nos dá para esconder as grandes tragédias que a mão esquerda camufla.
Bem sei que vi tudo, copo de Quinta São Sebastião Colheita 2014 na mão, mas vi e ouvi a alma de Reese Witherspoon, Nicole Kidman, Laura Dern, Shailene Woodley e dos homens delas. E, com ecos de édipos, eléctras e traquínias (com perdão dos gregos), entraram-me em casa o amor e a violação, os filhos e a escola, o sexo e o híper-sexo, as inomináveis boas intenções. O cenário é um cheiro a mar.
A vida não tem a mínima graça. Não me venham cantar a virtude da verdade; pelo amor da santa, não me façam hinos à prosaica realidade. A vida, a prosaica realidade, está todos os dias nos jornais e faz primeiras páginas infames. Torce-se o jornal e escorre sangue – pior, água chilra.
Quem paga bem é a mentirosa ficção; só a mentira tem imaginação para proclamar o sublime. Viajei por montes e planícies, fui aos bares mais escusos das mais escuras noites, e nada, nem um cavaleiro andante. Don Quixote e Sancho Pança sim, proclamam incansáveis, nas intermináveis páginas de um livro, em múltiplas e intraduzíveis línguas, a superioridade de um idealismo que resiste ao ridículo.
Quero lá saber da vida, os verdadeiros heróis são de papel. Ninguém, nenhuma polícia, nem mesmo o cortejo de um milhão de detectives de carne e osso, se aproximará, debilmente que seja, da rigorosa capacidade dedutiva do britânico Sherlock Holmes ou de Hercule Poirot, de imprestável nacionalidade belga.
Dizem-me que há seres dúplices, camaleónicos, mas na vida topam-se à légua. Só uma imaginação poética e em transe mediúnico teria sido capaz de criar o corpo desdobrável e prodigioso que é, ao mesmo tempo, Dr. Jekyl e Mr. Hyde. Querem provas: leiam o livro, vejam os filmes.
E digo-vos: mesmo nos momentos mais trágicos, quando só a sobrevivência conta, a honesta e nostálgica ficção canta mais alto. Durante a II Grande Guerra, de um lado e do outro da trincheira, a mesma fabulosa mulher, Lili Marleen, assombrava os corações dos soldados alemães e dos soldados aliados. Era só um nome, duas palavras a fechar uma estrofe. Nunca ninguém a viu, essa rapariga que cantaria, imaginava-se, debaixo de um desmaiado candeeiro, mas todos, durante aquela guerra, a cantaram e perdidamente a amaram.
Não há um recanto da nossa vida, em que a ficção não se intrometa e, despudorada, triunfe. O enigmático Édipo, mete-se entre o filho que somos e os pais que temos. Lolita, a decotada ninfa, atormenta-nos a maturidade. Othello vem todas as noites instilar um obtuso ciúme na almofada em que afundamos as nossas insónias.
Donde vem este exército de fantasmas, esta legião de incorpóreas aventuras? Às vezes acredito que cada um de nós é como um rei de mil e uma noites a quem, de madrugada em madrugada, uma Scheherazade surpreende com lendas e histórias, com poemas e canções. Com tão boa ficção, que préstimo pode ter a vida?