
A vida não tem a mínima graça. Não me venham cantar a virtude da verdade; pelo amor da santa, não me façam hinos à prosaica realidade. A vida, a prosaica realidade, está todos os dias nos jornais e faz primeiras páginas infames. Torce-se o jornal e escorre sangue – pior, água chilra.
Quem paga bem é a mentirosa ficção; só a mentira tem imaginação para proclamar o sublime. Viajei por montes e planícies, fui aos bares mais escusos das mais escuras noites, e nada, nem um cavaleiro andante. Don Quixote e Sancho Pança sim, proclamam incansáveis, nas intermináveis páginas de um livro, em múltiplas e intraduzíveis línguas, a superioridade de um idealismo que resiste ao ridículo.
Quero lá saber da vida, os verdadeiros heróis são de papel. Ninguém, nenhuma polícia, nem mesmo o cortejo de um milhão de detectives de carne e osso, se aproximará, debilmente que seja, da rigorosa capacidade dedutiva do britânico Sherlock Holmes ou de Hercule Poirot, de imprestável nacionalidade belga.
Dizem-me que há seres dúplices, camaleónicos, mas na vida topam-se à légua. Só uma imaginação poética e em transe mediúnico teria sido capaz de criar o corpo desdobrável e prodigioso que é, ao mesmo tempo, Dr. Jekyl e Mr. Hyde. Querem provas: leiam o livro, vejam os filmes.
E digo-vos: mesmo nos momentos mais trágicos, quando só a sobrevivência conta, a honesta e nostálgica ficção canta mais alto. Durante a II Grande Guerra, de um lado e do outro da trincheira, a mesma fabulosa mulher, Lili Marleen, assombrava os corações dos soldados alemães e dos soldados aliados. Era só um nome, duas palavras a fechar uma estrofe. Nunca ninguém a viu, essa rapariga que cantaria, imaginava-se, debaixo de um desmaiado candeeiro, mas todos, durante aquela guerra, a cantaram e perdidamente a amaram.
Não há um recanto da nossa vida, em que a ficção não se intrometa e, despudorada, triunfe. O enigmático Édipo, mete-se entre o filho que somos e os pais que temos. Lolita, a decotada ninfa, atormenta-nos a maturidade. Othello vem todas as noites instilar um obtuso ciúme na almofada em que afundamos as nossas insónias.
Donde vem este exército de fantasmas, esta legião de incorpóreas aventuras? Às vezes acredito que cada um de nós é como um rei de mil e uma noites a quem, de madrugada em madrugada, uma Scheherazade surpreende com lendas e histórias, com poemas e canções. Com tão boa ficção, que préstimo pode ter a vida?

Acho melhor que comecemos a lutar contra moinhos de vento, já que, pela parte que me toca, não tenho o mínimo jeito para contar historietas. Muito menos, mil e uma…
Um abraço ao Manuel da parte de Maria Antonieta… 🙂
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Maria Antonieta, já vê, que imaginá-la em luta contra moinhos de vento, montada num Fiat ou num Smart, já seria o começo de um boa historieta do século XXI. UM abraço também para si.
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