A solidão de Adão

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A solidão de Adão, a tristeza da sua carne

Foi no começo da década que agora acaba e eu li tudo nos melhores jornais. Vejamos um dos títulos: “Criar a vida deixou de ser prerrogativa dos deuses”. Tanto orgulho estampou-se no razoabilíssimo The Economist logo que os factos, a 20 de Maio de 2010, tiveram lugar. Em anódino esperanto, a revista Science titulava a mesma criação por outras palavras: “Criação de célula bacteriana controlada por um genoma quimicamente sintetizado”. Ambos tinham razão: entre o orgulho e o rigor, a ciência acabava de criar , pela primeira vez na história da humanidade, um ser sem pai, nem mãe. Um ser vivo sem antepassados – e que bem sublinhada vinha a palavra ” criar”.

Ainda agora estou a olhar para a solidão dessa célula. Uma solidão desse tamanho só encontra afecto noutra solidão. A única que a iguala, e porventura a ultrapassa, é a de Adão. Com a argila do solo, insuflando-lhe nas narinas um hálito de vida (Génesis, 2, 6e7), Deus criou-o homem e adulto. Imediatamente homem, imediatamente adulto. Adão teve domínio sobre os peixes do mar, as aves do céu, sobre todos os répteis que rastejam sobre a terra. Mas estava sozinho: em nenhum, nessa multidão de animais, encontrou companhia.

Solitário de si mesmo, Adão não tinha sequer a companhia da infância ou da adolescência das quais, na sua omnisciência, o Senhor Deus o privara. A solidão de Adão era tão universal, a sua angústia primordial, inaugurando todas as angústias, era tanta, que mesmo a omni-insensibilidade divina deu conta dela. Deus fez cair um torpor sobre aquele ínfimo eremita perdido na imensidão desolada do Paraíso, e tomando uma das suas costelas modelou a mulher, pondo fim à solidão da Adão e à tristeza da sua carne (Génesis, 2, 18 a 21).

Mas a dor ultrajante desse momento inaugural persiste. O homem – cada homem, mas não a privilegiada mulher – transporta ainda, transportará sempre, a ferida inicial de uma solidão absoluta e da abrupta privação da infância e da adolescência.

O Livro do Génesis é um relato mítico da Criação. Julgo que não é o único em que o homem, adulto, se depara com o mesmo radical abandono, com o peso insuportável de prosseguir sozinho e pelos seus meios com toda a Criação. Narrativa mítica, é a ela que a narrativa da mais dinâmica das ciências, a biotecnologia, recorre e imita. Não sei se deva dizer que Adão voltou ao laboratório dos deuses ou que se ouvem no largo paraíso os lamentos de uma bactéria solitária. Adão e a bactéria presidem afinal ao mesmo modelo narrativo, mas a diferentes criações míticas. Ambas têm a mesma humana origem. Ao contrário do que dizia The Economist, criar a vida nunca foi prerrogativa dos deuses.

um pé na água, outro na realidade

Esta é uma ideia a que me tenho mantido ferozmente fiel: a realidade é a grande inspiração. Pode, depois, não nos bastar (e ainda bem) mas é dela que nascemos e em nós tudo nasce.

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Há quem me diga, e eu também já tenho dito, que a melhor fonte de inspiração é a realidade. Acredito e até dou exemplos:

Thomas Mann só escreveu “Morte em Veneza” porque o compositor Gustav Mahler lhe serviu de modelo para o ascético herói do seu romance. A mulher de Mann não desmente, mas sempre acrescenta que a impressão causada por um rapazinho de 13 anos – “era tremendamente atractivo e o meu marido não deixava de olhar para ele”, comentou – poderá ter sido outra realíssima razão.

Já leram, está claro, o “Last Tycoon”, de Scott Fitzgerald. Não julguem que a personagem saiu armada da cabeça demiúrgica do romancista. Em boa verdade, Monroe Stahr é a literária cara chapada de Irving Thalberg, o mais poderoso dos produtores de Hollywood dos anos 20 e 30, casado com a actriz Norma Shearer. Aliás, bem casado, quanto mais não seja porque a morte de Thalberg, por pneumonia, aos 37 anos, evitou as canónicas trapalhadas domésticas que o meio cinéfilo, volátil e tão rotativo, em geral proporciona.

Por vezes, a realidade é até mais imaginativa do que o seu espelho ficcional. O Capitão Ahab, do genial “Moby Dick” de Melville, foi decalcado dos infortúnios e tormentos de um marinheiro de carne e osso, Owen Chase de sua graça. O barco de Owen foi afundado por uma baleia. O marinheiro andou à deriva 91 dias num bote e sobreviveu alimentando-se (ahrrggg!) do cadáver de um companheiro.

E já que estou com um pé na água, recordo que Robinson Crusoe é a reprodução ficcional de uma outro marinheiro despejado numa ilha deserta do Pacífico, depois de contestar as condições do seu navio. Alexander Selkirk, o marujo recalcitrante, passou quatro anos e quatro meses solitários na ilha. Contou as suas agruras comportamentais, e consequentes delícias espirituais, a Daniel Defoe e o resultado foi uma das mais exaltantes e lendárias aventuras que nos foi dado ler. Sobretudo se tivermos em conta que, em boa verdade, não há mulheres na história e que a apatia sexual do herói não se recomenda a ninguém.

Pois, pois. E hoje, o que nos pode inspirar. O infame Mediterrâneo, que as noites e os naufrágios enchem de gritos? Os estandartes do ódio que a extrema-direita levanta nas fronteiras da Europa? As proibições e a esquizofrénica vigilância que a esquerda regressiva e identitária impõe ao pensamento nas universidades americanas?

 

Quem inventou Deus?

Um mérito, pelo menos, não se pode recusar à humanidade. Criámos Deus. Melhor, um cortejo interminável de deuses. Não é coisa pouca. E, ao contrário do que alguns pensam, essa foi uma ideia brilhante, inventiva, nada obscurantista. Ajudou-nos muito termos criado Deus.

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A deusa que antecedeu Bündchen

Deus é a pin­tada prova da vai­dade humana. Os gre­gos inven­ta­ram deu­ses, os ban­tus deram à luz Nzambi e os esqui­mós afo­ga­ram no Árctico uma deusa gélida. Os aus­tra­li­a­nos têm des­culpa: quem inventa o boo­me­rang não pre­cisa de inven­tar raio e tro­vão de mais coisa nenhuma.

Os nos­sos dinos­sáu­ri­cos avós inven­ta­ram deu­ses para a guerra e o amor, comér­cio e oce­a­nos. Um avô judeu achou que devia fun­dir essa mul­ti­dão celeste num só Deus que pode e sabe tudo, está em todo o lado e, por estra­nho que pareça sabendo-se que saiu de cabeça humana, é infi­ni­ta­mente bom.

Orgu­lhoso com tão per­feita inven­ção, o homem não resis­tiu à vai­dade de trans­for­mar a coisa cri­ada em Cri­a­dor. Por não saber donde vinha, o homem fez-se filho dos deu­ses que inven­tara. Como se Deus fosse um Bot­ti­celli ou Miche­lan­gelo e nós saís­se­mos das Suas mãos fei­tos Vénus (sim, no caso da bra­si­leira Bünd­chen) ou David (errado, no meu por­tu­gue­sís­simo caso).

Tão pura vai­dade arran­jou uma valente carga de tra­ba­lhos. Sobre­tudo a Deus. Para satis­fa­zer a vai­dade de ter­mos um Pai dono do Uni­verso, aban­do­ná­mos Deus à soli­dão da trans­cen­dên­cia, à eterna cha­tice de motor imó­vel. Coi­tado de Deus, tão sozi­nho, tão con­cep­tual, sem­pre um milé­simo de segundo atrás do Big Bang!

Esse Deus – ouço-o gemer de angús­tia – está nos fil­mes do sueco Berg­man. É uma pre­sença muito pare­cida com o frio que nos passa pela espi­nha: rosto his­té­rico, corpo psi­có­tico. O ver­me­lho, cor de “Lágri­mas e Sus­pi­ros”, é um reflexo da gló­ria imu­tá­vel e incom­pre­en­sí­vel desse Deus dos fior­des. Em “Atra­vés do Espe­lho”, “Luz de Inverno” e “O Silên­cio”, Berg­man pintou-o aus­tero, devo­rado por um mutismo rígido e inco­lor, extre­mando o que o dina­marquês Dreyer pre­pa­rara em “A Pala­vra” e “O Dia da Ira”.

Os fil­mes lute­ra­nos de Berg­man figu­ram Deus como uma ara­nha. Nos fil­mes do cató­lico Paso­lini (cató­lico da hete­ro­do­xia mar­xista que dis­pensa bap­tismo mas não o acto de con­tri­ção), Deus passa de ara­nha a Terence Stamp. No “Teo­rema”, que se devia mos­trar nas aulas de mate­má­tica, Stamp instala-se numa casa de famí­lia e, num pro­cesso a que nos tem­pos da revo­lu­ção ango­lana se cha­ma­ria de enga­ja­mento sexual, traça, um a um, os mem­bros da famí­lia, da cri­ada ao pai, pas­sando pela mãe, filho e filha. Com estilo e meta­fí­sica, não pou­pando gera­ções nem clas­ses, Paso­lini fil­mou a carne a ven­cer, com van­ta­gem e êxtase, o espírito.

Agar­ra­dos à mãe­zi­nha (e a Freud), os ame­ri­ca­nos nunca acei­ta­riam a ambí­gua poli­va­lên­cia paso­li­ni­ana. Por nin­guém ser pau para toda obra, Bob Fosse e Spi­el­berg fize­ram de Deus uma mulher. Mulher com ape­ti­tes e mere­ce­dora de ape­ti­tes em “All That Jazz”. Diá­fana e gen­til no “Always” de Spi­el­berg. Se, como Spi­el­berg sugere, Deus se parece com Audrey Hep­burn, palpita-me que a teo­lo­gia vol­tará a ser uma dis­ci­plina popular.

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Audrey Hepburn com Richard Dreyfus em Always