Esta é uma ideia a que me tenho mantido ferozmente fiel: a realidade é a grande inspiração. Pode, depois, não nos bastar (e ainda bem) mas é dela que nascemos e em nós tudo nasce.
Há quem me diga, e eu também já tenho dito, que a melhor fonte de inspiração é a realidade. Acredito e até dou exemplos:
Thomas Mann só escreveu “Morte em Veneza” porque o compositor Gustav Mahler lhe serviu de modelo para o ascético herói do seu romance. A mulher de Mann não desmente, mas sempre acrescenta que a impressão causada por um rapazinho de 13 anos – “era tremendamente atractivo e o meu marido não deixava de olhar para ele”, comentou – poderá ter sido outra realíssima razão.
Já leram, está claro, o “Last Tycoon”, de Scott Fitzgerald. Não julguem que a personagem saiu armada da cabeça demiúrgica do romancista. Em boa verdade, Monroe Stahr é a literária cara chapada de Irving Thalberg, o mais poderoso dos produtores de Hollywood dos anos 20 e 30, casado com a actriz Norma Shearer. Aliás, bem casado, quanto mais não seja porque a morte de Thalberg, por pneumonia, aos 37 anos, evitou as canónicas trapalhadas domésticas que o meio cinéfilo, volátil e tão rotativo, em geral proporciona.
Por vezes, a realidade é até mais imaginativa do que o seu espelho ficcional. O Capitão Ahab, do genial “Moby Dick” de Melville, foi decalcado dos infortúnios e tormentos de um marinheiro de carne e osso, Owen Chase de sua graça. O barco de Owen foi afundado por uma baleia. O marinheiro andou à deriva 91 dias num bote e sobreviveu alimentando-se (ahrrggg!) do cadáver de um companheiro.
E já que estou com um pé na água, recordo que Robinson Crusoe é a reprodução ficcional de uma outro marinheiro despejado numa ilha deserta do Pacífico, depois de contestar as condições do seu navio. Alexander Selkirk, o marujo recalcitrante, passou quatro anos e quatro meses solitários na ilha. Contou as suas agruras comportamentais, e consequentes delícias espirituais, a Daniel Defoe e o resultado foi uma das mais exaltantes e lendárias aventuras que nos foi dado ler. Sobretudo se tivermos em conta que, em boa verdade, não há mulheres na história e que a apatia sexual do herói não se recomenda a ninguém.
Pois, pois. E hoje, o que nos pode inspirar. O infame Mediterrâneo, que as noites e os naufrágios enchem de gritos? Os estandartes do ódio que a extrema-direita levanta nas fronteiras da Europa? As proibições e a esquizofrénica vigilância que a esquerda regressiva e identitária impõe ao pensamento nas universidades americanas?