Quem inventou Deus?

Um mérito, pelo menos, não se pode recusar à humanidade. Criámos Deus. Melhor, um cortejo interminável de deuses. Não é coisa pouca. E, ao contrário do que alguns pensam, essa foi uma ideia brilhante, inventiva, nada obscurantista. Ajudou-nos muito termos criado Deus.

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A deusa que antecedeu Bündchen

Deus é a pin­tada prova da vai­dade humana. Os gre­gos inven­ta­ram deu­ses, os ban­tus deram à luz Nzambi e os esqui­mós afo­ga­ram no Árctico uma deusa gélida. Os aus­tra­li­a­nos têm des­culpa: quem inventa o boo­me­rang não pre­cisa de inven­tar raio e tro­vão de mais coisa nenhuma.

Os nos­sos dinos­sáu­ri­cos avós inven­ta­ram deu­ses para a guerra e o amor, comér­cio e oce­a­nos. Um avô judeu achou que devia fun­dir essa mul­ti­dão celeste num só Deus que pode e sabe tudo, está em todo o lado e, por estra­nho que pareça sabendo-se que saiu de cabeça humana, é infi­ni­ta­mente bom.

Orgu­lhoso com tão per­feita inven­ção, o homem não resis­tiu à vai­dade de trans­for­mar a coisa cri­ada em Cri­a­dor. Por não saber donde vinha, o homem fez-se filho dos deu­ses que inven­tara. Como se Deus fosse um Bot­ti­celli ou Miche­lan­gelo e nós saís­se­mos das Suas mãos fei­tos Vénus (sim, no caso da bra­si­leira Bünd­chen) ou David (errado, no meu por­tu­gue­sís­simo caso).

Tão pura vai­dade arran­jou uma valente carga de tra­ba­lhos. Sobre­tudo a Deus. Para satis­fa­zer a vai­dade de ter­mos um Pai dono do Uni­verso, aban­do­ná­mos Deus à soli­dão da trans­cen­dên­cia, à eterna cha­tice de motor imó­vel. Coi­tado de Deus, tão sozi­nho, tão con­cep­tual, sem­pre um milé­simo de segundo atrás do Big Bang!

Esse Deus – ouço-o gemer de angús­tia – está nos fil­mes do sueco Berg­man. É uma pre­sença muito pare­cida com o frio que nos passa pela espi­nha: rosto his­té­rico, corpo psi­có­tico. O ver­me­lho, cor de “Lágri­mas e Sus­pi­ros”, é um reflexo da gló­ria imu­tá­vel e incom­pre­en­sí­vel desse Deus dos fior­des. Em “Atra­vés do Espe­lho”, “Luz de Inverno” e “O Silên­cio”, Berg­man pintou-o aus­tero, devo­rado por um mutismo rígido e inco­lor, extre­mando o que o dina­marquês Dreyer pre­pa­rara em “A Pala­vra” e “O Dia da Ira”.

Os fil­mes lute­ra­nos de Berg­man figu­ram Deus como uma ara­nha. Nos fil­mes do cató­lico Paso­lini (cató­lico da hete­ro­do­xia mar­xista que dis­pensa bap­tismo mas não o acto de con­tri­ção), Deus passa de ara­nha a Terence Stamp. No “Teo­rema”, que se devia mos­trar nas aulas de mate­má­tica, Stamp instala-se numa casa de famí­lia e, num pro­cesso a que nos tem­pos da revo­lu­ção ango­lana se cha­ma­ria de enga­ja­mento sexual, traça, um a um, os mem­bros da famí­lia, da cri­ada ao pai, pas­sando pela mãe, filho e filha. Com estilo e meta­fí­sica, não pou­pando gera­ções nem clas­ses, Paso­lini fil­mou a carne a ven­cer, com van­ta­gem e êxtase, o espírito.

Agar­ra­dos à mãe­zi­nha (e a Freud), os ame­ri­ca­nos nunca acei­ta­riam a ambí­gua poli­va­lên­cia paso­li­ni­ana. Por nin­guém ser pau para toda obra, Bob Fosse e Spi­el­berg fize­ram de Deus uma mulher. Mulher com ape­ti­tes e mere­ce­dora de ape­ti­tes em “All That Jazz”. Diá­fana e gen­til no “Always” de Spi­el­berg. Se, como Spi­el­berg sugere, Deus se parece com Audrey Hep­burn, palpita-me que a teo­lo­gia vol­tará a ser uma dis­ci­plina popular.

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Audrey Hepburn com Richard Dreyfus em Always

Dez grandes cenas do cinema: Persona

E estou quase a chegar ao fim. Eis a nona das dez cenas que escolhi para o fantástico evento a que o Nuno Artur Silva chamou O Gosto dos Outros

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PERSONA (1966), de Ingmar Bergman
monólogo de Bibi Andersson narrando a orgia com outra rapariga e dois rapazes

Se só devêssemos à Suécia o Ikea já não seria pouco, mas a verdade é que devemos muito mais. Sem o cinema mudo sueco não teríamos, por exemplo, o Pedro Norton sentado nesta sala, e o imaginário erótico do Pedro Norton, como o meu e o de muitas gerações. Nenhum de nós teria chegado à idade adulta, ainda a suspirar como uma criança, se não fosse a contribuição escandinava.

Ingmar Bergman e o seu Morangos Silvestres não só nos ofereceram algumas das mais esplêndidas e aberta imagens desse erotismo, como centraram o erotismo na vivência da mulher adulta, segura de si, consciente do seu prazer. É melhor vermos e ouvirmos. Vamos ver uma cena de Persona, filme que nos mostra o relacionamento de uma actriz de teatro, em crise, que se recusa a falar, e da enfermeira que a acompanha e que fala obsessivamente, contando os mais íntimos episódios da sua vida à sua ouvinte silenciosa e esfíngica. Ingmar Bergman concebeu a história no hospital, convalescendo de uma pneumonia, e depois de Bibi Andersson, com quem já trabalhara e de que fora amante, lhe ter apresentado Liv Ullman, de quem Bergman viria, está claro, a ser também amante.

Para usar uma frase feita: este é o filme em que o erotismo e a sexualidade atingem no cinema um estado adulto. Um cenário despido, grandes planos dos rostos, close-ups tão intensos e fortes como os de Dreyer na Joana d’Arc, uma utilização soberba da fala, contrastada com um osbtinado silêncio, uma assunção do prazer e do orgasmo feminino que utiliza sem pedir licença a excitação masculina, no caso a de dois rapazinhos de 13 e 16 anos, o que hoje contaria como pedofilia.

Os produtores resistiram a esta cena, mas Bergman, com o entusiástico apoio de Bibi Andersson, não deu abébias à censura. Filmaram a cena em duas horas e o texto foi adaptado pela actriz para soar genuinamente feminino. Para que se perceba bem a radicalidade de Persona, no filme, que é de 1965, Alma, a personagem de Bibi, conta que dessa relação com o rapazinho engravida, abortando a seguir.

O quase murmúrio da actriz que fala, aquele tom baixíssimo de voz com que narra os passos da pequena orgia, enchem-nos de nostalgia juvenil, celebrando o que no sexo pode haver de livre, descomprometido e envergonhadamente ingénuo.