Para que jamais se repita

Partilho esta proposta da Guerra e Paz editores. Vala a pena comprar: são boas leituras de divulgação. Eu já tenho e li os três 🙂

Eis a certeza: temos a certeza de que não queremos que se volte a repetir. Não obstante, e como disse o filósofo Francis Bacon, sempre que um ser humano começa com uma certeza, quando chega ao fim acaba na dúvida.

Na dúvida, e porque queremos que não se repita o cataclismo nazi e o seu holocausto, trazemos-lhe estes três livros, que organizámos num pack pronto para lhe entregarmos em casa.

Uma novidade, acabadinho se chegar às livrarias, é o “Campos de Concentração Nazis: Sobreviventes e Fugitivos”, no qual Inês Figueiras recolheu e nos guia pelas histórias de mais de uma dezena de heroínas e heróis que resistiram, fugiram e sobreviveram, num atestado de que a coragem e a alma humanas nos transfiguram, mesmo nos momentos de caos e tragédia.

“No Bunker de Hitler” é já um clássico da literatura sobre Hitler, escrito por Joachim Fest e adaptado ao cinema. Um livro revelador sobre a psicologia, a mente desse Führer que assombrou a Alemanha e atormentou a Europa.

Por fim, “Os Filhos dos Nazis”, de Tania Crasnianski, aflora e desvela a herança nazi: os filhos dos mais altos responsáveis falam sobre os pais, pelos seus discursos passando a revisitação do passado, que uns fazem com culpa e redenção, mas que outros evocam com um enquistamento e quase louvor do mal.

São três livros necessários, úteis e de boa leitura: porque queremos que jamais se repita. Três livros, em sua casa, com o custo de 20€.

Quem é o Dono Disto Tudo?

Não digam que o mundo anda por aí sem dono. O mundo já voltou a ter dono. A China é a senhora do mundo, o Império do Meio. A Guerra e Paz faz o retrato do dono em quatro livros preciosos.

Porquê a Europa, Reflexões de um sinólogo, de Jean François Billeter disseca com inteligência e com base histórica a caminhada e a vocação imperial da China. E avisa a Europa sobre os perigos que o domínio chinês comporta.

José Félix Ribeiro, especialista português de prospectiva, escreveu EUA versus China: Confronto ou Coexistência, descrevendo-nos a emergência da rivalidade entre o antigo dono e o novo dono disto tudo. Estão aqui todos os indícios que agora se revelam nesta Segunda Guerra Fria, que já está em curso e que talvez nos obrigue um dia a ter saudades da velhinha Guerra Fria entre yankees e soviéticos.

Por fim, pela mão e pela câmara do português que melhor conhece a China, o escritor António Graça de Abreu, os leitores podem conhecer, cidade a cidade, região a região, Toda a China. Em dois volumes, Toda a China é uma gigantesca e minuciosa visita à realidade da China.

Quatro livros para conhecer o rosto, as intenções e a potência do novo dono disto tudo. E diz-nos a Guerra e Paz que entrega estes 4 livros em suas casa, já, por apenas 25€.

Warren Beatty travou

Lembram-se dos Oscars de 2017? Claro que não. Nem eu. Mas lembramo-nos todos do produtor, realizador e actores do La La Land se levantarem para irem receber o Oscar que afinal não era deles, era de Moonlight.

Gosto do erro. Warren Beatty travou. Daqui a 20 anos, destes Oscars, lembrar-nos-emos apenas disto: Beatty travou. Ia lançado como uma velha Zundap nas ruas de Luanda da minha infância e – como é que é, mano? – travou.

Warren Beatty ficou ali, a meter um dedo no envelope, como quem escarafuncha dissimuladamente a narina. Mas Faye Dunaway, pensando ser ainda a delinquente de “Bonnie and Clyde”, disparou. Um tiro só e os produtores, realizador e actores de “La La Land”, levantaram-se para logo morderem o pó amargo da derrota.

Já errei. Tenho até uma certa memória sensual do erro. Um dia, representei a SIC num evento da Embaixada de França. Recebeu-me a então Conselheira Cultural. Não é que eu seja baixo (LOL, diz o Henrique Monteiro), ela é que era muito alta. Estiquei-me para os beijinhos da praxe e é sabido como os bicos dos pés são incertos. Escorreguei ou estremeci e beijei-a na boca. Nova tentativa, embaraçada, e o incerto ósculo ficou pelo canto dos lábios. Do alto da França que incarnava, a bela conselheira foi diplomaticamente compassiva e eu, reconhecendo embora a invasiva deselegância, ainda hoje não me arrependo da falta de pontaria e de, lábios nos lábios, a ter feito rir.

Mas falava dos Oscars. Não foram sempre o que são hoje. Estão a ver uma festa numa associação de bombeiros voluntários em que toda a gente se conhece e ama e se levam de casa os rissóis de camarão e o bolo mármore, que a minha irmã faz como ninguém? Eram assim os Oscars.

Lembro-me, como se fosse hoje, dos Oscars de 1932-33. Mesmo os cães e gatos de Hollywood sabiam que Frank Capra ia ganhar com “Lady For a Day”. Will Rogers, seu amigo, apresentava com a preguiçosa informalidade que o faria brilhar nos filmes de Ford. Anunciou o melhor realizador. “Ora aqui está uma bela surpresa. Não podia ter saído a um tipo mais simpático. Vem buscá-lo, Frank, que bem o mereces.”

Capra salta e avança. Vai a meio caminho e vê outro Frank, Frank Lloyd, a ser abraçado por Rogers. Era Capra a morder o mesmo pó em que “La La Land” fez a desastrosa espargata. Capra recuou, humilhado: “Foi o trajecto mais longo e triste, o mais consternador da minha vida. Ter-me-ia enfiado no primeiro buraco que encontrasse no chão.”

Lembro a Capra a mais curta e avisada anedota portuguesa: “Qualquer um se pode enganar”, diz o nonchalant ouriço-cacheiro descendo da escova do cabelo.

Thalberg, Bette Davis e Capra, quando os Oscars eram a festa de associação de bombeiros voluntários em que toda a gente se conhecia e amava e se levavam de casa os rissóis


Vamos lá falar do Prémio Nobel

Há três anos estava um Prémio Nobel, o economista Jean Tirole, a falar na Gulbenkian sobre o seu livro A Economia do Bem Comum. É uma obra inteligente, que apela à razão e à informação. Um dos títulos de que me orgulho. Recupero o meu texto, mas sobretudo recupero os excertos do livro cuja actualidade continua a ser candente.

É a primeira vez que vou cumprimentar, ouvir e, se conseguir abrir a boca, falar, com um Prémio Nobel. Da Economia – e não me venham dizer que pa-ta-ti- pa-ta-ta não há prémio Nobel da Economia e que isso é um prémio com um nome quilométrico, dado pelo Banco da Suécia em homenagem ao senhor Nobel. O prémio é dado com os mesmos critérios do Nobel e a comunidade dos economistas passou a chamar-lhe  Prémio Nobel tout court e a escarrapachar a designação nas capas dos livros dos premiados. Foi o que este vosso editor fez, seguindo as melhores práticas inglesas, americanas e francesas.

Seja como for, na segunda-feira hei-de estar no aeroporto à espera de Jean Tirole, o economista vencedor do Nobel, de quem vou publicar Economia do Bem Comum. O que mais me agrada, passe o título, o prémio e o mediatismo, é ser Tirole um defensor da razão e um adversário do populismo, seja ele de direita ou de esquerda.

Não posso pespegar aqui o livro, mas fui buscar declarações dele que me deixaram rendido. Eis alguns pontos quentes da argumentação de Jean Tirole.

  1.   Sobre o populismo

“O populismo alimenta-se de frustrações – as crises financeira e europeia, o crescimento das desigualdades – e alimenta-se de medos – a desclassificação económica, as migrações, a desregulação climática e agora a revolução digital. Face aos discursos populista, os especialistas são por vezes vistos como arrogantes, como enviesados, como filhos da mundialização. Atenção, não pretendo exonerar por completo os especialistas de responsabilidades: podem por vezes não ser completamente íntegros, ter conflitos de interesses financeiros, esconder um objectivo político, privilegiar uma imagem mediática… Mas penso que a democracia sem especialistas corre para a catástrofe, porque deixa campo livre às crendices. Seria a derrota da razão.”

  1.   Sobre a imigração

“… uma forte alta da imigração não afecta, ou não afecta quase nada, as taxas de emprego a médio e longo termo, mesmo se isto é sem dúvida um pouco menos verdade a curto termo. Existe por exemplo um artigo académico muito célebre de um economista americano, David Card, mostrando que o afluxo súbito de 125 mil cubanos, em 1980, a Miami – o que era considerável tendo em conta dimensão da cidade – não fez, nem mesmo no curto termo, aumentar a taxa de desemprego, nem fez baixar os salários das populações em concorrência com os cubanos no mercado de trabalho. Porque o trabalho não é uma quantidade fixa. A ideia falsa segundo a qual existe um número finito de empregos condiciona muito o discurso político: essa mão de obra disponível em Miami atraiu investimentos, capacidades de produção novas, ou seja, empregos.”

  1.   A mundialização

“É globalmente uma coisa boa. E é uma coisa boa para os países emergentes como a China e mesmo a Índia, onde fatias inteiras da população saíram da pobreza extrema: pode esperar-se agora que esses países ponham em prática sistemas sociais mais desenvolvidos para completar a mutação, mas só a actual transformação já é impressionante. Para as economias desenvolvidas, fazer o balanço é mais complexo, porque se elas saem globalmente a ganhar com a globalização, encontram-se por vezes ganhadores e perdedores no interior desses países, como o provam vários estudos. Se todos os consumidores americanos beneficiaram da forte baixa de preço dos bens que compram, o operário do Midwest que trabalhava num sector em concorrência com as importações chinesas viu, no melhor, o seu salário estagnar.”

  1.   O proteccionismo

“Se Marine L Pen ou Jean-Luc Mélenchon tivessem vencido as eleições, a França teria saído do euro: uma crise financeira seguir-se-ia após uma especulação contra o “novo novo franco”. Com programas em que os déficits públicos subiriam a mais de 10% do produto interno bruto não se iria muito longe. Para esses soberanistas fazer vir o FMI a Paris a cada 6 meses para salvar o país, teria sido imensamente irónico… Sim, a curto termo protegem-se os empregos criando barreiras alfandegárias aos produtos estrangeiros. Mas não se pode esquecer que os outros farão a mesma coisa em detrimento da nossa indústria exportadora, que, por isso, se verá obrigada a despedir trabalhadores … Sem contar com outros efeitos deletérios a médio e a longo prazo. No começo, eles vão criar poderes de monopólio a nível local, já que a concorrência é muitas vezes estrangeira, o que aumentará os preços. Em seguida, eles vão impedir os seus cidadãos de aceder aos melhores produtos, porque vai limitar-se a oferta aos produtos nacionais. Daí nasce um freio à inovação: quando estão perante uma baixa de concorrência as empresas inovam menos, porque não têm vontade de se “canibalizar”, ou seja, não querem substituir os produtos existentes por outros bens.”

  1.   A revolução digital

“É preciso prepararmo-nos para a revolução digital que chega, sem o que o choque poderá ser muito violento, o que dará alegria e alento aos populistas. É claro que a destruição de emprego se vai acelerar, mesmo se ninguém faz verdadeiramente ideia a que velocidade acontecerá. É preciso que as pessoas que perdem os empregos se requalifiquem para encontrar um novo trabalho… As destruições de empregos existentes desde o século XIX são concomitantes com o progresso técnico, e desde essa época que se pensa que o trabalho vai desaparecer. É um erro porque novos empregos são sempre criados – até Keynes se enganou! Daí a necessidade de se requalificar. Mas a aceleração da destruição de empregos será forçosamente complicada para o nosso sistema social, correndo o risco de fazer crescer desigualdades e constrangendo parte da mão de obra a aceitar trabalhos menos bem remunerados.”

Todos estes temas e teses, que Jean Tirole explanou em recente entrevista à revista Le Point, estão desenvolvidos num livro, Economia do Bem Comum, que é um hino à razão, à clareza argumentativa e à informação fundamentada no pensamento económico, num livro que está bem para lá de “impressões”, opiniões ou crenças ideológicas.

Uma noite no Soho

Francis Bacon e Lucian Freud


Hoje não vou ao cinema. Iria, se me prometessem que lá estavam Francis Bacon e Lucian Freud. Digo-vos quem são. São dois tipos que se revoltaram contra o futuro. Haverá quem diga que são ou eram dois pintores e eu, com a arrogância dos ignorantes, insisto: eram dois tipos sentados pantagruelicamente no presente. Comiam o presente, embebedavam-no e fodiam-no como quem respira, desvairado. Jogavam nas corridas, andavam à porrada, mergulhavam em champagne e caía-lhes o corpo exausto nas cavalariças, ao lado dos cavalos que tanto amavam.

Se eram amantes? Se isso não meter sexo, eram. Bacon, descendente do filósofo homónimo e empirista, era homossexual dia e noite, com vincada preferência por homens mais velhos que lhe arriassem forte e feio. Freud, neto do seu psicanalítico avô, era mais novo treze anos e preferia afundar-se na primordial e perlada fonte feminina. Caroline Blackwood, mulher de Freud durante parte dos anos de vida louca com Bacon, dizia: “Jantei quase todas as noites do meu casamento com Bacon. Ah, e também almocei.”

Sim, gostavam de jogar nos cavalos, de se atirar sem rede para os bares do Soho e frequentar vigaristas, ladrões, putas, chulos e mais gente prendada, mas o cimento dessa vida gelatinosa era a paixão pela pintura figurativa que cultivaram como flor de preço.

Ora lembrem-se: aquele tempo era um tempo que prometia arte abstracta para toda a santa e imóvel eternidade. E Bacon, primeiro, e Freud com ele, sentaram-se no presente, com o passado entre as pernas, pintando retratos de pessoas, nus com chapéu, papas aos gritos, meninas com cão branco, a carcaça de um boi no talho. Tenho de dizer: estilhaçaram o raio do futuro. Ainda há dias, oito anos, que interessa, o “Três Estudos de Lucian Freud”, em que Bacon pintou o amigo num delicado equilíbrio de luz e ouro, atingiu o francamente estúpido recorde de 120 milhões de euros, o que, a meu ver, já é mesmo gozar e humilhar o futuro.

Na arte e nas noites do Soho, e ai de quem veja alguma diferença entre elas, o que os uniu foi um paradoxal optimismo niilista. Tinham os músculos carregados de energia, de uma força nietzschiana, amoralíssima. Queriam, por junto, luxo e luxúria: pintavam, comiam, bebiam, esmurravam e eram esmurrados como quem faz amor. E eu, hoje, já nem preciso de ir ao cinema.

Os três estudos: Lucien é o modelo, Francis foi o artista

Sei que vou morrer

A morta Ophelia, de Millais

Toda a gente sabe. Até um miúdo de 15 anos. Vamos supor que a mãe ou o pai lhe dizem isso, que vão morrer um dia destes. O miúdo ou a miúda, com um inflexão condescendente, logo dizem que sim, que todos vamos morrer um dia. E deixa lá isso, pai.

Mas isso, e deixa lá isso, pai, não é ainda saber. É só pura lógica. Saber sem saber.

Até que um dia se sabe.

Eu hoje sei. O que sei já não é isso, não é que vamos todos morrer um dia, está claro. O que agora eu sei é que eu mesmo – não os outros – vou morrer.

Eu não ia morrer. Morreram-me pai e mãe, o João Bénard, o Pedro Bandeira Freire e o Escudeiro, a Dulce e o Dinis Machado, a Mitas, o Alface, o meu Manel Cintra Ferreira, o Rui Santana Brito.

São muitas razões para eu ter começado a alimentar dúvidas e, ainda assim, eu não ia morrer. Dentro das minhas preocupações, planos, objectivos, nada, nenhum deles tropeçava na esquelética morte ceifeira.

Que filosofia me pôs com dono? Wittgenstein, nos “Últimos Escritos sobre a Filosofia da Psicologia”, disse: “Crê o cão que o seu dono está à porta, ou sabe-o?” O itálico é de Wittgenstein. Ou de algum dos seus alunos, a que uma inflexão da voz do filósofo causou um arrepio, arrepio que logo traduziu nesse terrível itálico.

Eu, sem nenhum arrepio, sei quem está à porta e ladro.

Uma lista conservadora

Dizem que os leitores portugueses não apreciam a ironia. Ou até que às vezes a ironia lhes passa ao lado. Podia dizer que não acredito, mas prefiro fazer a prova. Com uma lista conservadora.

Paulette Godard tisnada por Chaplin
  1. A boa moral

Abomino, pelo aborrecido que me palpita ser, a ideia de um mundo libertino. Defendo, por amor ao insidioso pecado, o modelo conservador que Jean Renoir recomendava aos seus financiadores: “É do interesse dos produtores manterem um adequado padrão moral, sem o que os filmes imorais deixarão de vender.”

  1. A apetecível costureira

Em “Man Hunt”, filme de Fritz Lang sobre um caçador inglês que queria matar Hitler, a heroína fazia o trotoir, se a expressão ainda diz alguma coisa. Os censores mostraram a Lang o cartão vermelho. “Tivemos de lhe pôr uma máquina de costura no quarto, para que parecesse uma modista e não uma puta”, queixou-se Fritz. Abençoados censores: a máquina de costura, pedal, tampo e agulhas, conferem ao jogo de ancas da personagem uma duplicidade erótica que jamais a santa puta alcançaria.

  1. Seda e jóias

Já andei de chinelos, calções rotos e flores no cabelo. Ainda hoje estremeço de vergonha a pensar nesses anos hippies – haja Deus que nunca desisti do banho diário. É verdade que Chaplin filmou a tão bonita Paulette Godard tisnada e pobre. Mas ela pisava como uma rainha, por jamais ter esquecido o conselho de De Mille: “Lembra-te que és uma estrela. Nunca atravesses a rua para despejar o lixo, a não ser que vás coberta de seda e jóias.”

  1. O bom gosto

É inevitável pecarmos. Mas nem todos reúnem os atractivos físicos ou os meios materiais para prevaricarem com variedade e ardor – hèlas! Resta-lhes a riqueza da imaginação. Homens e mulheres tiveram em Greta Garbo a amante de sonhos inconfessáveis. O jornalista Alistair Cooke redimiu-os desse pecado: “Ela dava-nos um consolo: já que a nossa imaginação tinha de pecar, ao menos que o fizesse com o mais irrepreensível bom gosto.

  1. A coerência moral

Há lições morais no imoralíssimo “Design for a Living”, de Lubitsch. Dois homens e uma mulher, lindos, cheios de humor, fazem um acordo de cavalheiros: sexo entre nós, não. Mas há uma noite em que ela, Miriam Hopkins, está sozinha com um deles, Gary Cooper. Acende-se-lhe um fogo nada fátuo e já se revolve, provocadora, no tão bom sofá: “Bem sei que temos um acordo de cavalheiros – sussurra ela –, mas devo confessar que não sou um cavalheiro.” Como compreendo a personagem de Miriam: a coerência moral talvez não seja um valor absoluto.

O cheiro da mulher que lê

Marilyn lê o Ulisses, de Joyce

Escreve-se sempre e só para que uma mulher leia. O livro, prolongamento da mão e justificação do olho, até pode ser uma cri­a­ção mas­cu­lina. Se for, é de justiça que se diga ser uma benigna e maravilhosa cri­a­ção mas­cu­lina. Foi, acrescente-se também, do tijolo à impres­são do senhor Guttenberg, cri­a­ção de conhe­ci­mento e prazer. Também de poder.

Nem sem­pre, como os cor­rec­tís­si­mos e admirá­veis soció­lo­gos dirão, a mulher pôde aceder ao livro, marca de poder mas­cu­lino. Será? Há desmentidos veementes, garanto eu: dois mil anos antes de Cristo, que só escreveu com um pauzinho na areia do deserto, Enheduana, princesa acádia, escreveu os “Hinos Sumérios do Templo”: neles falava com Inanna, a Senhora do Céu, confessando-se, queixando-se e implorando. E a grega Safo, nascida em Lesbos, escreveu 10 mil versos ainda antes de Platão ter escrito uma linha. Chegaram-nos menos de mil, temperados a desejo, risos, corpos e luxúria.

Enheduana e Safo estão longe de ser excepções. Poderia juntar mil nomes de mulheres com poder ou saber. Isabel I, rainha de Inglaterra, lia em inglês, francês, latim, e extasiava-se a traduzir os clássicos. Mas, esquecendo Cleópatra, Catarina da Rússia, Joana d’Arc, as manas Brontë, Jane Austen, Maria I de Inglaterra, mesmo se aceitarmos essa história lamurienta da mulher discriminada, vejamos como, de forma persistente, sub­til, a mulher se foi encostando e roçando pelas capas dou­ra­das ou de mar­fim, que encerravam manuscri­tos e ilumi­nu­ras, e nas suas folhas descreviam fantasias, sonhos, saber, segredos, tanto pensamento, tanto humaníssimo anseio do corpo. Alguém que conte essa glo­ri­osa his­tó­ria que eu não tenho tempo: bref, o que inte­ressa é que mulher come­çou a ler.

A mulher, a meu ver, não come­çou a ler para con­quis­tar poder, muito embora a lei­tura lhe tenha con­ce­dido mais seguro poder do que o poder que se diz que a cama lhe con­fe­riu. A mulher come­çou a ler por aven­tura e encantamento. E o livro, agra­de­cido, colou-se à mulher, de tal forma que o amor entre a mulher e o livro, de tão intenso, criou novos géne­ros literários. O desejo eró­tico saiu da alcova e veio deitar-se, ducal e prin­ci­pesco, car­nal e adúl­tero, na poe­sia pro­ven­çal ou nas nos­sas can­ti­gas de amigo e de amor. Daí ao romance foi uma vírgula.

As mãos da mulher que lê, os olhos da mulher que lê, cri­a­ram a lite­ra­tura. E volto ao princípio, tanto faz que seja um homem como uma mulher a escre­ver: escreve-se para que uma mulher leia.

Há uns três ou quatro anos, o escritor Ian Mc Ewan saiu à rua. Ian foi com o filho ofe­re­cer livros da sua autoria a todos esses langorosos seres humanos que se refas­te­la­vam à hora de almoço nos parques londri­nos. Não sei se, dos seus romances, oferecia “Estranha Sedução”, se “O Fardo do Amor”, ou “O Sonhador”. Em dez minu­tos, trinta pes­soas tinham acei­tado os ofe­re­ci­dos e beijados livros. Trinta mulhe­res – forço um boca­di­nho, tal­vez tenham sido 29.  E não sei se foi ao filho, se à Imprensa, Ian McEwan arris­cou um vati­cí­nio: “Se as mulheres deixarem de ler, esta­mos fritos.”

O que faz a lite­ra­tura, essa zona utó­pica de pra­zer e impo­der, são as mulhe­res que lêem. O homem que lê, com raras excep­ções, é um homem can­sado, que lê uti­li­ta­ri­a­mente. Só a mulher lê o livro pela sua mag­ní­fica e sublime inu­ti­li­dade, a mesma inu­ti­li­dade e deleite que se empresta e se recebe do amor. A mulher não lê um livro, a mulher lê um corpo. Sem­pre que vejo a mulher que lê, cheira-me. E cheira a prazer. Pou­cas coi­sas há tão aro­ma­ti­ca­mente inde­cen­tes como a mulher que lê.

Anna Karina esconde-se atrás de O Amante, de Duras

Publicado no Jornal de Negócios