
Escreve-se sempre e só para que uma mulher leia. O livro, prolongamento da mão e justificação do olho, até pode ser uma criação masculina. Se for, é de justiça que se diga ser uma benigna e maravilhosa criação masculina. Foi, acrescente-se também, do tijolo à impressão do senhor Guttenberg, criação de conhecimento e prazer. Também de poder.
Nem sempre, como os correctíssimos e admiráveis sociólogos dirão, a mulher pôde aceder ao livro, marca de poder masculino. Será? Há desmentidos veementes, garanto eu: dois mil anos antes de Cristo, que só escreveu com um pauzinho na areia do deserto, Enheduana, princesa acádia, escreveu os “Hinos Sumérios do Templo”: neles falava com Inanna, a Senhora do Céu, confessando-se, queixando-se e implorando. E a grega Safo, nascida em Lesbos, escreveu 10 mil versos ainda antes de Platão ter escrito uma linha. Chegaram-nos menos de mil, temperados a desejo, risos, corpos e luxúria.
Enheduana e Safo estão longe de ser excepções. Poderia juntar mil nomes de mulheres com poder ou saber. Isabel I, rainha de Inglaterra, lia em inglês, francês, latim, e extasiava-se a traduzir os clássicos. Mas, esquecendo Cleópatra, Catarina da Rússia, Joana d’Arc, as manas Brontë, Jane Austen, Maria I de Inglaterra, mesmo se aceitarmos essa história lamurienta da mulher discriminada, vejamos como, de forma persistente, subtil, a mulher se foi encostando e roçando pelas capas douradas ou de marfim, que encerravam manuscritos e iluminuras, e nas suas folhas descreviam fantasias, sonhos, saber, segredos, tanto pensamento, tanto humaníssimo anseio do corpo. Alguém que conte essa gloriosa história que eu não tenho tempo: bref, o que interessa é que mulher começou a ler.
A mulher, a meu ver, não começou a ler para conquistar poder, muito embora a leitura lhe tenha concedido mais seguro poder do que o poder que se diz que a cama lhe conferiu. A mulher começou a ler por aventura e encantamento. E o livro, agradecido, colou-se à mulher, de tal forma que o amor entre a mulher e o livro, de tão intenso, criou novos géneros literários. O desejo erótico saiu da alcova e veio deitar-se, ducal e principesco, carnal e adúltero, na poesia provençal ou nas nossas cantigas de amigo e de amor. Daí ao romance foi uma vírgula.
As mãos da mulher que lê, os olhos da mulher que lê, criaram a literatura. E volto ao princípio, tanto faz que seja um homem como uma mulher a escrever: escreve-se para que uma mulher leia.
Há uns três ou quatro anos, o escritor Ian Mc Ewan saiu à rua. Ian foi com o filho oferecer livros da sua autoria a todos esses langorosos seres humanos que se refastelavam à hora de almoço nos parques londrinos. Não sei se, dos seus romances, oferecia “Estranha Sedução”, se “O Fardo do Amor”, ou “O Sonhador”. Em dez minutos, trinta pessoas tinham aceitado os oferecidos e beijados livros. Trinta mulheres – forço um bocadinho, talvez tenham sido 29. E não sei se foi ao filho, se à Imprensa, Ian McEwan arriscou um vaticínio: “Se as mulheres deixarem de ler, estamos fritos.”
O que faz a literatura, essa zona utópica de prazer e impoder, são as mulheres que lêem. O homem que lê, com raras excepções, é um homem cansado, que lê utilitariamente. Só a mulher lê o livro pela sua magnífica e sublime inutilidade, a mesma inutilidade e deleite que se empresta e se recebe do amor. A mulher não lê um livro, a mulher lê um corpo. Sempre que vejo a mulher que lê, cheira-me. E cheira a prazer. Poucas coisas há tão aromaticamente indecentes como a mulher que lê.

Publicado no Jornal de Negócios
[…] O cheiro da mulher que lê […]
LikeLike