O intenso odor a falso

Noite estrelada, de Van Gogh

O que eu gostava era de ter vindo do cabaret, como vinha Otto Wac­ker. Chegou com a con­fi­ança trans­bor­dante que, nes­ses anos de Wei­mar, ema­nava da música, do tea­tro, do cinema ale­mães.

Em 1925, Otto dei­xou o caba­ret e estarreceu as artes, expondo 33 novos quadros de Van Gogh. Genuínos, disseram os peritos. Otto usou o talento de palco e, naquela sot­to­voce que aproxima a boca de qualquer ouvido, con­tou que eram de um aris­to­crata cativo na nefanda URSS. Man­ter o ano­ni­mato desse herói, que reti­rara às bár­ba­ras gar­ras comu­nis­tas a grande pin­tura do Oci­dente, era um dever moral. Soubesse-se quem o nobre era e os ver­me­lhos sangravam-lhe a famí­lia branca.

Berlim não dormia de olhos nos novos Van Gogh. Pintara-os, sabe-se hoje, o irmão de Otto, talen­toso e dis­cre­to amante de bastidores e sombras.

A gale­ria de Paul Cas­si­rer pre­pa­rava a expo­si­ção. Baart de la Faille, o perito, ulti­mava o catá­logo. Na gale­ria já esta­vam deze­nas das telas de Wac­ker e, em aberto, o espaço para as últi­mas qua­tro. Aí é que foi mesmo o diabo. Mal che­ga­ram, os peri­tos torceram-se todos. Que intenso odor a falso!

Num fós­foro, levaram Otto a jul­ga­mento – esqueçam lá isso dos mega-processos. Testemunhou o sobri­nho de Van Gogh: nenhum russo com­prara qua­dros aos her­dei­ros, jurou – e a Van Gogh só um cliente, sabe-se lá se por engano, comprou um em vida. Escal­da­dos, porém resi­li­en­tes, os com­pra­do­res da galeria clamavam que os qua­dros eram ver­da­dei­ros e Wac­ker um bene­mé­rito das artes.

De la Faille, o perito, declarou então falsos os 33 novos Van Gogh. Depois, no jul­ga­mento, atestou que, dos ver­da­dei­ros passados a fal­sos, cinco dos fal­sos eram ver­da­dei­ros. Outro perito afir­mou serem nove autên­ti­cos. Um terceiro garantiu que catorze eram mesmo Van Goghs, embora pin­ta­dos num raro instante de desinspiração.

Científico e com raio-X, Kurt Wehlte pro­vou que as téc­ni­cas e os pig­men­tos não eram do tempo de Van Gogh. Doce ironia, a tela de referência para a perí­cia cien­tí­fica seria, nos anos 70, con­si­de­rada falsa.

Deixem-me resumir: a jus­tiça, além de cega, é destituída de sen­tido de humor e Otto foi con­de­nado a ano e meio de pri­são. Vá lá, gozou o final de vida nos celestiais prazeres de Berlim Leste.

Eis um sinal de menoridade do cinema: que pena não se poderem forjar dois falsos Hitchcocks dos anos 50; um Ford tardio com um jovem Clint Eastwood, que só agora tivesse sido descoberto; a desconhecida adaptação mexicana que Buñuel tivesse arrancado à “História de Juliette ou as Prosperidades do Vício”, do Marquês de Sade.

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