Um irretocável desejo de Primavera

Primavera ou será já Verão?

A Primavera é como a primeira luz que rompe a escuridão da sala de cinema. Enche-nos da pior das volúpias, a volúpia infantil. Às 11 da manhã já o Chiado, já a Rua de Santa Catarina lavam os olhos nas nuas e frescas pernas das raparigas (ah, e a dos rapazes também), nos decotes que deixam fugir a redonda carne em direcção ao sol. É Primavera e decoto-me eu também: segue-se a cândida exposição das coisas de que, diletante, gosto muito e sem vergonha.

Gosto:

  1. Da primeira saia que o cinema levantou para, mostrando a perna, parar um carro e conseguir uma boleia. Era a perna de Claudette Colbert em “It Happened One Night”.
  1. Do teu decote.
  1. Da dúbia adolescência da perna de Evvie, entalada entre o desejo de um branco e o desejo de um negro, em “La Joven”, o filme americano de Luis Buñuel.
  1. De acácias e jacarandás, do cheiro do jasmim finalmente em flor.
  1. Do fumo de uma sórdida esquadra de polícia de “Basic Instinct”, em que as cruzadas e descruzadas pernas de Sharon Stone são o pêndulo que nos troca os olhos.
  1. De imaginar a espavorida fuga dos inocentes anjinhos nos momentos de volúpia de Deus.
  1. Da alva pureza dos shorts de Jean Seberg em “Bonjour Tristesse” e da indizível convulsão que, querendo desabrochar, neles se esconde.
  1. De um clássico dry martini ao fim de tarde, no Shutters on the Beach, em Santa Monica.
  1. Da miniatura de um Simca vermelho descapotável com que Curd Jürgens faz Brigitte Bardot içar do chão o simétrico e irretocável rabo que dourava ao sol.
  1. De golos de bandeira ao domingo, numa tarde de sol.
  1. Do vestido às riscas de Anna Karina a fazer pendant com os estofos de couro vermelhos e creme do descapotável em que foge com Pierrot. Ele, louco. Ela com a boca cheia de liberdade e de Rimbaud.
  1. De risos e beijos.
  1. Dos olhares de quatro mulheres para o tronco nu de William Holden que, em “Picnic”, de Joshua Logan, queima o lixo no quintal, “naked as an Indian”. Olhares que mordem, olhares de mulheres bonitas cansadas de serem apenas olhadas, que foi o que, quando vi o filme, ouvi Kim Novak dizer.
  1. Sim, gosto das pernas das raparigas quando chega a Primavera.
La Joven, as alvas pernas do desejo

2 thoughts on “Um irretocável desejo de Primavera”

  1. Acho que também gosto das pernas das raparigas; aos decotes não ligo grande coisa; gosto da vozinha de Marylin Monroe em todos os filmes e do contraponto das imensas pernas encaloradas que encontram a frescura miraculosa que lhes vem daquela abençoada grelha no chão; aprecio a pele em geral, julgo mesmo que ela se compraz na nudez ainda que seja só de manga arregaçada; gosto de sandálias e dedos de pés a espreitarem os dias e as noites, das ondas doces da minha praia de dunas suaves e areia macia; imagino que tenho um carro com tecto de abrir e viajo descalça e com os pés de fora, bem lá no alto, embora o mais que tenha conseguido seja levá-los ao pára brisas e reconheça que as minhas pernas mal davam para uma espreitadela de pés, (certamente, iam parecer umas orelhas de coelho). Enfim, o tempo quente sofre de leveza incomparável e nunca me existe tanto como antes de existir.

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