
A Primavera é como a primeira luz que rompe a escuridão da sala de cinema. Enche-nos da pior das volúpias, a volúpia infantil. Às 11 da manhã já o Chiado, já a Rua de Santa Catarina lavam os olhos nas nuas e frescas pernas das raparigas (ah, e a dos rapazes também), nos decotes que deixam fugir a redonda carne em direcção ao sol. É Primavera e decoto-me eu também: segue-se a cândida exposição das coisas de que, diletante, gosto muito e sem vergonha.
Gosto:
- Da primeira saia que o cinema levantou para, mostrando a perna, parar um carro e conseguir uma boleia. Era a perna de Claudette Colbert em “It Happened One Night”.
- Do teu decote.
- Da dúbia adolescência da perna de Evvie, entalada entre o desejo de um branco e o desejo de um negro, em “La Joven”, o filme americano de Luis Buñuel.
- De acácias e jacarandás, do cheiro do jasmim finalmente em flor.
- Do fumo de uma sórdida esquadra de polícia de “Basic Instinct”, em que as cruzadas e descruzadas pernas de Sharon Stone são o pêndulo que nos troca os olhos.
- De imaginar a espavorida fuga dos inocentes anjinhos nos momentos de volúpia de Deus.
- Da alva pureza dos shorts de Jean Seberg em “Bonjour Tristesse” e da indizível convulsão que, querendo desabrochar, neles se esconde.
- De um clássico dry martini ao fim de tarde, no Shutters on the Beach, em Santa Monica.
- Da miniatura de um Simca vermelho descapotável com que Curd Jürgens faz Brigitte Bardot içar do chão o simétrico e irretocável rabo que dourava ao sol.
- De golos de bandeira ao domingo, numa tarde de sol.
- Do vestido às riscas de Anna Karina a fazer pendant com os estofos de couro vermelhos e creme do descapotável em que foge com Pierrot. Ele, louco. Ela com a boca cheia de liberdade e de Rimbaud.
- De risos e beijos.
- Dos olhares de quatro mulheres para o tronco nu de William Holden que, em “Picnic”, de Joshua Logan, queima o lixo no quintal, “naked as an Indian”. Olhares que mordem, olhares de mulheres bonitas cansadas de serem apenas olhadas, que foi o que, quando vi o filme, ouvi Kim Novak dizer.
- Sim, gosto das pernas das raparigas quando chega a Primavera.

Acho que também gosto das pernas das raparigas; aos decotes não ligo grande coisa; gosto da vozinha de Marylin Monroe em todos os filmes e do contraponto das imensas pernas encaloradas que encontram a frescura miraculosa que lhes vem daquela abençoada grelha no chão; aprecio a pele em geral, julgo mesmo que ela se compraz na nudez ainda que seja só de manga arregaçada; gosto de sandálias e dedos de pés a espreitarem os dias e as noites, das ondas doces da minha praia de dunas suaves e areia macia; imagino que tenho um carro com tecto de abrir e viajo descalça e com os pés de fora, bem lá no alto, embora o mais que tenha conseguido seja levá-los ao pára brisas e reconheça que as minhas pernas mal davam para uma espreitadela de pés, (certamente, iam parecer umas orelhas de coelho). Enfim, o tempo quente sofre de leveza incomparável e nunca me existe tanto como antes de existir.
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Os pés de fora num descapotável num dia de Verão é um bom programa.
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