Admirável mundo novo

Jackson Pollock, pai da pulverização

E aqui fica, fora de ordem, sem respeito pela cronologia, outra Bica Curta que bebi em tempos no CM. Ainda me parece pertinente e ainda não encontrei a resposta?

O mundo é cada vez mais centrífugo. Tudo foge do centro. A informação pulverizou-se, disseminada por inenarráveis e abomináveis focos nas redes sociais. As artes explodiram em estilhaços, filmes feitos em telemóveis, livros digitais em edição de autor aos milhares na Amazon, música TikTok viral que nenhuma regra estética comanda. Os países foram fracturados e baleados por discursos identitários, cada clã, rácico, regional ou religioso, rasgando a sua parte da manta. A economia virtualiza-se: da empresa passou para milhares de casas, em teletrabalho.

Pode a democracia resistir a tanto descentramento? Que eco-sistema a vai substituir?

Ao assalto, meus bravos

os irmãos James

Morreriam à fome os economistas se só pudessem comer por cada previsão que acertam. Agora, para Portugal, os mais lúcidos prevêem um futuro que nem Hamlet, príncipe da Dinamarca, desejou ao tio, nos cinco actos da sua torturada existência. Não serei eu, sentado no vasto trono da minha ignorância económica, a negar-lhes razão: a quebra do PIB, que este triste trimestre de abertura de 2021 acentuará, reclama vingança shakespeariana; o grávido peso das moratórias encerra mais frustrados desejos do que os de Ophelia – como ela, acabarão famílias e empresas na loucura e no afogamento. Portugal está condenado.

Eis onde as profecias luciferinas dos economistas falham: na imprevisibilidade do humano. Indiferentes à clemência ou inclemência das adivinhações especializadas, os humanos comem, beijam-se, dão na cama, e tantas vezes fora dela, entrada e saída aos seus mais rijos impulsos, trabalham até, compram e vendem. Tocados por estranhas musas, os humanos criam as micro e pequenas empresas que encantam o lúbrico olhar anti-económico de Jerónimo de Sousa e dos seus jovens sete anões, ou arrancam para start-ups depois de desenjoarem do Bloco de Esquerda. E já me calo sobre o improvável investimento estrangeiro, agora que Angola secou e o fluxo chinês 5G e de alto débito é tão mal visto e censurado por Biden, como o era pelo inefável Trump.

É unânime: o factor humano deprime e exalta. Um simples peidinho pode encharcar de aroma uma sala? Assim, o factor humano pode atulhar de euforia a mais raquítica economia. Mesmo o mais empedernido economista vive na nostalgia do factor humano. Harvard, o MIT, Stanford choram lágrimas enternecidas pelo doce factor humano. E eu, de xi-coração ao factor humano, quero acrescentar outras duas vias dramáticas de salvação de Portugal: o milagre e a inspiração de Jesse e Frank James.

O milagre, o solitário e selectivo milagre, é uma vocação portuguesa. De Lourdes a La Salette ou Campinas, a Virgem Maria sacudiu rosas do seu manto em vários lugares, mas é implícita, mesmo se não declarada, por óbvia sensibilidade político-diplomática, a sua preferência por Fátima, por pastorinhos e por portugueses. Faço notar que neste século XXI a Virgem, católica, ainda não apareceu em lugar nenhum, descontando inopinada visita ao Egipto, numa aparição a milhares de ortodoxos, num claro endosso da Primavera árabe.

E minto. Talvez a Virgem tenha aparecido a Mário Centeno, o que explica que ao milagre das aparições do século passado se tenha sucedido, neste nosso tempo cruel, o milagre das cativações. Onde os cépticos, ateus incréus e quejandos viam a autocrática solidão de uma austeridade de gabinete, de joelhos no chão, mãos postas e olhos em bico, jovens do BE e novos estalinistas do PêCê viam uma quase heteronímia pessoana: a austeridade convertida em cativação, Mário Centeno feito Álvaro de Campos e engenheiro naval, a cantar-nos, “à dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas” a Ode Triunfal.

E basta, sejamos proactivos: assaltemos os bancos. Lembro os irmãos James, Jesse e Frank. Revoltados com a hipoteca bancária sobre a quinta da mãe, converteram o assalto ao banco num resgate político, antecipando, de mais de um século, a revolta contra o capitalismo financeiro. Como dois irmãos, Costa e Rio talvez devam assaltar o BCE e distribuir, quais Robin dos Bosques, o dinheiro pelos pobres, ou seja, pelos nossos bancos exauridos. E tudo isto, como bem nos ensinam os economistas do começo desta crónica, antes que os bancos nos assaltem a nós.

Publicado no Jornal de Negócios

Para o meu neto

Deve ser no final de Maio ou começo de Junho. É inapelável. Serei avô. Numa Bica Curta, no CM, fiz, como quem reza, os meus votos.

Que nasça para este céu, estas nuvens em fio

Vou ser avô. Faltam 4 meses. Eis o que quero para esse neto que há-de vir.

Que nasça num país com a coragem de enfrentar os seus dramas, não escondendo o vendaval de mortos que renunciaram aos hospitais, assombrados pela onda de pavor do pregão diário dos números da covid. Que encontre um país limpo, decidido a não repetir a barbárie que matou o ucraniano Ihor, ou os reles golpes das vacinas. Que nasça num país que não proíba o ensino e que não cerceie, por bloqueio ideológico, a plenitude da iniciativa privada e pública. Que nasça, intrépido, num país em que a venda do livro, fonte de emoção e inteligência, não esteja proibida.

União dos corpos

Quando escrevi esta Bica Curta, para o CM, já 2020 tinha saltado a barreira de 2020 e Portugal entrava na voragem que foi Janeiro de 2021. Não me parece mal relembrar esta micro-crónica sobre as cinzas do desejo.

Qui trop embrasse mal étreint, Pierre Narcisse Guérin – século XIX

O sexo parece fácil, as estatísticas do sexo é que são sempre difíceis. Neste 2020 de covid e distância, 2% dos homens e 3% das mulheres clamam ter tido sexo diário. Mas, diz um estudo, há 9% dos homens e 14 % das mulheres que choram ter reduzido a zero a feliz união dos corpos. Em compensação, o site pornográfico Pornhub subiu em 25 % a sua audiência. Como o livro, passará o sexo a ser digital? E-fuck?

Seria a derrota da vida, se o medo e a culpa nos roubassem o amor e o pecado. O que é a vida sem beijos roubados, sem sexo transgressor, sem o confiante orgasmo familiar? O omnipresente e ubíquo sexo é o céu celebrado na terra.

Uma fractura artificial

Não podia estar mais de acordo com António Costa. Tocou, e de forma muito clara, num ponto a que sou sensível e que começa a ganhar uma dimensão inquietante. Numa entrevista ao Público, o primeiro-ministro disse: «Acho que há dois fenómenos muito perigosos que estão a surgir entre nós e que têm o efeito de se emularem um ao outro. Um é uma revisão auto-flageladora da nossa História e outro é a liberação de reacções racistas ou xenófobas.»

E acrescentou: «Creio que se está a abrir de uma forma artificial uma fractura perigosa para a nossa identidade nacional, para a nossa relação com o mundo.»

Mais ainda, e para dissipar dúvidas, rematou: «E nem André Ventura nem Mamadou Ba representam aquilo que é o sentimento da generalidade do país. Felizmente.»

Não é vulgar, numa matéria tão sensível, ter um primeiro-ministro a traçar com clareza meridiana a linha que separa as causas justas e razoáveis do delírio, não poupando até um «demolidor implacável» do seu partido. Daqui a duas semanas publico um livro sobre o tema, uma sátira admirável de um autor inglês. Hoje, aplaudo a coragem de Costa.

O vale era verde

Já há algum tempo que não trazia aqui uma Bica Curta, título da minha micro-crónica que o CM publica à 3.ª, 4.ª e 5.ª. Esta é nostálgica e é, como se costuma dizer, sobre um dos meus filmes de cabeceira.

Há 79 anos, ‘How Green Was My Valley’, de John Ford, ganhou o Oscar de melhor filme. É o filme que mais bate no meu coração. Leva-nos a casa de uma família numerosa: São mineiros.

A casa, a rua, a igreja, os habitantes do vale, vistos pelos olhos do filho mais novo, são o retrato da harmonia do mundo. Os olhos de criança dão-nos a ver a calorosa ternura familiar, a doçura da mãe, a irrupção do amor da irmã pelo novo pregador.

Vem a crise e os mineiros entram em greve. Rompe-se a harmonia e fica só a nostalgia de um tempo sem tempo, a nostalgia da honra, de pai e mãe. Nossa nostalgia também: como era verde o vale da nossa infância.

O Homem da Câmara de Filmar

Chelovek S Kinoapparatom / 1929
O Homem da Câmara de Filmar
Um filme de Dziga Vertov

Comecei a escrever este texto no Ciclo de Cinema Soviético, de que fui o programador e o organizador do catálogo (com o meu velho avilo Luís Miguel Castro), a meio dos anos 80. E este texto é o exemplo acabado de um work in progress. Sempre que a Cinemateca exibe o filme de Vertov e me pede para rever o texto, mudo uma palavra ou uma frase, acrescento-lhe uma ideia. Não sei, aliás, se na sua forma actual esta prosa ainda guarda alguma frase completa do original. É um texto que cresceu comigo: o problema é que eu estou cada vez mais velho e este texto cada vez mais novo.

Não sei se toda a arte tem de ser anti-democrática. Mas a vocação totalitária do modernismo é indisfarçável. O modernismo sonha com amanhãs que cantam ou noites de cristais. Desse caldo cultural nasceu O Homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov, estreado na URSS, em 1929. A Europa vivia a turbulência artística de vários “ismos”: na literatura, o “Manifesto Futurista”, do fascista Marinetti, é de 1909; na pintura, o cubismo nascera em 1906, quando Picasso pintou “Les Demoiselles d’Avignon”. Os anos 20 prolongam essa epilepsia estética: em 1924 surge o “Manifesto Surrealista”, de Breton; a Bauhaus, fundada pelo arquitecto Walter Gropius, explode em 1919.

O filme de Vertov coincide com a arrebatada defesa de “formas puras” do suprematista Malevitch que recusa a pintura, “esse preconceito do passado”. No filme de Vertov estão as impressões digitais que nele deixaram o teatro do alemão Meyerhold e os futuristas russos, tutelados pelo comunista Maiakovski. É bom que se diga, Vertov começou pela literatura: escreveu romances fantásticos e poemas satíricos. A seguir, montou um laboratório do ouvido, para registo de sons e de montagens músico-literárias. Fotografou sons. E chega enfim ao cinema, nas actualidades do Kino Komitet, descobrindo o potencial da montagem, herdeiro das fotomontagens de Rodchenko e dos pintores construtivistas. De 1918 a 1922, Vertov dedicou-se à montagem de documentos filmados com o objectivo de “ver e mostrar o mundo em nome da revolução mundial do proletariado”. Que não tenha havido mais do que três proletários a entusiasmarem-se com o cometimento é, claro, coisa de somenos.

Já a nomenklatura da revolução russa gostou. Em 1922, a Goskino contrata-o para a realização de uma série de filmes, os célebres Kino-Pravda. Vertov e camaradas adoptam o nome de Kinoki, definindo em manifesto as linhas teóricas de que Vertov é o expoente. O que é que se lê no Manifesto? Isto, por exemplo: “Os velhos filmes romanceados, teatralizados e outros têm lepra” ou “o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente”. Vertov proclamava a expulsão dos intrusos que habitavam o cinema, ou seja “a música, a literatura e o teatro”. E se querem saber que cinema queria Vertov, ouçam-no: “O cinema dos Kinoks é a arte de organizar os movimentos necessários das coisas no espaço, graças à utilização de um conjunto artístico rítmico conforme as propriedades do material e ao ritmo interior de cada coisa”. Ou seja, Vertov propõe para o cinema o mesmo triunfo das “formas puras” que Malevitch defendia para a pintura.

Às massas, Vertov anunciou assim o seu filme: “Faz-se notar aos espectadores que o presente filme é Uma Experiência de Transposição Cinematográfica de Fenómenos Visíveis, Sem Intertítulos, Sem Cenários, Sem Estúdio. Este trabalho experimental prossegue a criação de uma linguagem cinematográfica absoluta, autenticamente internacional, fundada na total separação com a linguagem do teatro e da literatura”.

Vertov não mente. O filme leva ao extremo processos que já usara, seja os intertítulos que tratara com originalidade nos Kino-Pravda, seja a forma como relaciona cinema e vida. Em O Homem da Câmara de Filmar, Vertov queria cumprir um processo dialético e revolucionário. O material do filme teria de combinar três categorias: 1º “a vida tal como ela é”, no écrã; 2º a vida tal como ela é” na película; 3º “a vida tal como ela é” em si. Estas categorias da vida desenham-se nos temas paralelos propostos pelo filme, o tema do operador, o tema do montador e o tema da vida das cidades que filma.

Verdadeira antologia de trucagens, Vertov faz do filme um manifesto sobre o movimento: retarda e acelera no interior de cada plano; o homem da câmara e a cidade movem-se incessantemente, movimento que não impede o perfeccionismo dos ângulos de tomada de vista, que só por si tornaria equívoca a referência a qualquer peregrino repentismo.

Recusando actores, cenários e iluminação, Vertov foge à norma e converte-se no contraponto de Eisenstein. Depressa a vida lhe passa a correr mal. Em 1926, a Goskino despede-o pela anormalidade da sua prática. Já antes o público lhe fugira (se é que alguma vez o teve). E a sua teorização comunista depara-se com uma dificuldade: como raio sustentar juntos das ignaras massas que aquele sim, é que era um “filme comunista” destinado a “apoiar o plano quinquenal”?

Vertov leva ao extremo o “fetichismo da máquina”, e é escandaloso esse morceau de bravoure final, com a câmara sozinha, a dispensar o trabalho do operador, como se ali estivesse, utópica (e capitalista?), a visão de um mundo em que as máquinas determinassem a sua própria dinâmica. O comunismo reaccionário não o compreendeu. Há por aí algum revolucionário capitalismo que o redima?

E aqui está o filme inteiro pronto a discordar em tudo de mim.

Ressuscita ele e ressuscitaremos todos

Este é um post para ouvir. Todos os dias, a caminho da Páscoa.
Primeiro, uma canónica versão do coro final (“Descansem em paz, pernas abençoadas”) da Paixão Segundo São João, de Bach.
Depois, (“Bombé”) o encontro de Bach com o encantatório bater de palmas de um ritual fúnebre africano – fusão miraculosa, meu Deus Nosso Senhor.

Deposizione di Cristo, Caravaggio

Descansa sim, descansa esses teus ossos peripatéticos. Fartaste de andar. Da Galileia a Jerusalém, bodas em Canaã e jejum no deserto. Em bem-aventurado passeio à mais Alta Montanha até sobre as águas caminhaste. Descansa-me esses ossos, a carne e os músculos. Deita-te na cova húmida, fecha os olhos e fala. E ensina-me também a descansar. Fecha na minha cabeça as portas do inferno e ensina-me o amarelo, o dourado caminho para o paraíso.

Vais dizer-me que são teus os anjos da ressurreição, que não choremos nós por ti, por que já basta chorares tu por nós. Mas amanhã, bem sei, voltarás a partir. Deixas-nos, deixas-me, e hás-de dizer outra vez que tens na tua casa grande, a de eterna luz, um quarto e uma cama à nossa espera. Com lençóis de uma absoluta alegria, júbilo dos nossos olhos, feroz volúpia dos nossos ouvidos. Não dizes, mas sabemos: é tão fácil chegar lá. Basta que nos deixemos crucificar.

E agora ouçam o Monteverdi Choir
e os English Baroque Soloists, dirigidos por John Eliot Gardiner

E  abram agora os ouvidos a esta fusão concebida por Pierre Akendengué
e Hughes de Coursom no disco Lambarena, com músicos
europeus e do Gabão.
Vale a pena deixarmo-nos crucificar.

Será isto apropriação cultural? De quem?