Homenagem a dois homens – dois senhores – que enriqueceram a minha vida
Já houve um mundo perfeito, um tempo em que a palavra “senhor” não saíra ainda do dicionário. E era impossível, na Cinemateca de João Bénard, pensarmos neles sem lhes juntar a então respeitável qualificação: o senhor Alberto e o senhor Gil. Eram mais unha com carne do que Jack Lemmon e Walter Matthau. Lemmon e Matthau dançaram juntos a rumba, foram jornalistas siameses em “The Front Page”, mas “buddy, buddy” foram, nas suas excelsas vidas, o senhor Alberto e o Senhor Gil.
O senhor Gil era o lisboeta genuíno, vindo da escola da função pública da outra senhora, ardiloso, nervo capaz de inventar uma finta em menos relva do que o estonteante Garrincha. O João Bénard herdou-o como motorista. Para a eternidade.
O senhor Alberto tinha vindo de Angola. Descendente da realeza de Cabinda que assinou com Portugal o incumprido tratado de Simulambuco, expressava-se num fino português de Garrett, com toques de Luandino, e era a calma de Deus descida à terra.
O senhor Gil era motorista, o senhor Alberto, responsável pela manutenção do palacete e da sala de cinema. Evocá-los é evocar a nostalgia de um admirável velho mundo, uma nostalgia de “How Green Was My Valley”, se bem se lembram. O senhor Gil e o senhor Alberto amavam-se porque partilhavam a mesma forma hábil e desprendida, activa e preguiçosa, de resolver problemas e viver a vida. Faziam tudo o que era preciso fazer, mas mal podiam, não faziam nada, o que gozavam, sem culpas ou hesitação.
Um ocioso parêntesis para lembrar a pureza em forma de telefonista, a dona Rita, gordinha e angolana também, que nos tratava por meu anjo, às vezes um “ó filhinho”, minha flor – assédio de que os descendentes dela terão um dia de pedir desculpa. A quem telefonava respondia, “Telefona mais tarde. Esses meninos são vadios, nunca estão no lugar”, para depois nos dizer: “Filhinho, já te salvei de um que te queria chatear.”
E volto a Lemmon e a Matthau, ou seja ao senhor Alberto e ao senhor Gil. Se João Bénard foi o Billy Wilder dessa risonha Cinemateca, também a eles o deve. O amor que os dois tinham à casa e ao João era um amor lânguido, em que a dedicação não excluía o deleite de uma certa calacice, mândria ou fleuma. Eram “senhores”, sublimes sobreviventes de um mundo pré-competitivo, que não mais voltará. Eram o cinema transformado em vida.
Eu ia falar de um pénis. Mas omito por enquanto a indelicadeza e falo do ser humano. Não basta dizer ao ser humano, «ama o teu próximo como a ti mesmo» ou ainda «honra pai e mãe». A tentação é grande e o diabo, ou o Pai da Mentira, como lhe chamava Nelson Rodrigues, ele próprio pai ou padrasto de todos os cronistas, sussurra à orelha do ser humano e morde-lhe suficientemente o excitável lóbulo.
Que outra coisa, senão o sopro do Pai da Mentira, poderia explicar o desatino de Saeed Hasmi e Jan Yadgari, donos da Pizzeria Italiana, em Roath, Cardiff, 2008, ao polvilharem o seu famoso bolo de chocolate com fezes humanas? Vinha uma multidão de noctívagos, pediam café, brandy e sempre uma fatia de bolo, e vejam ou cheirem o que Hasmi e Yadgari lhes punham no prato!
O ultraje daqueles dois celerados não melindra a glória da gastronomia, as suas sinfonias gourmet, os rondós do palato. A glória da gastronomia imita a glória da vida. Ao longo de longos mil anos, a vida foi esmurrada. Esfaqueada com sangramento abundante. Manda a razoabilidade, o funcionário público, o notário e o médico legista que a vida estivesse já no túmulo: todos os dias, porém, a vida sai do imprestável cemitério e exulta, serpentina, polvilhando o mundo de alegria, se ouso usar essa palavra anacrónica.
Na seca inutilidade da sua sabedoria o filósofo Theodor W. Adorno abriu um abismo: «Não pode haver poesia depois de Auschwitz.» O génio de Adorno é um deserto inabitável e o ser humano prefere-lhe o que Adorno diria ser o insuportável oásis. Herberto ou Larkin, Drummond, Sylvia Plath ou Borges são os oásis que desmentem o deserto de Adorno com a impronunciável palavra poesia.
Mas já me volto a sentar à mesa. Nem sei se foi em Berlim se em Munique, 1983, ainda essa Alemanha era só Ocidental, um homem comprou uma sanduíche, uma Mettbrötchen, creio. Agoniando-se, o indesmentível Times, conta-nos que, a acompanhar a carne de porco picada, salsa e cebola, vinha um polegar humano. Em 2005, encontrou-se outro dedo num frasco de mostarda – seria do mesmo homem? – e uma mulher de Los Angeles, em 1992, tropeçou num preservativo ao cortar um pão de forma. Pela mesma razão, por deparar no meio da apetitosa tarte da sobremesa com a camisinha que se diz ser de Vénus, Dalvin Stokes processou em 15 mil dólares a cafetaria Morrison’s de Winter Haven, na Florida. Comia com a mulher e o profiláctico dispositivo assombrou-lhe o prazer da mesa: ele jura que o inóspito intruso tinha o inequívoco ar de ter cumprido a sua missão protectora.
E eis o que os nosso radicais, os fascistas e os anti-fascistas, não compreendem: os incidentes não anulam a essência. Aí está o mistério e júbilo: não desistiremos nunca da mesa, do deleite de cheiros e sabores, por mais lúgubres episódios que também dela se contem. Ouvimos e logo estamos prontos para voltar à velha mesa e trinchar o peru ou servir as iscas com elas, mesmo sabendo que, em 2006, em Estocolmo, espalhava uma formosa e segura Madeleine o ketch-up nas sanduíches pelas quais marido e filhos já estavam à espera, num salivado nham-nham, quando do frasco se ergue, exagero meu, um pénis. De tamanho médio, isso sim, asseguram marido e mulher, Simon e Madeleine. Mudaram de marca de ketch-up, claro.
Os nossos extremistas sai-lhes à mão o percalço de um pénis de tamanho médio e derramam-se num clamor de quinto dos infernos: cospem o dilúvio, arrasam estátuas, exigem deportações, armam inquisições, deitam fora a água do banho da vida e vai junta a vida e o pénis dela.
Luxo é regressar ao paladar da infância. Há quanto tempo não tocava numa fatia de pão com manteiga? Mas, hoje, a infância e adolescência puseram-se a gritar por mim e não tive remédio. Fui ali ao lado, como se fosse à mercearia do Sô Manel, na rua Alberto Correio, em Luanda, e escolhi um pequeno pão de centeio. Só me faltava a manteiga. O mostruário era estiloso e cheio de banga. Escolhi a coisinha mais foleira: uma redonda caixa de plástico, transparente. Tinha a vantagem de deixar ver a manteiga dourada.
Num passo de dança já estava em casa. Cortei uma fatia de pão, e como nada lá vai sem preliminares, dei-lhe um bom aquecimento na torradeira. Passei-lhe a manteiga: já se sabe que o calor dilata e funde os corpos. Em brasa, mordi e saboreei. Tinha na boca a infância. Com uma imprevista melhoria, a de se lhe ter juntado a melhor manteiga do mundo. É dos Açores, da ilha das flores, feita pela cooperativa local. O nome é tão fatela como a embalagem, Uniflores. Mas a manteiga é imbatível. Bem sei que não indo já para novo, estou há muito a ir para velho, mas que prazer: de fechar os olhos e inspirar fundo, fundíssimo.
Exagero, ao dizer que esta manteiga Uniflores é a melhor do mundo? Logo vos direi, assim prove a Marinhas, manteiga que em Esposende ainda é feita artesanalmente e que alguém me disse ser de outro mundo.
Já sabem como eu sou influenciável. Basta a Guerra e Paz editores falar para eu ser logo eco.
A História está na moda! Para ser revisitada, revista ou até cancelada. Há quem queira partir estátuas, há quem “racize” ou “identitarize”, se nos permitem estes neologismos, cada capítulo do passado e há quem queira impor leituras de pensamento único.
Por todas estas razões, criámos a nossa Feira do Livro da História de Portugal. São dezasseis livros pluralíssimos. Lúdicos ou pedagógicos, como o Almanaque da História de Portugal e o História de Portugal, Perguntas e Respostas. Há livros que tocam sem censuras, com frontalidade e até dramatismo temas em ferida como o Declarações de Guerra, o Escravatura ou o Combates pela Verdade, Portugal e os Escravos.
Convido os leitores que gostam de associar temas históricos à criatividade literária, a ler, da grande Agustina, o Fama e Segredo da História de Portugal, um hino à narrativa capaz de nos restituir a dimensão humana das grandes personagens da nossa História.
Exaltante é também o Heróis de Portugal, como é invulgar perspectiva “what if” que o angolano Jonuel Gonçalves dedicou, em E Se Angola Tivesse Proclamado a Independência em 1959?, a esse momento em que o destino de Angola poderia ter caminhado num sentido que teria evitado a Guerra Colonial. Dessa Guerra, fala-nos também um capitão de Abril, Rodrigo Sousa e Castro, em Capitão de Abril, Capitão de Novembro.
São dezasseis livros, que incluem até a História de Portugal em Disparates, relato bem humorado de desatinos e despautérios que acontecem nas nossas aulas, que mais nos dão a medida de como é necessário o reencontro das novas gerações com a História de Portugal e com o nosso passado, seja o melhor ou o pior desse passado.
Ponha a História de Portugal em sua casa. Aproveite descontos que chegam, nalguns casos, aos 50%. São estes os livros.
Os filmes só amam os livros quando os amam com segredo e reserva. Não me venham falar do “Clube dos Poetas Mortos”, execrável exibição circense do acto e do prazer da leitura. Confesso que tenho uma aversão parecida às sessões de leitura de poesia. Lido em público, com a compungida voz de quem tem as cuecas apertadas, o poema mais sublime aperta o nariz constrangido. O poema, na minha visão misantropa, tem aversão à plateia. Em voz alta, o poema pede para ser lido de boca a ouvido, numa intimidade que se torna ridícula se for descoberta.
Um pequeno filme onde se vê o amor da leitura é o “Finding Forrester”, de Gus Van Saint. Sean Connery é um escritor que, como J. D. Salinger, ficou cativo da própria obra, do único livro que escreveu. Para a sua caverna monástica, Connery arrasta o talento de um miúdo que, cheio de medo, quer fechar o bico a esse talento. À volta desse miúdo, o meio onde nasceu, os colegas e a escola onde o louvam pelo bom basquetebol que ele joga, tudo e todos querem que ele se envergonhe da horrível pulsão que tem para a escrita, da sua escabrosa fruição da leitura. É preciso um Sean Connery clandestino, bicho recôndito, para o trazer de volta e de vez ao vale de sombras, mistérios e absoluta tristeza da escrita.
splendor in the grass, glory of the flower
A leitura e a escrita são, hoje, vítimas da intifada de um paradigma de muita pressa, alegria parva e tecnologia instantânea. Há dias em que o cinema sim, o cinema ama a leitura. Eis o que queria dizer: foi no cinema, essa fulgurante vibração do século XX que rasteja exangue pelo século XXI, que vi resgatar a leitura. Tremente e sexualmente resgatada na perturbação da voz de Natalie Wood quando lê, num filme de Elia Kazan, a ode de Wordsworth que canta a fugidia memória de uma infantil e inocente explosão de Maio – esplendor na relva, glória na flor – que não voltará a aflorar os nossos sentidos.
A literatura é aventura, é fuga, tiro, queda e má vida. Veja-se “Pierrot le fou” e ouça-se Jean-Paul Belmondo. Na banheira, lê um livro de bolso de Élie Faure. Vemos e ouvimos que lê para a filha que talvez nem 6 anos tenha. Ouçam-no: “Velásquez é o pintor da noite, dos grandes espaços e do silêncio”. Isto sim, é a paixão da educação. Pormenor não despiciendo: Belmondo lê na banheira e fuma, cigarro ao canto da boca. Um vício nunca vem só.
Y a des jours comme ça, on rencontre que des abrutis. Alors on commence à se regarder dans une glace et à douter de soi…
A maior parte das coisas que, se tiverem homérica e triste paciência, se podem ler abaixo, escrevi-as há mais de 36 anos. Mudei muito. Tanto que continuo a subscrever as mesmas exactas coisas. A questão é: mesmo que uma pessoa diga as mesmas coisa, será que está a pensar as mesmas coisas?
Jamais je ne t’ai dit que je t’aimerai toujours ô mon amour
Para os europeus — conversa para a qual os portugueses não eram tidos nem achados à época — “Pedro o Louco” é um filme dos anos 60. A Portugal, o filme chegou na década seguinte, e mesmo assim chegou muito antes do seu tempo, porque o país, ao arrepio do calendário, só nos anos 70 é que começou a ter dilemas e contradições dos anos 50. Ainda me lembro que a reposição do filme nos anos 80 (pela mão da René Gagnon, a que os cinéfilos muito devem) foi de suprema utilidade: serviu para acerto do calendário. Finalmente Portugal elevava-se aos píncaros do aborrecimento e do cinismo que tinham obrigado Pierrot, aliás Ferdinand, à fuga para a frente, poética ou trágico-cómica, que o levava a desertar a família, mulher e filhos, pela calada de uma certa noite.
Quoi ? — L’Eternité. C’est la mer allée Avec le soleil.
Tenho a sensibilidade da pata do hipopótamo que pisa o nenúfar do lago, bem sei. Mas então, se não for trágico-cómico, que outra coisa se pode chamar a um herói que foge à civilização, convencido que é o novo Robinson Crusoe, julgando que Anna Karina é a sua Sexta-Feira, e se mata, mais distraído do que desencantado, quando vê que nunca mais é sábado?
O herói é trágico-cómico e o lirismo de “Pedro o Louco” — se lirismo se pode chamar à obstinação com que Jean-Luc Godard filma a natureza com panorâmicas e a morte em planos fixos — não tem nada que ver com o lirismo loiro e de olhos azuis do “Woodstock” dos anos 60 em que ambos foram filmados. “Pedro o Louco” é, evidentemente, um filme de rimas: “em imagens curtas e longas, em sons fortes e débeis”, como escreveu o seu autor, procura rimar homem com mulher e cinema com vida. São ambos emblemas dos anos 60, sim. Mas ao contrário de “Woodstock”, a rebelião de Pierrot não pode ser associada à contra-cultura dominante. Os mentores de Ferdinand (alter ego de Godard se fosse legítimo dizer-se que para o filme ele mete, seja prego, seja estopa) são Velasquez, Rimbaud, Goya, Llorca e, por fim, o cinema negro americano. Há ainda, vagamente, a memória do homónimo gangster francês, cuja crónica sangrenta fez correr tinta na França da II Grande Guerra.
“Pedro o Louco” pode resumir-se como se fazia com os filmes clássicos americanos. É mesmo o último filme clássico americano, pese embora a fraternidade, igualdade e liberdade da sua Eastmancolor. E é por isso, como no cinema clássico americano, o filme de uma mulher que sabe exactamente o que quer e de um homem que só sabe que a quer a ela. Conta, como qualquer filme negro, a aventura de um casal. Podia chamar-se “You Only Live Once”. Bastava que Godard se chamasse Fritz e acreditasse que um filme deve ter um princípio, meio e fim. Um dia ele disse que acreditava, e acrescentou: “Mas não necessariamente por essa ordem. ”
FERDINAND. Pourquoi t’as l’air triste? MARIANNE Parce que tu me parles avec des mots et moi, je te regarde avec des sentiments. FERDINAND. Avec toi, on peut pas avoir de conversation. T’as jamais d’idées, toujours des sentiments. MARIANNE Mais c’est pas vrai! Y a des idées dans les sentiments.
Ainda me lembro de ter pensado, nesses anos 80, que a colorida imprensa cinematográfica lisboeta da época havia de escrever que “Pierrot” era a adaptação de um romance de Lionel White, “estilo Lolita”; e que o sangue de Pierrot não era sangue, era apenas vermelho; e que a trama esssencial do filme já estava em “O Acossado”. E escreveu. Tudo verdades. Mas para que serve a verdade se nos faz corar de vergonha? O que é preciso é falar da liberdade impossível, perseguida por Belmondo com a mesma vontade, o mesmo impulso com que, “quando queremos uma mulher, nada nos importa e corremos a acordá-la a meio da noite”.
“Pierrot” é a vida do último par romântico. Obrigou o cinema a uma liberdade que lhe era estranha. Ficou-nos de emenda. Ensina-nos que, para tratar a vida, o cinema precisa primeiro de vivê-la. A vida, só a vida. Isso que, como fatias, está entre as pessoas: sons, cores, espaços.
Tendre et cruel / Réel et surréel / Terrifiant et marrant / Nocturne et diurne Solite et insolite / Beau comme tout Pierrot le fou
Entrevistei Anjelica Huston para o Expresso. Ou foi em Paris ou foi em San Sebastian, já não me lembro. Levei comigo o Guillermo Vilela, fotógrafo argentino e parisiense, que os deuses já convocaram. Já não tenho nenhuma das fotografias que ele lhe fez. Foi em Abril de 1992, vai fazer 29 anos, e ela era uma mulher grande.
Anjelica em The Grifters: you should see my gun
O orgulho da família Huston
Há boas razões para Deus não fazer nunca a primeira vontade às pessoas. Imaginem, por exemplo, que Ele tinha dito amen ao primeiro e fervoroso pedido que Anjelica Huston lhe fez: nesse caso, em vez da cara larga, de traços fortes, olhos como lagos, grossíssimos lábios sobre os quais se levanta o rochedo do nariz— olhem para a imagem acima e digam-me se minto — teríamos hoje, em cima do imenso corpo da filha de John Huston, um rosto a meio caminho entre a irrepreensível brancura de Grace Kelly e o «look» de Cinderela de Audrey Hepburn. Poderia até dar-se o caso da graça concedida ter dado à luz um anjo. Nem por isso a nossa pena teria sido menor: é que a grandeza de Anjelica Huston tem a sua primeira fonte nessa suposta imperfeição do físico com a qual a artista quando jovem entrou em furioso conflito.
Deus foi surdo. Ainda bem. Como, de resto, ela reconhece: «Continuo a saber que não sou particularmente bonita, mas agora sinto-me confortável com o meu aspecto. Primeiro, porque não tenho alternativa. Segundo, porque embora nunca esteja completamente encantada, por vezes há uma certa luz do dia com que me sinto muito bem». A frase, ouvi-a da boca de Anjelica Huston, mas não me espantaria nada que Morticia Addams a repetisse.
Morticia Addams é um ser bizarro, como o são todos os seres que habitam A Família Addams, o filme com que Barry Sonnenfeld se estreou na realização. Morticia passa o tempo a ter irresistíveis impulsos para o humor negro. Foi assim que o pai, o «cartoonista» Charles Addams, a deu à luz, juntamente com o resto da família, numa banda desenhada que foi culto no mundo anglo-saxónico (havia uma colecção desses livrinhos na casa de banho irlandesa da família Huston, recorda a actriz), culto ampliado pela série de televisão, criada nos anos 60. Não admira que tenham convidado Anjelica para dar corpo à personagem. «É uma personagem de comédia, mas também de morbidez e morte. Não me pergunte porquê, a verdade é que me sinto atraída por este tipo de coisas», confessa Anjelica Huston.
Morticia e Anjelica têm mais semelhanças entre elas do que a esmagadora maioria das cidades geminadas. Ambas são parte integrante de um clã — os fictícios e perversos Addams de Charles e os reais, francos e honestos Huston que o John de Sierra Madre legou à posteridade. Ambas aparentam ser imunes ao juízo que os respectivos comportamentos desencadeiam (ou recebem-nos pelo menos com assinalável bonomia). Apesar dessas semelhanças, Anjelica Huston garante ter demorado a compreender a personagem: «Foi muito difícil decidir qualquer coisa antes de usar pela primeira vez o guarda-roupa dela; ora, o guarda-roupa foi a última coisa da produção a ficar pronta. Logo que me meti nos vestidos pretos compridos dela, compreendi que a aparente alucinação de Morticia — por exemplo, dizer aos filhos para se matarem um ao outro — é uma despistagem da sua bondade natural.»
Ao dar por adquirida a bondade natural da excêntrica Morticia, Anjelica Huston está a explicar, e nem é bem por portas travessas, a razão pela qual o conceito que, mais sinteticamente, define a sua incarnação daquela personagem é oorgulho. Durante toda a Família Addams, Anjelica Huston ostenta um ar de desafio. Não será uma novidade numa carreira onde se somam títulos como A Honra dos Padrinhos, Jardins de Pedra, Gente de Dublin/The Dead e Anatomia do Golpe/The Grifters. A novidade talvez esteja na desdramatização com que Anjelica Huston trabalha o orgulho e essa suave arrogância que empresta a Morticia. Foi o que eu pensei em voz alta, para ser imediatamente desmentido pela actriz: «Embora se ocupe de horror e morte, a Honra dos Padrinhos é também uma comédia. Sempre achei que era preciso incorporar um bom bocado de comédia nas nossas tragédias para que as pudéssemos levar a sério. Na vida há sempre comédia na tragédia e vice-versa.»
Daddy’s girl: Anjelica e John Huston
Tomei e embrulhei, sem, todavia, deixar de me sentir autorizado a invocar o nome do pai, John Huston, firmemente convencido que, desta vez, não seria em vão. Para Anjelica, com efeito, a imagem de John Huston é uma espécie de grande meta moral e artística: «O meu pai vivia a uma escala grandiosa, à qual normalmente as pessoas não conseguem sobreviver. Foi um aventureiro à sua própria custa. Hoje — é uma questão de geração — ninguém vai, de uma forma tão orgulhosa, à procura de aventura e de realização. Era um verdadeiro explorador. Uma vez, num jantar, as pessoas começaram a interrogar-se sobre qual era a coisa mais importante da vida. Umas disseram “amor”, outras “dinheiro”, outras “fama”. O meu pai disse “interesse”. Nunca mais conheci ninguém com a estatura dele.»
Pareceu-me logo que, naquela muralha de coerente devoção, dificilmente se abririam excepções. Não pude, mesmo assim, deixar de terçar armas por uma minha velha dama (cada vez mais vetusta, diga-se), atirando para cima da mesa o nome de um dos realizadores com quem ela trabalhou, Francis Coppola: «É um caso à parte. Tem largueza. Adora cozinhar e rodeia-se de toda a família. Mas é diferente… é um intelectual. Pertence ainda a uma geração com um certo encanto e uma certa classe.» Depois, muito profissional, Anjelica Huston corrigiu-se: «É claro que me sinto muito orgulhosa por ter trabalhado com os realizadores que me dirigiram. Não posso compará-los. Ocasionalmente pode comparar-se o estilo de cada um, mas as diferenças não impedem que sejam todos muito bons realizadores.»
The Grifters
A quem é que estas inocentes palavras não cheiram a crítica às «novas gerações»? Dei-lhe a deixa. Talvez The Grifters seja um filme em que a excessiva estilização atenue o dramatismo a que se pode aspirar quando o efeito de realidade é mais óbvio. Anjelica contou-me logo uma grande história: «É certamente um filme muito estilizado, o que não o impede de estar muito próximo da vida real. Depois de The Grifters, fui a Las Vegas com o meu namorado. De repente, começámos a ouvir gritos horríveis na sala ao lado. Julgámos que alguém estava a ser assassinado. O meu namorado atirou-se à porta e forçou-a a abrir-se. Saiu de lá uma rapariga a andar a quatro, sobre as mãos e os joelhos, com um homem a agarrá-la pelo pescoço como se ela fosse um cão. Uma cena exactamente como a de The Grifters. Juro-lhe que a ficção era menos impressionante do que a realidade.»
Acabou a falar do ofício. Contou que a sua maneira de conceber o trabalho de actor mudara com Peggy Feury, a principal professora de toda uma geração, que vai de Sean Penn a Michelle Pfeiffer. Feury, recentemente falecida, era o Lee Strasberg de Los Angeles, «uma mulher extraordinária, uma irlandesa. Com ela aprendia-se por osmose. Não me lembro de nada específico — umas receita — que Peggy me tenha dado. Sei é que, quando estava a fazer alguma coisa errada, ela aparecia muito suavemente a dizer: ‘Experimenta respirar’.» Anjelica revelou ainda que parte do guarda-roupa que usa nos filmes é dela — consequência do gosto que formou quando foi modelo — e que também foi ideia sua a peruca loura que usa em The Grifters.
As personagens, deixa-as ficar nos filmes. E para cortar simbolicamente relações, queima sempre, no final da rodagem, alguns vestidos e adereços que tenha usado. Com olho de fotógrafo, Guillermo Vilela olhou à volta e fez-lhe notar que os montinhos de notas de dólar, sobre o televisor e sobre a mesa, a desmentiam, fazendo lembrar os tiques da personagem que incarna em The Grifters. «You should see my gun», ripostou ela. Ela, quem? Anjelica Huston ou os restos de Morticia que ainda nela ficaram?
Da boca anti-vício de Anthony Comstock só saíam flores. Com um pé repressivo em cima da classificação de Lineu, para não ter de se referir à origem angiospérmica (ó palavra!) das líricas flores ou à fértil agitação em que androceu e gineceu se roçam no seio de cálice e corola.
Saltemos a infância dele, severa, castíssima, de redondo puritanismo. Já o vemos, em 1863, na Guerra Civil americana, soldado do 17.º de infantaria de Connecticut. Cora a cada palavrão dos camaradas de armas, rasga as vestes a cada lúbrica erupção da descomandada virilidade dos soldados. Entre tiros, fucks e morteiros irrompe no espírito de Comstock uma vocação: a de ser um cruzado contra o palavrão, a obscenidade, o erotismo, qualquer afrontosa ostentação da sexualidade.
Ali vai: caminha por Nova Iorque como se tivesse engolido um Torquemada. Tem menos de 25 anos e, com paciência de monge e tenacidade prussiana, recolhe cada artefacto pornográfico a que possa meter a mão, descobre bordéis, inventaria circuitos de divulgação médica, literária e artística que exponham a anatomia humana, descobrindo-lhe a nudez.
Pouco depois, sei lá se foram cinco anos nesta peregrinação ignóbil, Comstock entra no Congresso. Leva o apocalipse na mão. Folheto a folheto, postais europeus, moradas de casas de passe, Comstock subjuga, em 1873, o Congresso. Comstock mostra, prova e pode muito bem ter dito: “Eis a tabidez e perversão do mundo.” E solta gritos aterradores.
Fulminado pela pureza luciferina de Anthony, o Congresso aprova a lei da “Supressão do Comércio e da Circulação de Literatura Obscena e Artigos de Uso Imoral”. Olhem para o longo nome da lei: que derrame lexical! Juro que não inventei nada, foi assim que votou e falou o Congresso na sua placidez legislativa.
Ao moralíssimo Anthony conferem poderes: põem o menino guloso na loja dos rebuçados. Inspector do Correios, pode agora proibir a circulação do que julgue obsceno: não só a literatura europeia, que os editores têm de publicar deixando em branco certas palavras na tradução, mas mesmo folhetos médicos sobre o controle da natalidade. Comstock, com os seus gordos bigodes e mãos farfalhudas, pode abrir cartas: manda prender uma mulher que, num surto de lascívia, sussurra num postal ao marido, como se fosse ao ouvido, “meu sacaninha”.
Durante 40 anos, Comstock espalhou o inferno moralista, destruindo milhões de livros, fazendo malhar na prisão a impureza de umas quatro mil pessoas. Provocou suicídios, de que se gabava, e gostava de ter prendido Calouste Gulbenkian, a cuja colecção pertencia então a tela “Manhã de Setembro”, delicado e inclinado nu de mulher que Paul Chabas pintou, e que galeristas americanos impudica e imprudentemente expuseram.
O que queria dizer é que Anthony Comstock está morto e enterrado. Mas mentiria se o dissesse: está morto, mas desenterraram-no! A mesma purulenta monomania puritana, agora de esquerda radical, entorna-se pelas ruas e trepa pelas paredes das nossas casas. Uma horda de novos Torquemadas, inquisidores tirados a papel químico do Anthony de bigodes prussianos, mordem com dentes de raiva e proíbem palavras e símbolos, querem estilhaçar estátuas, querem saber se pecamos em pensamento rememorando sem culpa o passado.
Quem se atreverá a contestar a nobreza de propósitos destes cruzados do novo Homem Novo? E quem se atreverá a não verter lágrimas de remorsos e expiação face a essa vaga que reinventa o passado e nos desperta para um futuro de purificação e celestial harmonia de pensamento único?