Pedro, o louco: para que serve a verdade se nos faz corar de vergonha?

Y a des jours comme ça, on ren­con­tre que des abru­tis. Alors on com­mence à se regar­der dans une glace et à dou­ter de soi…

A maior parte das coi­sas que, se tive­rem homé­rica e triste paci­ên­cia,  se podem ler abaixo, escrevi-as há mais de 36 anos. Mudei muito. Tanto que con­ti­nuo a subs­cre­ver as mes­mas exac­tas coi­sas. A ques­tão é: mesmo que uma pes­soa diga as mes­mas coisa, será que está a pen­sar as mes­mas coisas?

Jamais je ne t’ai dit que je t’aimerai tou­jours ô mon amour

Para os euro­peus — con­versa para a qual os por­tu­gue­ses não eram tidos nem acha­dos à época — “Pedro o Louco” é um filme dos anos 60. A Por­tu­gal, o filme che­gou na década seguinte, e mesmo assim che­gou muito antes do seu tempo, por­que o país, ao arre­pio do calen­dá­rio, só nos anos 70 é que come­çou a ter dile­mas e con­tra­di­ções dos anos 50. Ainda me lem­bro que a repo­si­ção do filme nos anos 80 (pela mão da René Gag­non, a que os ciné­fi­los muito devem) foi de suprema uti­li­dade: ser­viu para acerto do calen­dá­rio. Final­mente Por­tu­gal elevava-se aos pín­ca­ros do abor­re­ci­mento e do cinismo que tinham obri­gado Pier­rot, aliás Fer­di­nand, à fuga para a frente, poé­tica ou trágico-cómica, que o levava a deser­tar a famí­lia, mulher e filhos, pela calada de uma certa noite.

Quoi ? — L’Eternité. C’est la mer allée Avec le soleil.

Tenho a sen­si­bi­li­dade da pata do hipo­pó­tamo que pisa o nenú­far do lago, bem sei. Mas então, se não for trágico-cómico, que outra coisa se pode cha­mar a um herói que foge à civi­li­za­ção, con­ven­cido que é o ­novo Robin­son Cru­soe, jul­gando que Anna Karina é a sua Sexta-Feira, e se mata, mais dis­traído do que desencan­tado, quando vê que nunca mais é sábado?

O herói é trágico-cómico e o liris­mo de “Pedro o Louco” — se lirismo se pode cha­mar à obs­ti­na­ção com que Jean-Luc Godard filma a natu­reza com pano­râ­mi­cas e a morte em pla­nos fixos — não tem nada que ver com o lirismo loiro e de olhos azuis do “Woods­tock” dos anos 60 em que ambos foram fil­ma­dos. “Pedro o Louco” é, evi­den­te­mente, um filme de rimas: “em ima­gens cur­tas e lon­gas, em sons for­tes e débeis”, como escre­veu o seu autor, pro­cura rimar homem com mu­lher e cinema com vida. São ambos emble­mas dos anos 60, sim. Mas ao con­trá­rio de “Woods­tock”, a rebe­lião de Pier­rot não pode ser asso­ci­ada à contra-cultura domi­nante. Os men­to­res de Fer­di­nand (alter ego de Godard se fosse legí­timo dizer-se que para o filme ele mete, seja prego, seja estopa) são Velas­quez, Rim­baud, Goya, Llorca e, por fim, o cinema negro ame­ri­cano. Há ainda, vaga­mente, a memó­ria do ho­mónimo gangs­ter fran­cês, cuja cró­nica san­grenta fez cor­rer tinta na França da II Grande Guerra.

Pedro o Louco” pode resumir-se como se fazia com os fil­mes clás­si­cos ame­ri­ca­nos. É mesmo o último filme clás­sico ame­ri­cano, pese em­bora a fra­ter­ni­dade, igual­dade e li­berdade da sua East­man­co­lor. E é por isso, como no cinema clás­sico ame­ri­cano, o filme de uma mulher que sabe exac­ta­mente o que quer e de um homem que só sabe que a quer a ela. Conta, como qual­quer filme negro, a aven­tura de um casal. Podia chamar-se “You Only Live Once”. Bas­tava que Godard se cha­masse Fritz e acre­di­tasse que um filme deve ter um prin­cí­pio, meio e fim. Um dia ele disse que acre­di­tava, e acres­cen­tou: “Mas não neces­sa­ri­a­mente por essa ordem. ”

FERDINAND. Pour­quoi t’as l’air triste? MARIANNE Parce que tu me par­les avec des mots et moi, je te regarde avec des sen­ti­ments. FERDINAND. Avec toi, on peut pas avoir de con­ver­sa­tion. T’as jamais d’idées, tou­jours des sen­ti­ments. MARIANNE Mais c’est pas vrai! Y a des idées dans les sentiments.

Ainda me lem­bro de ter pen­sado, nes­ses anos 80, que a colo­rida imprensa cine­ma­to­grá­fica lis­bo­eta da época havia de escre­ver que “Pier­rot” era a adap­ta­ção de um romance de Lio­nel White, “estilo Lolita”; e que o san­gue de Pier­rot não era san­gue, era ape­nas ver­me­lho; e que a tra­ma ess­sen­cial do filme já estava em “O Acos­sado”. E escre­veu. Tudo ver­da­des. Mas para que serve a ver­dade se nos faz corar de ver­go­nha? O que é pre­ciso é falar da liber­dade impos­sí­vel, per­se­guida por Bel­mondo com a mesma von­tade, o mesmo impulso com que, “quando que­re­mos uma mulher, nada nos importa e cor­re­mos a acordá-la a meio da noite”.

Pier­rot” é a vida do último par român­tico. Obri­gou o cinema a uma liber­dade que lhe era estra­nha. Ficou-nos de emenda. Ensina-nos que, para tra­tar a vida, o cinema pre­cisa pri­meiro de vivê-la. A vida, só a vida. Isso que, como fatias, está entre as pes­soas: sons, cores, espaços.

Ten­dre et cruel / Réel et sur­réel / Ter­ri­fi­ant et mar­rant / Noc­turne et diurne Solite et inso­lite / Beau comme tout Pier­rot le fou

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