Entrevistei Anjelica Huston para o Expresso. Ou foi em Paris ou foi em San Sebastian, já não me lembro. Levei comigo o Guillermo Vilela, fotógrafo argentino e parisiense, que os deuses já convocaram. Já não tenho nenhuma das fotografias que ele lhe fez. Foi em Abril de 1992, vai fazer 29 anos, e ela era uma mulher grande.

O orgulho da família Huston
Há boas razões para Deus não fazer nunca a primeira vontade às pessoas. Imaginem, por exemplo, que Ele tinha dito amen ao primeiro e fervoroso pedido que Anjelica Huston lhe fez: nesse caso, em vez da cara larga, de traços fortes, olhos como lagos, grossíssimos lábios sobre os quais se levanta o rochedo do nariz— olhem para a imagem acima e digam-me se minto — teríamos hoje, em cima do imenso corpo da filha de John Huston, um rosto a meio caminho entre a irrepreensível brancura de Grace Kelly e o «look» de Cinderela de Audrey Hepburn. Poderia até dar-se o caso da graça concedida ter dado à luz um anjo. Nem por isso a nossa pena teria sido menor: é que a grandeza de Anjelica Huston tem a sua primeira fonte nessa suposta imperfeição do físico com a qual a artista quando jovem entrou em furioso conflito.
Deus foi surdo. Ainda bem. Como, de resto, ela reconhece: «Continuo a saber que não sou particularmente bonita, mas agora sinto-me confortável com o meu aspecto. Primeiro, porque não tenho alternativa. Segundo, porque embora nunca esteja completamente encantada, por vezes há uma certa luz do dia com que me sinto muito bem». A frase, ouvi-a da boca de Anjelica Huston, mas não me espantaria nada que Morticia Addams a repetisse.
Morticia Addams é um ser bizarro, como o são todos os seres que habitam A Família Addams, o filme com que Barry Sonnenfeld se estreou na realização. Morticia passa o tempo a ter irresistíveis impulsos para o humor negro. Foi assim que o pai, o «cartoonista» Charles Addams, a deu à luz, juntamente com o resto da família, numa banda desenhada que foi culto no mundo anglo-saxónico (havia uma colecção desses livrinhos na casa de banho irlandesa da família Huston, recorda a actriz), culto ampliado pela série de televisão, criada nos anos 60. Não admira que tenham convidado Anjelica para dar corpo à personagem. «É uma personagem de comédia, mas também de morbidez e morte. Não me pergunte porquê, a verdade é que me sinto atraída por este tipo de coisas», confessa Anjelica Huston.
Morticia e Anjelica têm mais semelhanças entre elas do que a esmagadora maioria das cidades geminadas. Ambas são parte integrante de um clã — os fictícios e perversos Addams de Charles e os reais, francos e honestos Huston que o John de Sierra Madre legou à posteridade. Ambas aparentam ser imunes ao juízo que os respectivos comportamentos desencadeiam (ou recebem-nos pelo menos com assinalável bonomia). Apesar dessas semelhanças, Anjelica Huston garante ter demorado a compreender a personagem: «Foi muito difícil decidir qualquer coisa antes de usar pela primeira vez o guarda-roupa dela; ora, o guarda-roupa foi a última coisa da produção a ficar pronta. Logo que me meti nos vestidos pretos compridos dela, compreendi que a aparente alucinação de Morticia — por exemplo, dizer aos filhos para se matarem um ao outro — é uma despistagem da sua bondade natural.»
Ao dar por adquirida a bondade natural da excêntrica Morticia, Anjelica Huston está a explicar, e nem é bem por portas travessas, a razão pela qual o conceito que, mais sinteticamente, define a sua incarnação daquela personagem é o orgulho. Durante toda a Família Addams, Anjelica Huston ostenta um ar de desafio. Não será uma novidade numa carreira onde se somam títulos como A Honra dos Padrinhos, Jardins de Pedra, Gente de Dublin/The Dead e Anatomia do Golpe/The Grifters. A novidade talvez esteja na desdramatização com que Anjelica Huston trabalha o orgulho e essa suave arrogância que empresta a Morticia. Foi o que eu pensei em voz alta, para ser imediatamente desmentido pela actriz: «Embora se ocupe de horror e morte, a Honra dos Padrinhos é também uma comédia. Sempre achei que era preciso incorporar um bom bocado de comédia nas nossas tragédias para que as pudéssemos levar a sério. Na vida há sempre comédia na tragédia e vice-versa.»

Tomei e embrulhei, sem, todavia, deixar de me sentir autorizado a invocar o nome do pai, John Huston, firmemente convencido que, desta vez, não seria em vão. Para Anjelica, com efeito, a imagem de John Huston é uma espécie de grande meta moral e artística: «O meu pai vivia a uma escala grandiosa, à qual normalmente as pessoas não conseguem sobreviver. Foi um aventureiro à sua própria custa. Hoje — é uma questão de geração — ninguém vai, de uma forma tão orgulhosa, à procura de aventura e de realização. Era um verdadeiro explorador. Uma vez, num jantar, as pessoas começaram a interrogar-se sobre qual era a coisa mais importante da vida. Umas disseram “amor”, outras “dinheiro”, outras “fama”. O meu pai disse “interesse”. Nunca mais conheci ninguém com a estatura dele.»
Pareceu-me logo que, naquela muralha de coerente devoção, dificilmente se abririam excepções. Não pude, mesmo assim, deixar de terçar armas por uma minha velha dama (cada vez mais vetusta, diga-se), atirando para cima da mesa o nome de um dos realizadores com quem ela trabalhou, Francis Coppola: «É um caso à parte. Tem largueza. Adora cozinhar e rodeia-se de toda a família. Mas é diferente… é um intelectual. Pertence ainda a uma geração com um certo encanto e uma certa classe.» Depois, muito profissional, Anjelica Huston corrigiu-se: «É claro que me sinto muito orgulhosa por ter trabalhado com os realizadores que me dirigiram. Não posso compará-los. Ocasionalmente pode comparar-se o estilo de cada um, mas as diferenças não impedem que sejam todos muito bons realizadores.»

A quem é que estas inocentes palavras não cheiram a crítica às «novas gerações»? Dei-lhe a deixa. Talvez The Grifters seja um filme em que a excessiva estilização atenue o dramatismo a que se pode aspirar quando o efeito de realidade é mais óbvio. Anjelica contou-me logo uma grande história: «É certamente um filme muito estilizado, o que não o impede de estar muito próximo da vida real. Depois de The Grifters, fui a Las Vegas com o meu namorado. De repente, começámos a ouvir gritos horríveis na sala ao lado. Julgámos que alguém estava a ser assassinado. O meu namorado atirou-se à porta e forçou-a a abrir-se. Saiu de lá uma rapariga a andar a quatro, sobre as mãos e os joelhos, com um homem a agarrá-la pelo pescoço como se ela fosse um cão. Uma cena exactamente como a de The Grifters. Juro-lhe que a ficção era menos impressionante do que a realidade.»
Acabou a falar do ofício. Contou que a sua maneira de conceber o trabalho de actor mudara com Peggy Feury, a principal professora de toda uma geração, que vai de Sean Penn a Michelle Pfeiffer. Feury, recentemente falecida, era o Lee Strasberg de Los Angeles, «uma mulher extraordinária, uma irlandesa. Com ela aprendia-se por osmose. Não me lembro de nada específico — umas receita — que Peggy me tenha dado. Sei é que, quando estava a fazer alguma coisa errada, ela aparecia muito suavemente a dizer: ‘Experimenta respirar’.» Anjelica revelou ainda que parte do guarda-roupa que usa nos filmes é dela — consequência do gosto que formou quando foi modelo — e que também foi ideia sua a peruca loura que usa em The Grifters.
As personagens, deixa-as ficar nos filmes. E para cortar simbolicamente relações, queima sempre, no final da rodagem, alguns vestidos e adereços que tenha usado. Com olho de fotógrafo, Guillermo Vilela olhou à volta e fez-lhe notar que os montinhos de notas de dólar, sobre o televisor e sobre a mesa, a desmentiam, fazendo lembrar os tiques da personagem que incarna em The Grifters. «You should see my gun», ripostou ela. Ela, quem? Anjelica Huston ou os restos de Morticia que ainda nela ficaram?

O Manuel S. Fonseca foi uma “invenção” extraordinária !
Como ele escreve !
E nunca se esquece de nada ! Coloca sempre tudo !
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Karíssimo Victor, um abraço.
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