
Da boca anti-vício de Anthony Comstock só saíam flores. Com um pé repressivo em cima da classificação de Lineu, para não ter de se referir à origem angiospérmica (ó palavra!) das líricas flores ou à fértil agitação em que androceu e gineceu se roçam no seio de cálice e corola.
Saltemos a infância dele, severa, castíssima, de redondo puritanismo. Já o vemos, em 1863, na Guerra Civil americana, soldado do 17.º de infantaria de Connecticut. Cora a cada palavrão dos camaradas de armas, rasga as vestes a cada lúbrica erupção da descomandada virilidade dos soldados. Entre tiros, fucks e morteiros irrompe no espírito de Comstock uma vocação: a de ser um cruzado contra o palavrão, a obscenidade, o erotismo, qualquer afrontosa ostentação da sexualidade.
Ali vai: caminha por Nova Iorque como se tivesse engolido um Torquemada. Tem menos de 25 anos e, com paciência de monge e tenacidade prussiana, recolhe cada artefacto pornográfico a que possa meter a mão, descobre bordéis, inventaria circuitos de divulgação médica, literária e artística que exponham a anatomia humana, descobrindo-lhe a nudez.
Pouco depois, sei lá se foram cinco anos nesta peregrinação ignóbil, Comstock entra no Congresso. Leva o apocalipse na mão. Folheto a folheto, postais europeus, moradas de casas de passe, Comstock subjuga, em 1873, o Congresso. Comstock mostra, prova e pode muito bem ter dito: “Eis a tabidez e perversão do mundo.” E solta gritos aterradores.
Fulminado pela pureza luciferina de Anthony, o Congresso aprova a lei da “Supressão do Comércio e da Circulação de Literatura Obscena e Artigos de Uso Imoral”. Olhem para o longo nome da lei: que derrame lexical! Juro que não inventei nada, foi assim que votou e falou o Congresso na sua placidez legislativa.
Ao moralíssimo Anthony conferem poderes: põem o menino guloso na loja dos rebuçados. Inspector do Correios, pode agora proibir a circulação do que julgue obsceno: não só a literatura europeia, que os editores têm de publicar deixando em branco certas palavras na tradução, mas mesmo folhetos médicos sobre o controle da natalidade. Comstock, com os seus gordos bigodes e mãos farfalhudas, pode abrir cartas: manda prender uma mulher que, num surto de lascívia, sussurra num postal ao marido, como se fosse ao ouvido, “meu sacaninha”.
Durante 40 anos, Comstock espalhou o inferno moralista, destruindo milhões de livros, fazendo malhar na prisão a impureza de umas quatro mil pessoas. Provocou suicídios, de que se gabava, e gostava de ter prendido Calouste Gulbenkian, a cuja colecção pertencia então a tela “Manhã de Setembro”, delicado e inclinado nu de mulher que Paul Chabas pintou, e que galeristas americanos impudica e imprudentemente expuseram.
O que queria dizer é que Anthony Comstock está morto e enterrado. Mas mentiria se o dissesse: está morto, mas desenterraram-no! A mesma purulenta monomania puritana, agora de esquerda radical, entorna-se pelas ruas e trepa pelas paredes das nossas casas. Uma horda de novos Torquemadas, inquisidores tirados a papel químico do Anthony de bigodes prussianos, mordem com dentes de raiva e proíbem palavras e símbolos, querem estilhaçar estátuas, querem saber se pecamos em pensamento rememorando sem culpa o passado.
Quem se atreverá a contestar a nobreza de propósitos destes cruzados do novo Homem Novo? E quem se atreverá a não verter lágrimas de remorsos e expiação face a essa vaga que reinventa o passado e nos desperta para um futuro de purificação e celestial harmonia de pensamento único?
Publicado no Jornal de Negócios
O quadro de Calouste Gulbenkian é bastante bonito, um nu de cândida e casta pureza.
Não entendo esse apagar da história venha de que quadrante vier. A estupidez é sempre ela onde quer esteja.
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Só é pena é já não ser do senhor Gulbenkian. E estamos de acordo.
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