
Godard está mesmo muito velho. Depois de Manoel de Oliveira, que junto de Deus deixou de ter idade, nestes dias lentos, que correm a conta gotas, Godard é o Matusalém da história do cinema. Acreditem, é um elogio nesta boca de quem cada vez gosta mais dos velhos.
Não sei quando é que Jean-Luc nasceu, nem me interessa. Para mim, quando fez “A Bout de Souffle” tinha (só podia ter) 20 anos. Em toda a história do cinema era a terceira vez que aparecia um filme que não se parecia com nada do que se fizera antes. Lembro que esses filmes de não pedir licença a nada e a ninguém foram “Birth of a Nation”, de Griffith e “Citizen Kane”, de Welles.
São filmes americanos e o de Godard é francês? É engraçado, “A Bout de Souffle”, a um olhar mais cândido parece americano. Lembro-me que um moço, que trabalhou na Cinemateca, quando viu o filme, chamou-lhe “About The Suffle”, fosse lá o que isso fosse. Não só não vejo na americanização do título nenhuma ignorância, como me parece até a expressão fiel e verdadeira das suas genuínas sensações de espectador, ao ver a mais bogartiana das interpretações de Jean-Paul Belmondo e ao ver desaguar na desarmante, mas bem armada inocência de Jean Seberg, a tradição da inteligentíssima mulher fatal de que Louise Brooks foi a mais fulgurante representante. Tudo coisinhas sexualmente americanas.

Sendo inaugural como aqueles dois antepassados, “A Bout de Souffle” de Godard tem uma peculiaridade: se não se parecia com nenhum filme anterior, a verdade é que nenhum filme posterior se conseguiu parecer com ele.
“A Bout de Souffle” foi um escândalo na França de 1959. É um filme insolente. Fala directamente aos espectadores e manda os inimigos da natureza a um sítio inimaginável para a ecologia grassante. Pela boca grossa de Belmondo. Mas a rudeza verbal é o menos: “Allez vous faire foutre”, o que em português equivale a um ameno “Vão-se foder”, é uma sugestão que a Europa, afinal, tem feito tudo por cumprir.
Há atrevimentos maiores, que vou já elencar. Lembro que Jean-Luc fez questão, mesmo muita questão, nestas coisas paradigmáticas: a) usou o negativo mais rápido que havia, com a velocidade de 400 ASA, e com a ajuda do seu operador, Raoul Coutard, Godard deu-lhe um tratamento especial, aumentando-lhe a velocidade para 800 ASA; b) isso quer dizer que Godard queria filmar tudo com as fontes de luz natural; c) queria, quis e conseguiu, coisa que nunca antes tinha sido feita num filme de ficção.

“A Bout de Souffle” tem outras arrogâncias mal-criadas que não se reduzem à técnica e às consequências da técnica. O cinema tinha uma gramática, mas Godard achou-a insuficiente e insatisfatória. Inventou o “jump-cut” na sua versão mais “dura”, processo que consiste em montar planos do mesmo actor, no mesmo espaço, mas seleccionando apenas as “partes interessantes”. Por causa dessa compressão no tempo, a Godard, nessa altura, até à mãezinha lhe chamaram nomes que não eram exactamente o desconhecido nome dela.
Não se julgue que a fúria e ranger de dentes surgiram só pelas ousadias de estilo. Obrigando-se, como nas “Palmeiras Bravas”, romance de William Faulkner, a escolher entre a dor e o nada, o herói de “A Bout de Souffle” escolhe o “nada” porque a “dor” é ainda um compromisso. Caiu mal.
Na altura andava tudo comprometido. A palavra certa nem é compromisso, é engajamento. Os operários engajavam, os estudantes engajavam, os intelectuais engajavam. Engajavam todos menos os heróis de Godard. E quando, ao contrário do soberbo Belmondo, a doce Seberg cede e se compromete, Godard fá-la comprometer-se com a perfídia – é um anti-engajamento feminino, mas quem é que, no seu juízo perfeito, não desejaria que Jean Seberg anti-engajasse com ele? Ser traído por Jean Seberg será ser traído?
A mim, é o que mais me põe em brasa em “A Bout de Souffle”. Depois de se percorrer cada centímetro de Jean Seberg, da belíssima nuca rapada aos lábios, dos mais lindos joelhos aos seios, só Godard lhe poderia pedir que ela – vinda de dois torturados filmes de Otto Preminger – fosse ainda cem vezes mais dilacerada do que em “Saint Joan” e mil vezes mais sexualmente triste do que em “Bonjour Tristesse”. Sem as desculpas morais que nesses filmes Preminger lhe emprestava.
A luz, rua e ritmo que fizeram de “A Bout de Souffle” um enfant terrible, a má-criação gramatical que faz de “A Bout de Souffle” um enfant gâté, o niilismo post-faulkneriano que faz de “A Bout de Souffle” um exemplo da souveraineté de l’ homme seul (francesa embora, a expressão é minha) condenaram “A Bout de Souffle” à gloriosa desolação de ser um filme sem descendência. Pode ter havido enfants de la cinémathèque, mas não há, de certeza, enfants de Godard. Avisem os enganados que por aí andem: que façam o teste de ADN e vão chamar pai a outro.
Publicado na revista “Argumento”, uma preciosidade servida pelo Cine Clube de Viseu
E o melhor da história foi quando dez anos mais tarde J-LG renegou o filme em boa medida pelo anti-engajamento proto-fascista (segundo ele, e cito de memória) do filme. Outra boa foi a maneira como chegou ao jump-cut. Após a primeira montagem o filme durava umas duas horas e era preciso reduzi-lo aos 90 minutos da praxe; vai daí o tonton Jean-Luc decide que em vez de cortar algumas cenas (coisa que o indispunha) a alternativa era cortar no meio das cenas e até a meio dos planos. Foi memorável. É um filme como não há igual, embora vários tenham tentado convencê-lo a fazer uma “sequela”. O “bougre” disse que concerteza e fez o “Numéro deux” que ficou conhecido como aquele filme do qual também não há dois 🙂 Outra das inovações a reter é a proliferação de paredes e camisas brancas – nesta última, e apenas nisso, o tonton repetiu-se.
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E a história da nudez da BB no começo de Le Mépris? Acho que já a publiquei, se não tenho de a resgatar. São ínvios os caminhos do cinema.
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