
Eu ia falar de um pénis. Mas omito por enquanto a indelicadeza e falo do ser humano. Não basta dizer ao ser humano, «ama o teu próximo como a ti mesmo» ou ainda «honra pai e mãe». A tentação é grande e o diabo, ou o Pai da Mentira, como lhe chamava Nelson Rodrigues, ele próprio pai ou padrasto de todos os cronistas, sussurra à orelha do ser humano e morde-lhe suficientemente o excitável lóbulo.
Que outra coisa, senão o sopro do Pai da Mentira, poderia explicar o desatino de Saeed Hasmi e Jan Yadgari, donos da Pizzeria Italiana, em Roath, Cardiff, 2008, ao polvilharem o seu famoso bolo de chocolate com fezes humanas? Vinha uma multidão de noctívagos, pediam café, brandy e sempre uma fatia de bolo, e vejam ou cheirem o que Hasmi e Yadgari lhes punham no prato!
O ultraje daqueles dois celerados não melindra a glória da gastronomia, as suas sinfonias gourmet, os rondós do palato. A glória da gastronomia imita a glória da vida. Ao longo de longos mil anos, a vida foi esmurrada. Esfaqueada com sangramento abundante. Manda a razoabilidade, o funcionário público, o notário e o médico legista que a vida estivesse já no túmulo: todos os dias, porém, a vida sai do imprestável cemitério e exulta, serpentina, polvilhando o mundo de alegria, se ouso usar essa palavra anacrónica.
Na seca inutilidade da sua sabedoria o filósofo Theodor W. Adorno abriu um abismo: «Não pode haver poesia depois de Auschwitz.» O génio de Adorno é um deserto inabitável e o ser humano prefere-lhe o que Adorno diria ser o insuportável oásis. Herberto ou Larkin, Drummond, Sylvia Plath ou Borges são os oásis que desmentem o deserto de Adorno com a impronunciável palavra poesia.
Mas já me volto a sentar à mesa. Nem sei se foi em Berlim se em Munique, 1983, ainda essa Alemanha era só Ocidental, um homem comprou uma sanduíche, uma Mettbrötchen, creio. Agoniando-se, o indesmentível Times, conta-nos que, a acompanhar a carne de porco picada, salsa e cebola, vinha um polegar humano. Em 2005, encontrou-se outro dedo num frasco de mostarda – seria do mesmo homem? – e uma mulher de Los Angeles, em 1992, tropeçou num preservativo ao cortar um pão de forma. Pela mesma razão, por deparar no meio da apetitosa tarte da sobremesa com a camisinha que se diz ser de Vénus, Dalvin Stokes processou em 15 mil dólares a cafetaria Morrison’s de Winter Haven, na Florida. Comia com a mulher e o profiláctico dispositivo assombrou-lhe o prazer da mesa: ele jura que o inóspito intruso tinha o inequívoco ar de ter cumprido a sua missão protectora.
E eis o que os nosso radicais, os fascistas e os anti-fascistas, não compreendem: os incidentes não anulam a essência. Aí está o mistério e júbilo: não desistiremos nunca da mesa, do deleite de cheiros e sabores, por mais lúgubres episódios que também dela se contem. Ouvimos e logo estamos prontos para voltar à velha mesa e trinchar o peru ou servir as iscas com elas, mesmo sabendo que, em 2006, em Estocolmo, espalhava uma formosa e segura Madeleine o ketch-up nas sanduíches pelas quais marido e filhos já estavam à espera, num salivado nham-nham, quando do frasco se ergue, exagero meu, um pénis. De tamanho médio, isso sim, asseguram marido e mulher, Simon e Madeleine. Mudaram de marca de ketch-up, claro.
Os nossos extremistas sai-lhes à mão o percalço de um pénis de tamanho médio e derramam-se num clamor de quinto dos infernos: cospem o dilúvio, arrasam estátuas, exigem deportações, armam inquisições, deitam fora a água do banho da vida e vai junta a vida e o pénis dela.
Publicado no Jornal de Negócios
Meus deuses, este texto faz-me lembrar, assim de repente, o filme “Feios, porcos e maus”. Mas, lá está, é só na aparência que chama o vomito, a essência é outra coisa.
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A essência é gourmet
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Pergunta de inferior importância: a fotografia é d’A Festa de Babette? Se sim, o filme vale quase todo ele por essa cena da cedência do ascetismo à codorniz em seu sarcófago…
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Bem dito
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O pénis é instrumento do passado ultrapassado pelo dildo
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Se nasceram livres e iguais em direitos, há lugar para todos 🙂
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