Eu não estava lá. Eu não estava lá, na noite em que fui concebido.
Sobre esta falha, sobre essa imagem que nunca vimos e que nunca veremos, sobre a falta dessa imagem que a miríade de imagens que nos cerca e sufoca não consegue fazer esquecer, Pascal Quignard fez um livro.
Chamou-lhe La Nuit Sexuelle e é um livro de imagens. Ia dizer que neste álbum deslumbrante prevalecem as imagens doutras noites, iguais porventura à noite fundadora a que dificilmente poderíamos assistir, e que, nas espessas noites que as imagens de Quignard reproduzem, julgamos escutar, tementes e trementes, repulsiva e fascinadamente, o eco da imagem que jamais se revelará aos nossos olhos… “Maintenant je désire m’engloutir dans cette nuit qui d’entrée de jeu comuniqua sa couleur à ces pages.” E, no entanto, essa “noite sensorial”, presente embora, não é, ao longo de La Nuit Sexuelle, nem avassaladora, nem sequer dominante.
Livro soberbo, nele se cruzam, maravilhosamente reproduzidos, quadros de Caravaggio e Rubens, de Leonardo e Ticiano, de Goya e Picasso, de Regnier e Van Den Hoecke. Correndo a par de um texto minimal, deliciosa e insensatamente francês (if you know what I mean), há também desenhos anónimos do sec. XV ou do séc XVII, anónimos chineses e anónimos egipcíos, há Pietás e Massacres de Inocentes, há mãos que empunham falos, há ninfas empaladas e sacríficios satúrnicos.
Quando chegamos ao fim dos 27 capítulos de La Nuit Sexuelle, depois do nosso olhar ter viajado por mais de duzentas pinturas em que habitam a nudez, o crime, o voyeurismo e a carnalidade, sabemos que toda essa visibilidade não nos revelou ainda a “cena invisível”, Mas sabemos talvez que essa “cena” está na origem da pintura, tanto mais quanto, em latim, pénis (penicillus) quer até dizer “pequeno pincel”.
La Nuit Sexuelle é o livro de uma alegria negra, como negras são, literal e graficamente, as suas páginas de um couché tão suave como a pele em que, numa noite que nunca vimos, dedos se perderam, outros dedos se encontraram.
Prometo vir aqui, regularmente, dar conta dos meus gostos obsessivamente optimistas e desenvergonhadamente encantados. Calhou ser outra vez um livro. Este foi editado, com brio e farto investimento, pela Flammarion. Tem 19,5 cm de comprimento por 28 de largura. A encadernação, com sobre-capa, abriga 279 páginas gloriosas, às vezes tórridas. Custa 85€. Abençoado dinheiro.