
Há um século, andava eu por um blog que era um cemitério de boa gente morta, escrevi este post que pretendia fazer um mínimo de justiça, justiça que julgo ser-lhe devida, ao papel do cristianismo nos fundamentos da nossa cultura e civilização.
Não creio que o tema seja mais do que um dos gostos anacrónicos e saudosistas com que ocasionalmente envergonho o sanitário mundo em que vivemos. Atendendo à magnitude do tópico, segue-se um lençol que tentei encurtar o mais que pude para não aborrecer muito os meus pacientíssimos leitores.
Começo copiando os manuais de antropologia: as religiões são criações, não dos deuses, mas do homem, cujo indeclarado e primeiro objectivo foi a gestão da violência imanente às sociedades humanas. As religiões não são um movimento obscurantista, mas sim uma criação que amplia o imaginário humano (é delas que nasce a estética, a ética) e funda comportamentos que se inserem numa lógica evolucionista. Parte da sobrevivência dos seres humanos passou e foi garantida pelas religiões. O movimento a que hoje assistimos, de ansiosa procura de transcendência cabe inteiro no paradigma de busca das melhores soluções para a nossa sobrevivência: o mundo contemporâneo, na aparência tão tecnológico e científico, é desvairadamente religioso, por mais bizarras e ridículas que sejam as suas “fés”, e essa parece ser uma escolha de equilíbrio individual e colectivo.
O cristianismo foi, ao surgir, uma revolução. Moisés descera da Montanha com a tábua de leis numa mão e a outra a apagar o fogo que se pegara à túnica e lhe começava a aquecer as partes baixas. Exigia-nos que não matássemos, não roubássemos, não praticássemos adultério. Tudo isto, que já vai contra a “natureza” humana e que, com o monoteísmo, fez o distinguo do judaísmo, é violentamente acelerado por Jesus, o Cristo, quando nos pede para amarmos o próximo como a nós mesmos. Foi noutra Montanha, e com um Sermão, que este galileu de 30 anos, talvez depois de ter bebido ou mastigado erva daninha, propôs: a) que perdoássemos aos que nos fazem mal (vá lá!); b) que déssemos a outra face (convenhamos, já dói um bocadinho); c) e, o que é estarrecedor, amássemos não apenas os nossos amigos (e algumas amigas bem o merecem) mas que amássemos os nossos inimigos.
Para usarmos uma linguagem que deixaria o filho do carpinteiro de cara à banda, no Sermão da Montanha anuncia-se a realização de um “eu” que deve abnegar de “si mesmo” por amor à transcendência. E está a propor-se que, pela aprendizagem do amor ao inimigo (ainda que sejam os nossos carrascos) se interrompa e elimine, pela primeira vez na História, o ciclo da vingança que fundara o mundo como existia.
Cristo dá, a seguir, com o seu exemplo, o segundo passo. As sociedades, até aí, fundavam-se num acto sacrificial exterior ao seu seio – sacrificar o outro, sacrificar um culpado – como forma de apaziguamento da violência da comunidade, sacrifícios que perpetuavam o ciclo de ressentimento e vingança. Cristo, ao oferecer-se inocente ao sacrifício (ou nas palavras da doutrina, Deus ao oferecer o seu Filho), quebra aquele ciclo e funda uma religião baseada na misericórdia, dispensando as vítimas dos actos sacrificiais e detendo o ciclo de vingança. O mundo em que vivemos nasceu nesse gesto revolucionário, o do perdão do outro: “Perdoa-lhes Pai porque não sabem o que fazem”. (Já agora, a Santíssima Trindade é uma fórmula deliciosa para desestruturar o mito edipiano, e antecipar o complexo homónimo que faria a fortuna de Freud, ao incorporar numa só pessoa o pai autoritário e o filho em revolta, pela gratia de um terceiro, o espírito, que garante a mediação do conflito).
Com base neste gesto fundador a(s) Igreja(s) Cristã(s) praticaram e popularizaram uma doutrina da caridade que leva a fazer o bem ao outro sem que essa forma de amor (a “caritas”) exija vínculos familiares, eróticos ou tribais, estabelecendo e firmando a insubstituibilidade do outro.
No plano histórico, as igrejas cristãs criaram (com hospícios, hospitais, asilos, orfanatos) as bases práticas que o Estado Social há-de vir a institucionalizar.
Inicia-se também um processo de democratização: no que eram então as humildes igrejas cristãs, a comunidade reunia-se sem distinção de classe, a mesma lei universal de um só Deus sujeitando todos os membros. Tinham um objectivo: erradicar o pecado (o mal) através da associação de todos como comunidade. Veja-se por exemplo esta recomendação, no caso de na igreja entrar um pobre ou estrangeiro sem recursos: “… e tu bispo, procurarás de todo o coração arranjar-lhe um lugar, mesmo que tu próprio tenhas de te sentar no chão.” Isto é, o mundo deve ao cristianismo a centralidade da pessoa humana, a valorização do trabalho e condenação da preguiça, o conceito de solidariedade.
Mas a construção das nações soberanas tem de fazer também uma vénia ao cristianismo que foi o intermediário do Direito Romano, bem como da moralidade e instituições greco-romanas, fazendo-as adoptar pelos nossos ancestrais. Tem graça: hoje fala-se de uma ideia de soberania absoluta da nação e do risco da sua perda na Europa, mas se olharmos para a História verificamos que a soberania instigada e legitimada pela Igreja Cristã foi no começo, e continuou longamente, limitada por uma jurisdição eclesiástica transnacional (Deus acima do soberano), papel que agora, secularmente, é ocupado pelo direito internacional, ou por instituições planetárias como a ONU, ou pela UE (às vezes só pela encantadora sereia que é Angela Merkel) à dimensão europeia.
A herança do cristianismo assume formas inesperadas e, por vezes, radicalizadas. Na sua componente mais utópica, por exemplo, o marxismo é um espelho em fogo, radicalizado, do cristianismo. A vontade de justiça social é uma réplica messiânica e a concretização de uma sociedade sem classes, de igualdade e superação da necessidade, espelha a edénica abundância perdida, a que cristãmente voltaremos após a salvação.
Aliás, o cristianismo foi um vigoroso impulsionador do racionalismo. A uma sociedade que, herdada do Império Romano, era, nas suas práticas, astrológica e mágica, o cristianismo respondeu, em particular na Idade Média, desenvolvendo um racionalismo (Agostinho, Aquino) que a filosofia moderna, a partir de Descartes, recebeu, mastigou e engordou até ao colesterol que nos aflige. Esse racionalismo foi, igualmente, a base para o desenvolvimento científico que deve ao cristianismo o ambiente (de que o escândalo de Galileu faz parte) para o seu estabelecimento, vindo em muitos casos os praticantes directamente do clero.
Ao cristianismo devemos, e mais ou menos por esta ordem, o fundamento antropológico que nos retirou do ciclo de sacrifício e vingança, a centralidade da pessoa humana, a solidariedade e o estado social, a aceitação da instância transnacional para limitar a soberania do Estado, o racionalismo como base para o desenvolvimento da ciência. “Ensinamos às nossas crianças que deixámos de perseguir as feiticeiras porque a ciência se impôs ao homem. Ora, o que aconteceu foi o contrário: a ciência impôs-se ao homem porque, por razões morais, religiosas, deixámos de perseguir as feiticeiras.”
Já nem falo, por ser provavelmente a mais pacífica das desculpas, mesmo para jacobinos exaltados que gostariam de transformar todas as catedrais em discotecas techno, do que ao cristianismo deve a arte ocidental, ou o que por arte universalmente entendemos.
E o que é, a meu ver, mais extraordinário, devemos ao cristianismo as bases para a secularização e laicidade: a democratização referida e a separação da igreja do estado (de César e de Deus), com o estímulo à criação de nações soberanas foram passos essenciais, num movimento que, ao privatizar a lei religiosa (e por isso Jesus sofreu a perseguição da autoridade religiosa judaica) inicia um processo que culmina na emergência do ateísmo cuja substância e “invenção” estão contidas no próprio cristianismo, essa estranha religião que começa, no seu acto fundador, pela “morte de Deus”.
Terminei. Mas faço declaração de interesses em dois pontos:
- Não professo qualquer tipo de religião desde os 18 anos de idade e estou, céptico, chato e sem graça, bem longe de cegar a caminho de Damasco Por maioria de razão não me anima nenhum proselitismo e estou consciente do longo rol de malfeitorias e crimes que, a ferro e fogo, em nome do cristianismo, e tantas vezes a partir das suas igrejas, foram cometidos. Em causa, aqui, apenas os fundamentos.
- O que escrevi, eventualmente mal digerido e mal explicado, pode ser encontrado em prosa decente e argumentação lógica em textos de George Steiner, Gianni Vattimo, René Girard, Roger Scruton, entre outros, uns cristãos, outros coisa nenhuma. As asneiras que tenha escrito são, obviamente, da minha inteira responsabilidade.