O meu Natal no CM

Foi o meu primeiro Natal no CM. A quadra já passou e eu junto aqui as minhas, agora anacrónicas, Bicas Curtas de dia 24 e 25 de Dezembro.
Nelas se faz o elogio de alguma alegria consumismo e do, por vezes esquecido, significado de Jesus para a nossa mundivivência.

natividade

Bica Curta de dia 24 de Dezembro

Feliz Natal

As hordas bárbaras assaltam os centros comerciais; congelados e chocolates empilham-se no carrinho do super. A visão repugna às almas delicadas ou snobes.

Eu saúdo essa desregulação natalícia. O Natal, que a nação laica já traz nas veias, é um dos raros traços de identidade espontânea dos portugueses. Prefiro este consumo à moralíssima pobreza salazarista ou às gélidas filas soviéticas à porta de lojas vazias. Foi mesmo por isto que lutámos. E pela cadeia afectiva, por vezes de um amor que nem sabe dizer o nome, mas que une as famílias no pequeno luxo das prendas, na partilha do bacalhau, na saudade dos seus mortos.  Feliz Natal.

Bica Curta de dia 25 de Dezembro

Bom dia, Menino Jesus

Mesmo eu, um herege, reconheço: hoje celebra-se o nascimento de um revolucionário, Jesus Cristo. Inspirou a civilização em que vivemos. Ensinou-nos o amor ao outro, a que chamou próximo, seja amigo ou inimigo. Contra a vingança, ensinou a dar a outra face. Mandou fazer o bem com caridade, antecipando o Estado Social. Ao separar César e Deus, anunciou o Estado laico. E o seu sublime Sermão da Montanha, louvor de humildes e perseguidos, foi a primeira proclamação dos Direitos do Homem. Cristãos ou ateus devemos orgulhar-nos dessas raízes filosóficas.

Mesmo sabendo que te negaremos como Pedro, hoje saudamos-te: bom dia, Menino Jesus.

Um agónico Jesus Cristo

Cristo túmulo

Reflexões, se assim se pode dizer, a partir da Deposição de Cristo no Túmulo, de Giambattista Tiepolo, quadro do Museu Nacional de Arte Antiga

O dia desta tela de Giambattista Tiepolo está chuvoso e agónico. Olho e vejo-o, um corpo. Está ali, desfalecido, descido da cruz, de frágil e modesta mortalidade, a carne exposta e pálida, as pernas tristemente pendentes. Eis um homem a ser metido no seu túmulo. Decido trazê-lo para aqui, sentá-lo connosco, consciente de que me vou meter em trabalhos.

Não é um morto como os outros. Volta não volta, ressuscita, o que nos vai obrigar a aturada vigilância para que não ande por aí, sempre ao laréu. E nem posso dizer que não fui avisado. Alertou-me voz amiga que ele adorava caminhar: metia-se pelo deserto, descia ao longo do rio Jordão e, com uma ousadia que mesmo ao mais ousado dos nossos políticos não lembra, conseguia andar sobre as águas.

Olho e vejo a azáfama à volta do corpo despido. Já foi muito popular, conta-me o pessoal que o tenta encaixar na arca fúnebre mal amanhada – agora, há dúvidas de identidade e já nem o nome se sabe. Biografia errática, chegaram a dá-lo nascido numa vaga cidade da Judeia, embora a família fosse da Galileia. A paternidade é duvidosa, com insinuações de inseminação artificial, de acordo com espíritos mais prosaicos. Outros, arrebatados, falam de anjos serenos e anunciadores, de um mítico sopro que semeia a vida.

Do pouco que lhe consegui saber sobre a infância, o mais credível é o testemunho de um empregado de escritório português, alcoólico nas horas vagas, que diz tê-lo visto, menino, a chapinhar nas águas (apurando futura técnica, já se vê) e a levantar as saias às raparigas. Ainda que para dizer isto, o empregado de escritório se tenha negado a si mesmo, usando outra identidade.

(Há um curioso paralelo entre a heteronímia a que, em delírio, este empregado de escritório se entregou e a ideia de que o nosso morto era uma trindade una e indivisível, segundo informação que consta de cartas encontradas em Tarso).

No primeiro acto público parecia aprontar carreira promissora, tendo surpreendido uma sedenta multidão de convidados, num casamento, em Canaã, com o primeiro tinto monocasta de que há memória. Embalado pelo sucesso, abriu olhos a cegos, ouvidos a surdos, fez coxos andarem e pôs mudos a discursar (esta última, prática perniciosa que ainda hoje infesta televisões e parlamentos).

Embora a sua actividade tenha desencadeado vibrantes e histéricas resistências sindicais, primeiro com a menina dos olhos de Jairo, depois com o filho de uma obscura viúva, e por fim com Lázaro, em Betânia, os problemas com o sistema de justiça começaram quando lhe deu para ressuscitar mortos. Puseram-lhe escutas, providência cautelar e, por fim, em sentença de lava mãos, na cabeça uma coroa ecológica e, ao corpo, morte carpinteira, de pregos e madeiro.

Olho e vejo o peito magro, as costelas marcadas na pele macilenta. É corpo de poeta. Foi o que o perdeu. Bem aventurados os mansos porque possuirão a terra, bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão saciados. Devia dizer estes versos com voz de tenor, ao mesmo tempo que advogava, na mão uma pedra e uma linda mulher de rastos na poeira do caminho, uma poética do perdão, sem o triste espectáculo do ressentimento nem faca e alguidar de vingança. Só perdão entre iguais de amai-vos uns aos outros como eu vos amei.

Olho e vejo-o: a pele branca, anémica. Trago-o para aqui, para ser mais um entre nós, com a condição de que não ressuscite e não fale por parábolas. Mas pode muito bem ensinar-nos a ser humildes de espírito para que seja nosso, na terra, o reino dos céus.