Matem-me, prefiro que me matem, mas não me façam isso

Gostava muito que viessem. Há neste livro, carregado de fantasmas e de sofrimento, um sinal de redenção. Venham, a sessão de lançamento não será soturna e crua. Na próxima 5ª feira, nas salas de Âmbito Cultural do El Corte Inglês, às 18:30 de Lisboa, há-de haver amor, esperança e uma réstia da velha utopia, desse desejo de empatia com a humanidade que moveu a minha geração quando tínhamos 20 anos.
Venham ouvir o Manuel Ennes Ferreira e venham ouvir o meu autor, Carlos Taveira, que eu conheci candengue, no Lobito de 1975, e que hoje tem mais do que a minha idade, tanto viveu ou o obrigaram a viver.  

Venham. Apresenta-se um livro de prisão. Dessas prisões que não queremos para os nossos filhos, nem para os filhos dos outros. Está tudo num livro que se lê como um romance: com sentimento, angústia por vezes, um triste sorriso redentor outras vezes. É preciso ter-se sofrido muito para se poder ter tanta humanidade, eis o que vos quero dizer. 
E que capa tão bonita, tão simples, o Ilídio Vasco deu ao livro do Piri. Abram-no e virem a página, porque é preciso virar a página, como podem ler na página desse livro que, editor deste livro, abaixo vos deixo.

convite

Matem-me, prefiro que me matem, mas não me façam isso
Carlos Taveira (Piri)

Excerto de “São Paulo, Prisão de Luanda”

Do Zezinho das Pilhas tenho menos referências, aparecia ocasionalmente, era discreto, não gostava de se mostrar. Vem-me à memória a figura de um individuo taciturno, com cara de poucos amigos.

Aliás, não os devia ter. Era mais especializado e não utilizava os fios eléctricos como chicote, à maneira de Inácio. Dava-lhes a utilização para a qual tinham sido concebidos: ligava uma das extremidades a uma caixa alimentada por tomada de corrente eléctrica e conectava a outra a um preso. Espero que tenha o sono povoado de pesadelos…

Foram centenas os infelizes a sofrer nas mãos dessa gente imprestável. Muitos deles conservarão para sempre as cicatrizes dos cigarros apagados no corpo, dos nomes gravados a cacos de garrafa, das queimaduras dos eléctrodos, das chicotadas a fio eléctrico.

Vários foram os métodos empregados para brutalizar os presos. Para lá dos referidos acima, quem passou pelo nguelelo nunca o esquecerá: duas hastes de madeira sólida, uma de cada lado da cabeça, atadas nas extremidades de maneira a encerrá-la (a cabeça) num torno. À medida que os nós eram cerrados, a pressão craniana acentuava-se.

Outra prática prezada pelos detectores de mentiras consistia em amarrar os braços com cordas molhadas. Iam apertando o abraço à medida que secavam. Uma variante consistia em passar essas amarras à volta da cabeça, à altura dos maxilares.

Alguém com espírito de iniciativa, e fazendo prova de originalidade, enroscou uma pesada mola nos cabelos da vítima – que utilizava aquele tipo de penteado afro conhecido nos anos 70 como «à Jimmy» – e puxou-a violentamente, arrancando cabelos e pedaços de pele do couro cabeludo.

Enfim, em qualquer bom livro da especialidade, encontrarão outras técnicas. Foram quase todas utilizadas pela DISA.

As noites eram regularmente apunhaladas pelos gritos dos torturados. Lembro-me de um desses infelizes gritando a plenos pulmões:
– Matem-me, prefiro que me matem, mas não me façam isso.

Não sei o que lhe faziam, não consigo nem quero imaginar, mas vimo-lo no dia seguinte deitado no corredor. Atirado ao deus-dará, como um fardo, corpo coberto de chagas, escorria-lhe sangue dos olhos. Quando a minha mórbida curiosidade me levou a espreitar pelo postigo, vi uma agente baixar-se, levantar-lhe uma perna e deixá-la cair, inerte, soltando uma gargalhada divertida. O torturado nem um gemido soltou, parecia ter passado o limiar da dor. Nunca soube o seu nome, nunca mais o vi.

2 thoughts on “Matem-me, prefiro que me matem, mas não me façam isso”

  1. São documentos do quão desprezível pode ser o homem quando passa a fronteira da humanidade e se muda em besta.
    Boa sessão. E que seja muito acompanhada.

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