Não sei se pode ou não filmar-se a poesia. Deixem-me tentar.
Invento que, em “Atonement”, a acesa boca de Keira Knightley, em que logo apetece humedecer a nossa, é apenas a tradução em filme deste resignado verso de e. e. cummings: “… se os teus lábios, que outrora amei, tiverem de tocar noutros.” A boca de Keira e o verso de cummings anunciam a separação dos amantes, antecipando a dor que há-de vir.
Poesia e cinema coincidem ao incendiarem de imagens cada cérebro que tocam. Na poesia, o verbo é tão actor como Natalie Wood em “Splendor in the Grass”. No poema, as palavras levantam-se como a câmara que sobe para ver o mundo do alto do céu no fim de “Perfect World”, de Clint Eastwood.
Pergunto: que cineasta poderia ter filmado a explosão verbal de Herberto Helder, o nosso maior poeta? Cukor tinha a elegância, mas não a viril vocação animal. Talvez Preminger, o Preminger de “Bonjour Tristesse”, se conquistado pelo romantismo doentio de Godard.
Imagino que todos os poemas foram já filmados. Mesmo os de Herberto. Fui ler:
“Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
Pelo orvalho parado da noite.”
Já vi estes versos no cinema: homens a correr “pelo orvalho parado da noite”. Em filmes de guerra de Samuel Fuller, no “Target”, de Arthur Penn, em que Gene Hackman é espião em Berlim. Também num velho filme de Fritz Lang, “Man Hunt”, irrompe a exacta imagem do verso de Herberto. É um filme de perseguição, presas humanas e nevoeiro espesso. Diga-se: no cinema contemporâneo, só um actor, Matt Damon, tem fôlego para correr pelo orvalho dentro, atravessando as portas da morte e renascendo de todas as perseguições.
Herberto foi ainda mais narrativo nos contos de “Os Passos em Volta”. “Polícia” é a história de um clandestino que sobrevive de expedientes e foge à extradição numa insuportável Bruxelas. Encontra Annemarie, “a criatura mais só da terra”, num sítio onde “as putas e os chuis eram mais do que as mães”. Leio e penso: já vi!
Mas onde é que já vi dois amantes nus a atravessar, a cobertores e café, a chuva de uma noite fria? Foi num dos filmes de longas conversas de Eric Rohmer? Não, foi no “They Live by Night” de Nicholas Ray: tenho a certeza de que Farley Granger leu e se inspirou no herói clandestino de Herberto. E invento: num filme ideal, Juliette Binoche seria Annemarie, uma francesa de Lyon.
O filme ideal, o que juntaria a Binoche e Matt Damon, escreveu-o Herberto, antes que os dois nascessem, no poema destes primeiros versos:
“As mulheres têm uma assombrada roseira
fria espalhada no ventre.
Uma quente roseira às vezes, uma planta
de treva.”
O cinema arde quando é dito assim.
As suas imagens para os poemas de Herberto são as suas imagens. Por mim, seria incapaz de as ver, específicas, botão que acerta na casa. Mas o exercício do cinema – o verdadeiro, há muita imitação – desdobra lentos poemas, cantam-lhe versos nas costuras penumbrosas, é coisa de musas.
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Bem dito, com lentidão e gosto. Não vou contestar, Bea.
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Claro que pode… mesmo que seja apenas por breves momentos.
Mas só é possível com a mão de “realizadores-+poetas”, Manuel. 🙂
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Não estou assim tão certo, Luís. Há realizadores-armários que sacam grandes cenas poéticas 🙂
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Eu acho que os filmes do Tarkovski têm cargas de poesia.
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Não digo que não, Albertino. E sei que é uma heresia, mas não é a poesia de Tarkovski a que mais me toca.
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Michelangelo Antonioni. Alguns filmes dele têm sequências de pura poesia…
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Uma poesia de escassez e solidão nos seus melhores momentos.
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